A fisionomia sisuda do criado expandiu-se ao tinir da moe-
da e a língua adquiriu a sua elasticidade natural.
-- Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa
que veio acompanhada de sua filha?
-- É isso mesmo.
-- A moça parece-me doente; nunca a vejo sair.
-- Onde está morando?
-- Aqui perto, na rua de...
-- Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é acom-
panhar-me e vir mostrar-me a casa,
-- Sim senhor.
O criado seguiu-me e tomamos por uma das ruas agrestes
da cidade alemã.
IV
A noite estava escura.
Era uma dessas noites de Petrópolis, envoltas em nevoeiro
e cerração.
Caminhávamos mais pelo tato do que pela vista, dificil-
mente distinguíamos os objetos a uma pequena distância; e
muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto
perdia-se nas trevas.
Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno
edifício construído a alguns passos do alinhamento, e cujas
janelas estavam esclarecidas por uma luz interior.
É ali.
-- Obrigado.
O criado voltou e eu fiquei junto dessa casa, sem saber o
que ia fazer.
A idéia de que estava perto dela, que via a luz que a
esclarecia, que tocava a relva que ela pisara, fazia-me feliz.
É coisa singular, minha prima! O amor que é insaciável
e exigente e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher pode
dar, que deseja o impossível, às vezes contenta-se com um sim-
ples gozo d'alma, com uma dessas emoções delicadas, com um
desses nadas, dos quais o coração faz um mundo novo e desco-
nhecido.
Não pense, porém, que eu fui a Petrópolis só para contem-
plar com enlevo as janelas de um chalé; não; ao passo que
sentia esse prazer, refletia no meio de vê-la e falar-lhe.
Mas como?...
Se soubesse todos os expedientes, cada qual mais extrava-
gante, que inventou a minha imaginação! Se visse a elabora-
cão tenaz a que se entregava o meu espírito para descobrir um
meio de dizer-lhe que eu estava ali e a esperava!
Por fim achei um; se não era o melhor, era o mais pronto.
Desde que chegara, tinha ouvido uns prelúdios de piano,
mas tão débeis que pareciam antes tirados por uma mão dis -
traída que roçava o teclado, do que por uma pessoa que tocasse.
Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recor-
dação de uma bela música de Verdi; e foi quanto bastou.
Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquela linda
romanza; os que me ouvissem tomar-me-iam por algum furio-
so; mas ela me compreenderia.
E de fato, quando eu acabei de estropiar esse trecho mag-
nífico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emude-
cido, soltou um trilo brilhante e sonoro, que acordou os ecos
adormecidos no silêncio da noite.
Depois daquela cascata de sons majestosos, que se precipi-
tavam em ondas de harmonia do seio daquele turbilhão de no-
tas que se cruzavam, deslizou plangente, suave e melancólica
uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que
respira a melodia sublime de Verdi.
Era ela que cantava!
Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão pro-
fundamente triste, a angústia de que ela repassou aquela fra-
se de despedida :
Non ti scordar di me.
Addio!...
Partia-me a alma.
Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em
uma das janelas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas
descidas não me permitiam ver o que se passava na sala.
Sentei-me sobre uma pedra e esperei.
Não se ria, D... ; estava resolvido a passar ali a noite ao
relento, olhando para aquela casa e alimentando a esperança
de que ela viria ao menos com uma palavra compensar o meu
sacrifício.
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