Não há conto algum de Poe que seja narrado na terceira pessoa. Ele é quem sempre fala, quem sempre narra ou quem está presente para ouvir a confissão deste ou daquele personagem. E é o seu “eu” repleto de terrores de presságios, de complexos, de inibições, de males físicos e morais que se revela nas suas histórias de terror e de morte.
A morte da mãe, com redobradas hemoptises, deve ter impressionado fortemente a sensibilidade do menino, que já carregava consigo a hereditariedade alcoólica do pai; sua condição de filho adotivo dos Allan, de futuro incerto, depois da morte de Frances Allan e das desavenças com John Allan; o vício do jogo e da embriaguez e mais tarde dos estupefacientes; o medo que sempre o dominou de ficar louco, pois a debilidade mental da irmã Rosália fazia-o temer que também ele perdesse a inteligência aguda e viva que era o seu orgulho; os ataques de adversários e invejosos; as condições de miséria em que quase sempre viveu; os seus complexos de origem sexual; tudo concorria para exacerbar-lhe a sensibilidade e povoar-lhe a mente de terrores intensos e alucinações. O medo, pois, que existe nos seus contos é um medo real, autêntico, sentido, arraigado. O prof. Boussoulas escreveu até mesmo um trabalho a respeito do medo na obra de Edgar Poe. Maria Bonaparte, também, numa obra compacta e minuciosa, andou, com aquele encarniçamento tão próprio dos psicanalistas e com todos os exageros da escola freudiana, a explicar todas as implicações sexuais que existem nos contos de Poe, apesar de haver ele escrito uma obra que prima pela ausência de sensualidade, pela castidade, pela aversão às cenas de amor físico.
Mas em Poe sempre existiu uma dicotomia psíquica. Sua inteligência aguda, racionalista, em que se juntavam metafísica e física, intuição poética em alto grau e raciocínio matemático, frio e desapaixonado, sempre procurava manter-se alerta, tornando-o capaz de apreciar os desenvolvimentos de seus terrores, de suas fobias, no momento mesmo em que se produziam. Era como um médico que sentia e diagnosticava os seus próprios males. Essa dicotomia marca a personalidade de Poe. Foi sempre um dilacerado, um homem dividido em duas naturezas: uma angélica e outra satânica. Sua luta contra o vício da embriaguez, contra a dipsomania, foi uma luta de longos anos. Conhecia a sua fraqueza e a condenava. Os personagens, fracos, viciosos, de seus contos nunca são exaltados ou elogiados, mas lamentados, dignos de dó e condenados a pagar com a morte os próprios vícios. Essa luta de seus dois “eus” encontra-se fixada no seu conto “William Wilson”, que ele mesmo considerava dos melhores que produzira.
Os mistérios da mente, o mistério da morte constituem o tema principal dos contos de Poe. Os terrores que ele descreve com intensidade e impressionante realismo são terrores que se geram na própria mente do personagem, e a realidade ambiente é vista através desse terror e por ele deformada. No seu livro Edgar Poe par lui-même, o escritor Jacques Cabau assinala que “o conto de Poe é o contrário do conto de terror clássico. Em lugar de lançar um indivíduo normal num universo inquietante, Poe larga um indivíduo inquietante em um mundo normal. Nada acontece ao herói; ele é que acontece ao mundo. Não é tomado por um horror exterior; não é o medo que dispara a neurose, mas a neurose que suscita o medo. O herói é medusado pela sua própria visão. Uma vez apanhado nos seus próprios mecanismos de fascinação, é arrastado para a engrenagem da obsessão”.
Numa época em que começaram a desenvolver-se o magnetismo e o espiritismo, precisamente na América do Norte, não hesitou Poe em valer-se desses novos meios de criar sensação e angústia, e não faltam em seus contos os casos de reencarnação, de hipnotização, ou mesmerismo, como se costumava chamar na ocasião. Mas em todos ou quase todos há sempre um mergulho em certas profundezas da alma, em certos estados mórbidos da mente humana, em recônditos desvãos do subconsciente. Por isso mesmo os psicanalistas lançam-se com afã ao estudo da obra de Poe, porque nela encontram exemplos a granel para ilustrar suas demonstrações. Independentemente, porém, desses aspectos, o que há nela é um talento narrativo eficiente e impressivo, uma força criadora, uma realização artística, que explicam o ascendente enorme que até os nossos dias exercem os contos de terror de Edgar Allan Poe.
Oscar Mendes
Berenice1
Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas.2
Ebn Zaiat
A desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, intimamente misturadas. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris! Como de um exemplo de beleza, derivei eu uma imagem de desencanto? Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? É que, assim como na ética o mal é uma consequência do bem, da mesma forma, na realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido.
Meu nome de batismo é Egeu. O de minha família não revelarei.
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