Não me enganei.

 

Havia meia hora que a luz da sala tinha desaparecido e

 

que toda a casa parecia dormir, quando se abriu uma das portas

 

do jardim e eu vi ou antes pressenti a sua sombra na sala.

 

Recebeu-me com surpresa, sem temor, naturalmente, e

 

como se eu fosse seu irmão ou seu marido. É porque o amor

 

puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para dis -

 

pensar o falso pejo, o pudor de convenção de que às vezes

 

costumam cercá-lo.

 

-- Eu sabia que sempre havias de vir, disse-me ela.

 

-- Oh! não me culpes! se soubesses!

 

-- Eu culpar-te? Quando mesmo não viesses, não tinha

 

o direito de queixar-me.

 

-- Por que não me amas!

 

-- Pensas isto? disse-me com uma voz cheia de lágrimas.

 

-- Não! não!... Perdoa!

 

Perdôo-te, meu amigo, como já te perdoei uma vez;

 

julgas que te fujo, que me oculto de ti, porque não te amo e,

 

entretanto, não sabes que a maior felicidade para mim seria

 

poder dar-te a minha vida.

 

-- Mas então por que esse mistério?

 

-- Esse mistério, bem sabes, não é uma coisa criada por

 

mim e sim pelo acaso ; se o conservo, é porque, meu amigo...,

 

tu não me deves amar.

 

-- Não te devo amar! Mas eu amo-te!...

 

Ela recostou a cabeça ao meu ombro e eu senti uma lágri-

 

ma cair sobre meu seio.

 

Estava tão perturbado, tão comovido dessa situação in-

 

compreensível, que me senti vacilar e deixei-me cair sobre o

 

sofá.

 

Ela sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos,

 

disse-me um pouco mais calma:

 

-- Tu dizes que me amas!

 

-- Juro-te!

 

-- Não te iludes talvez?

 

-- Se a vida não é uma ilusão, respondi, penso que não,

 

porque a minha vida agora és tu, ou antes, a tua sombra.

 

-- Muitas vezes toma-se um capricho por amor; tu não

 

conheces de mim, como dizes, senão a minha sombra!...

 

-- Que me importa? ..

 

-- E se eu fosse feia? disse ela, rindo.

 

-- Tu és bela como um anjo! Tenho toda a certeza.

 

-- Quem sabe?

 

-- Pois bem; convence-me, disse eu, passando-lhe o bra-

 

ço pela cintura e procurando levá-la para uma sala vizinha,

 

donde filtravam os raios de uma luz.

 

Ela desprendeu-se do meu braço.

 

A sua voz tornou-se grave e triste.

 

-- Escuta, meu amigo ; falemos seriamente. Tu dizes

 

que me amas ; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me dis -

 

sesses. As almas como as nossas quando se encontram, se re-

 

conhecem e se compreendem. Mas ainda é tempo; não julgas

 

que mais vale conservar uma doce recordação do que entregar-

 

-se a um amor sem esperança e sem futuro?...

 

-- Não, mil vezes não! Não entendo o que queres dizer;

 

o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança,

 

porque o tem em si, porque viverá sempre!...

 

-- Eis o que eu temia; e, entretanto, eu sabia que assim

 

havia de acontecer ; quando se tem a tua alma, ama-se uma

 

só vez.

 

-- Então por que exiges de mim um sacrifício que sabes

 

ser impossível?

 

-- Porque, disse ela com exaltação, porque, se há uma

 

felicidade indefinível em duas almas que ligam sua vida, que

 

se confundem na mesma existência, que só têm um passado e

 

um futuro para ambas, que desde a flor da idade até à velhice

 

caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus

 

prazeres e as suas mágoas, revendo-se uma na outra até o mo-

 

mento em que batem as asas e vão abrigar-se no seio de Deus,

 

deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas

 

encontrado, uma dessas duas almas irmãs fugir deste mundo,

 

e a outra, viúva e triste, for condenada a levar sempre no seu

 

seio uma idéia de morte, a trazer essa recordação, que, como

 

um crepe de luto, envolverá a sua bela mocidade, a fazer do

 

seu coração, cheio de vida e de amor, um túmulo para guardar

 

as cinzas do passado! Oh! deve ser horrível!...

 

A exaltação com que falava tinha-se tornado uma espécie

 

de delírio; sua voz, sempre tão doce e aveludada, parecia al-

 

quebrada pelo cansaço da respiração.

 

Ela caiu sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente

 

em um acesso de tosse.