Dentro da noite




rosto

JOÃO DO RIO

Dentro da Noite

MINISTÉRIO DA CULTURA

Fundação Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

Nota informativa

JOÃO CARLOS RODRIGUES*



(Prefácio à edição da Antiqua)




Dentro da noite (1910) é o sétimo livro publicado por João do Rio, e tem características que o diferenciam bastante dos seus precedentes. Não é composto por reportagens como As religiões no Rio (1904), A alma encantadora das ruas (1908) ou Cinematógrafo (1909); nem de entrevistas como O momento literário (1905); nem é uma obra de pesquisa como Fado, canções e danças de Portugal (1910).

Está mais próximo de Era uma vez... (1909), coletânea de contos infantis escrita em parceria com Viriato Correia - embora suas histórias estejam bem longe de serem recomendáveis a crianças de qualquer idade, dado ao seu sensualismo e sua morbidez. Reúne dezoito contos, publicados entre 1904 e 1910 no jornal A Gazeta de Notícias.

Dentro da noite é a maior coleção de taras e esquisitices até então publicada na literatura brasileira. Oito contos tratam de diversas formas de deformação sensorial (hiperestesia): sonoras, olfativas, sadomasoquistas - incluindo abuso de drogas, compulsão pela jogatina e cleptomania.

Cinco abordam diretamente a satisfação sexual das pessoas da elite com personagens das classes mais desfavorecidas, sendo que três ameaçam com o perigo das doenças contagiosas oriundo dessa mistura. Um clima opressivo de pavor cerca o sensualismo expresso nas descrições de cores, cheiros e personagens tão próprios dos estilos gótico e decadentista.

Há trechos que fazem lembrar Edgar Alan Poe, Guy de Maupassant, Jean Lorrain e principalmente Oscar Wilde - aclimatados pelo estilo vertiginosamente carioca de João do Rio, paradoxal, faiscante, bizarro e, por vezes, quase repulsivo.

O melhor exemplo disso é O bebê de tarlatana rosa, seu conto mais famoso e, sem dúvida, um dos melhores da nossa literatura.

A maioria das narrativas usa o recurso da narração indireta, ou seja, alguém narra uma aventura ao narrador que nos narra.

O mais das vezes este é o fictício barão de Belfort, "velho dândi sempre impecável que diz as coisas mais horrendas com perfeita distinção", descendente direto de lorde Wotton, o narrador do wildeano O retrato de Dorian Gray. Belfort fez tanto sucesso entre os leitores brasileiros que foi posteriormente utilizado pelo seu criador em inúmeras crônicas, um romance e uma peça teatral.

Pedimos uma atenção especial para os variados personagens femininos, uma gama que vai das emancipadas protagonistas de A parada da ilusão, Uma mulher excepcional e Laurinda Belfort até a melancólica Carlota Pais de A noiva do som, que morre apaixonada pelo som de um piano distante, e a ingênua Clotilde de Dentro da noite, que consente que o noivo sádico lhe fure os braços com alfinetes.

O texto da Biblioteca Virtual baseou-se na primeira edição (Garnier, 1910).

Preferimos manter intactos os estrangerismos, que ajudam a dar um colorido esnobe, sem o qual se perderia boa parte da sua deliciosa mordacidade.

Assim, volta e meia, o leitor se defrontará com lusitanismos (pobrezita, coitadita) e espanholismos (mirone); expressões inglesas (foot-ball, rocking-chair) e principalmente francesas (béguin, bac-chemin de fer, migraine, sauterie); e ainda palavras da nossa língua hoje em desuso (maelstrom, mucilaginar, septuor).

Para esclarecê-lo, existem 201 notas de pé de página, de minha autoria.

Essa eclética reunião de estilos e linguagens é a própria essência do estilo de João do Rio e do seu tempo, pleno de antigas novidades e imortais velharias.

Para um tempo de transição, um estilo e uma linguagem de transição.

Mas de primeira categoria e inimitável verve, como o leitor poderá confirmar desde a primeira página.


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*Biógrafo de João do Rio, pesquisador, roteirista e crítico de cinema

Índice



Dentro da noite

Emoções

História de gente alegre

O fim de Arsênio Godard

Duas criaturas

Coração

A noiva do som

A sensação do passado

Aventura de hotel

O monstro

O bebê de tarlatana rosa

A parada da ilusão

Laurinda Belfort

A peste

Última noite

Uma mulher excepcional

A mais estranha moléstia

O carro da semana santa

A Felix Pacheco.


Cordialmente,


JOÃO DO RIO

Preservai-nos, Senhor,

das coisas terríveis que

andam à noite

REI DAVI

 

Dentro da Noite

 

 

— Então causou sensação?

—Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita! parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.

— Contra mim?

Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado...

— Eu tenho o ar desvairado?

— Absolutamente desvairado.

— Vê-se?

— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante artista desta terra, nem trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?

O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d’água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima — o que falava mais — dizia para o outro:

— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?

O outro sorriu desanimado.

— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise. E como o gordo esperasse:

— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.

— Mas que é isto, Rodolfo?

— Que é isto! E’ o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não ha quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise.