Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber e um dia, de revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente louco, penetrava na casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver, de cujos ferimentos veio a morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente a mulher, correu em perseguição de Cassi, que, descalço, de calças e em mangas de camisa, saltava cercas e muros, para se pôr fora do alcance do marido indignado.
Entregando-se à prisão, o oficial maquinista contou toda a sua desdita e o causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e conseguiu pilhá-lo à noite, Os agentes deram uma batida nos matos, e o galã fugitivo foi preso e recolhido à enxovia.
Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a conhecer Lafões. Tinha este sido detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um distúrbio, num botequim, onde tomara uma carraspana, em comemoração ao ter acertado uma centena no bicho. Quando Cassi foi recolhido, já Lafões estava no xadrez, havia quatro horas.
Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem paletó e sem colete, em cujas algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera comprar cigarros; mas Lafões os tinha, O profissional da sedução pediu-lhe um, que lhe foi dado, Disse, então, para Lafões:
— Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma.
— Por que vosmecê está preso, meu caro senhor?
Cassi respondeu com muita calma e indiferença, como se tratasse de um acontecimento vulgar:
— Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o meu fraco.
Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a quem conhecia, e falou-lhe baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça substituída por outra. Vendo isso Cassi, disse para o velho Lafões:
— Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao meu chefe político: e ele vai interessar-se para seres solto,
— E vosmecê?
— Não te importes comigo. Tenho que depor...
Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém, qualquer intervenção do chefe político de Cassi. Libertou-o o próprio comissário que o prendera e o conhecia como homem morigerado e qualificado.
Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs que a sua libertação tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato e o defendia com todo o ardor.
Lafões era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era a dele, para se interessar generosamente por alguém.
Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo âmbito de vida sempre fora mais amplo e mais variado. Abraçava um maior horizonte de existência humana...
Quando aquele lembrou que se convidasse o celebrizado violeiro, o contínuo viu logo os perigos que a presença do profissional da desonra das famílias podia trazer à paz e ao sossego que reinavam na casa de Joaquim dos Anjos.
Além de compadre, Marramaque era profundamente amigo do carteiro, que o auxiliava nos seus transes de toda a ordem: um pouco, originados pelos hábitos boêmios que, de todo, não perdera; um pouco, pela exigüidade de seus vencimentos, com os quais sustentava uma irmã viúva e dois filhos dela, ainda menores, com os quais morava, nas proximidades de Joaquim.
Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.
Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico, como ele sabia ser o tal Cassi?
Durante o jantar, ainda se falou muito a respeito, mas com as reservas que a assistência de uma moça pedia fossem tomadas.
— Vamos experimentar, meu caro Marramaque. "Ele" sabe com quem se mete...
— Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele. Sempre me tratou muito bem e sou-lhe grato.
— É que você, Lafões, não lê os jornais.
— Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles é mentira.
Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e forte curiosidade. Num dado momento, não se conteve e perguntou:
— O que é que esse Cassi faz, padrinho?
A mãe acudiu ríspida, dizendo:
— Não é de tua conta, bisbilhoteira!
A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.
Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe.
Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves, mas regular; o que não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato, e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois; média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos.
Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas populares.
Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à casa de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao cinema e a compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios, irem as senhoras e moças às vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca consentiu que ela o fizesse, embora de sua casa se avistasse tudo o que se passava, no armazém do "Seu" Nascimento, fornecedor da família.
Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares.
Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais.
Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela vez e não viria mais...
Lafões acolheu a resposta com viva alegria e tratou de entender-se com o tocador mal-afamado. Fez. Quando os seus companheiros de vagabundagem souberam, comentaram cinicamente o convite:
— Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha aqui; mas na cidade, na zona dos bancos. Deve ter dinheiro.
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