Tem um pancadão de filha, meu Deus! Que torrão de açúcar!

— Então estás feito, hein, Cassi? — fez alvarmente Zezé Mateus àquela tendenciosa observação de Ataliba do Timbó.

Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da modinha, fingiu-se aborrecido e retrucou com fingido desgosto:

— Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem coisas que não fiz e não faço, e todo mundo me enche de desprezo, se não de ódio. Não sou essas coisas que dizem de mim.

Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora mais forte do que Cassi, tinha este sobre ele um ascendente moral que não se explicava. Zezé Mateus, porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil, fez:

— Estou brincando, meu "nego". Sou teu amigo — tu sabes.

Eles conversavam sempre de pé, parados pelas esquinas. Raramente, sentavam-se a uma mesa de café. Aquela intempestiva observação do Ataliba, seguida do comentário de Zezé Mateus, arrefecera a palestra da sociedade. Despediram-se, e cada um foi para o seu lado.

Cassi, que fingira aborrecer-se com a tendenciosa noticia de Timbó e o comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito contente com ela. Tinha resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que informara Ataliba, talvez não tivesse nada a perder. Experimentaria.

Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a consciência leve e o coração alegre...

IV

 

Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e — coisa curiosa — havia mais convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se explicava pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido à vida que levavam. Entre as moças, havia duas ou três colegas de Clara, a filha de Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e poucas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino e Honório; um irmão de Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais do porto. Em compensação, as senhoras, mães de família, eram inúmeras. Destacava-se muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo sempre ao lado o filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento de heroína doméstica. Viera muito cedo para o Brasil, com o pai, que era alemão; ela, porém, havia nascido em Riga, russa portanto, como sua mãe o era. Antes dos dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai emigrara para o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da Candelária. Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário fino, para essas obras especiais de revestimento e decoração interna de edifícios suntuosos.

Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que comia na "pensão" que havia montado, na rua da Alfândega, e dirigia ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após o casamento, de tubelculote pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que não a largava. Ano e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela. Continuou com a "ensão"; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casota nos subúrbios, aquela em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para fora, bordava, criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta, O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditan’os de amor chulo, Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guardachuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, traislúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos — olhos tão estranhos a nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno.

Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jácome, uma velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Imperador e empregada numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era encarregada, inclusive da lavagem das toalhas dos altares. Não podia conversar outra coisa que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre, os de sua igreja:

— A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa?

— O que é?

— O padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas e só recebeu inco. Pobre padre Santos! É mesmo um santo!

E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um pouco, apertava as mãos ao jeito de quem reza.

Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança também e vivia de deitar cartas e cortar "coisas-feitas".