Quando o corpo tombou no leito com o punhado da cabeleira nas mãos, o bando estremunhado viu surgir a face de Elisa, tão decomposta, tão velha, que parecia outra, como que aparvalhada.

Houve um silêncio. O criado servia frutas geladas, esplêndidas pêras de Espanha e uvas das regiões vinhateiras da Borgonha, grandes uvas negras. O barão trincou de uma pera.

— Foi uma complicação para afastar a polícia e impedir notícias nos jornais que desmoralizariam a casa. Elisa seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando. A Elsa devia ter sido enterrada hoje à tarde. Estive lá a ver o cadáver. Tinha ainda nas mãos cerradas fios de cabelos louros, como se quisesse arrancar para o túmulo a prova desesperada da sua morte horrível.

E mordeu com apetite a pêra. No salão de cima uma valsa lenta, chorada pelos violinos, enlanguecia o ar. Das mesas do terraço entre a iluminação bizantina das velas de capuchons coloridos subia o zumbido alegre feito de risos e de gorjeios de todas aquelas mulheres que o jantar alegrava.

 

O Fim de Arsênio Godard

do diário íntimo de um revoltoso

 

 

A Goulart de Andrade

 

Estava tudo combinado. Era impossível falhar. Quando a lancha partiu, sem rumor, explorando a treva do oceano encapelado, ficamos entretanto nervosos. Seriam muitos? Seria um só? Ah! Se os bandidos fossem apanhados! Os nossos nervos, excedidos já por aqueles três meses de enjaulamento na baía, sob o canhoneio das fortalezas e as necessidades mais duras, começavam a dar aos pequenos fatos uma importância capital, uma importância desproporcional. Assim, ao recebermos a denuncia amiga de que um ou mais homens conseguiam a nado levar instruções aos legalistas, a explosão da nossa cólera foi tal que, vendo-a, ninguém deixaria de julgar as instruções causa única do nosso enervante estado.

Quase todos nós, paisanos levados pelas circunstâncias e as perseguições tirânicas dos sequazes do marechal{54} àquela vida do vaso de guerra, estávamos encostados à amurada com os oficiais e o comandante a ver se víamos o trabalho da lancha no negror da noite.

Oh! era demais! Havia oito dias mastigáramos a meia ração de feijão preto sem toucinho, O patriotismo, a indignação pelos descalabros do governo caíam intimamente num relaxamento lamentável. O desejo único era deixar a baía, era acabar com aquilo, era tirar dos ombros aquela mão de ferro das situações insolúveis em que só complicavam as traições dos ingleses, as intimativas americanas e a falência das nossas vitórias. E na treva da noite sem estrelas todas as cóleras se fundiam no ser que os nossos iam apanhar, como se fosse ele a causa do ror de desastres havidos.

— É verdade, indagou um médico, em terra o exemplo da bondade, que castigo havemos de dar ao canalha?

— É boa, passamo-lo pelas armas!

Era um exemplo, mas seria pouco para o infame. Só se o fizéssemos mira de um tiro ao alvo geral. Todos nós atiraríamos.

— E ele só sentiria uma vez! O comandante, qual será o castigo do patife?

O comandante era um cavalheiro elegante e fino. Voltou-se a sorrir:

— Conforme. Na carta que mo denunciou dizem-no estrangeiro. Que seja. É impossível justiça-lo. Se for brasileiro, porém, passamo-lo pelas armas.

Ah! íamos ter urna noite interessante e divertida afinal! O miserável veria com quem se metera! E no olhar de cada um de nós havia a expectativa e no riso dos outros, como talvez no nosso, um repuxamento de lábios queria sorrir e mostrava os dentes como um esgar de fera.

Esperamos assim entretanto até de madrugada. A fadiga prostrara alguns, soprava um vento de chuva, violento e úmido; o comandante recolhera; a lancha não voltava. Já a inquietação sucedia à fúria quando à amurada a lancha acostou. Todos nós corremos numa ânsia má, numa ânsia de vingança, ávidos de ver em primeiro lugar o torpe, o infame, que toda noite passava por nós arriscando a vida para complicar e perder a. nossa vida. O comandante deixou a cabine apressadamente, a oficialidade vinha de todos os pontos do vaso de guerra. E, naquele surdo rumor de cólera, os companheiros de lancha içaram para o tombadilho, amarrado, manietado, como que dobrado em dois, um corpo nu, membrudo e forte.

— Muitos?

— Um só, comandante. Ia com um saco cheio de cartas.

— E o saco?

— Aqui está.

— Desamarrem o homem.

Dois marinheiros curvaram-se; outro acendeu uma lanterna de furta-fogo e assim conseguimos ver a cara do tipo, uma cara comum, de bigode castanho e olhos turvos. Logo que o soltaram, a voz um tanto inquieta, mas clara, exclamou:

— Mr.