Desagradavelmente lembrei-me de minhas tias.
Para que serviam, afinal, as mulheres? Para que os homens se divertissem. E as que saíam brabas e gritonas? Para a fábrica de sebo, certamente, mas acabavam com pena delas.
O patrão perguntou-me de onde era, se tinha família e se havia muito que trabalhava.
Respondi aproximadamente a verdade, por medo de cair em alguma arapuca e ser mandado de volta.
— Que idade tens?
— Quinze anos — respondi, ajuntando-me um.
— Está bem.
Soaram os últimos chupões na bomba.
— Não enchas mais... volta para a cozinha a manda-me o Valério.
Houve grande contentamento na cozinha, depois da refeição. O dia seguinte seria domingo e o pessoal preparava sua ida ao pueblo. A peonada trocava gracejos certeiros, conhecidos que eram os amores de cada um. Os que tinham família iam essa mesma noite, para voltar segunda de madrugada.
Os posteiros talvez se decidissem também pela pequena viagem, a fim de fazerem alguma compra necessária; porém os demais ficariam, certamente, em seus ranchos "fazendo cera" ou iriam ao casario principal para jogar uma partida de bocha na cancha que havia sob uma espaçada plantação de amoreiras.
Os mais velhos protestavam dizendo que já não havia mais corridas de argola, nem carreiras, nem "entreteção" nenhuma. Meio dormido, acomodei-me a um canto, perto de um grupo formado por Dom Segundo, Valério e por Goyo, que queria aprender o ofício, e escutava o que podia dos comentários sobre o trabalho brutal da doma, cheio de sutilezas e manhas.
Atento às lições, embalava-me para trás em meu pequeno banco, com maquinal vaivém de berço. Pouco a pouco as vozes foram ficando como pensamentos confusos do fogo em via de apagar-se, e sentia mui nitidamente um pé, porque o tinha pisado pelo outro.
Aquela pressão da alpargata era-me agradável e, ao imprimir ao meu banco seu lento balanço, o peito do pé sofria com prazer o áspero contato da tosca sola de corda.
Minhas tias teriam arreliado, certamente, com tão curioso entretenimento, mas estavam tão longe, tão longe, que apenas ouvia suas vozes sumidas numa reza singularmente grave... Por que teriam minhas tias essa voz de padre?
De repente o banco, em que eu acabara por dormir, caiu para trás, ruidosamente. Minhas costas bateram num feixe de lenha e os pequenos galhos, ao quebrar, fincaram-me nas costelas como esporas.
V
Em quinze dias estavam mansas as éguas. Dom Segundo, homem prático e paciente, sabia todos os recursos do ofício. Passava as manhãs no curral amanonsiando seus animais, golpeando-os com os pelegos para fazê-los perder as cócegas, palmeando-lhe s as ancas, o cogote e as virilhas, para que não temessem suas mãos, tosando-os com mil precauções para que se habituassem ao ruído das tesouras, abraçando-os pelas paletas para que não sentassem quando se lhes encostasse. Gradualmente e sem brutalidades, tinha cumprido os difíceis compromissos do domador e o víamos abrir tranqueiras e repontar novilhos com as suas redomonas.
— As éguas já estão mansitas — disse enfim ao patrão.
— Muito bem — respondeu Dom Leandro —, siga-as por uns dias, que depois tenho-lhe um trabalho para fazer.
Passadas minhas duas semanas de grande tranquilidade, em que só me danei com a preguiça do petiço Sapo, chegou-me uma notícia má: no pueblo sabiam do meu paradeiro e, possivelmente, quereriam obrigar-me a voltar para casa. Essa lagarta não me faria dano, porque já tinha enfeixado meu linho. Antes me zamparia num perau ou me faria estropear pelos cachorros chimarrões6, para não aceitar aquele destino. De nenhum modo voltaria a vagabundear por ruas ermas. Eu era, de uma vez por todas, um homem livre que ganhava seu puchero, e melhor viveria como puma, alçado nas macegas, que como cusco de sala entre as saias fedendo a incenso de igreja, e repreensões de mandonas bigodudas. A outro cachorro com este osso! Que boa marca tinha me saído nas cruzes!
Aflito, não fiz caso da atividade desenvolvida em torno de mim pela peonada. A maioria, com efeito, havia tomado um ar misterioso e ocupado, que não compreendi senão quando me informaram de que haveria aparte e em seguida troperiada.
Pela segunda vez pareceu-me que o acaso me dava a solução. Não decidira escapar, poucos dias antes, por me ter apontado um caminho a passagem de Dom Segundo? Pois dessa vez iria atrás da tropa, livrando-me dos perigos caseiros apenas ao mudar de pago. Aonde iria a tropa? Quem seriam os tropeiros?
Pela tarde Goyo deu-me informações, embora insuficientes a meu ver.
A tropa seria de quinhentas cabeças e sairia dali a dois dias para o sul, para outro campo de Dom Leandro.
— E quem são os tropeiros?
— Vai de capataz Valério, e de peões Horácio, Dom Segundo, Pedro Barrales e eu, a não ser que mandes outra coisa.
Dom Segundo foi mais parco ainda em suas explicações e eu não sabia por então a que se devia esse silêncio cheio de desprezo, que usam os que partem, quando falam com os que ficam.
— Poderei ir?
— Se te manda o patrão.
— E se não me manda?
Dom Segundo mediu-me de cima a baixo e seus olhos detiveram-se na altura dos meus tornozelos.
— Que é que busca? — perguntei cansado daquela insistência.
— O maneador.
— Onde está ele?
— Pensei que lo tinhas posto.
Um momento levei para perceber seu dito. Quando compreendi, fiz o possível por rir, embora me sentisse (roteado com justiça.
— Não é que me tenha maneado, Dom; é que tenho medo que o patrão se zangue.
— Quando eu tinha tua idade, fazia o que me dava nos cascos sem pedir licença a ninguém.
Industriado, afastei-me tratando de resolver o conflito criado pela ânsia de me ir e o temor de um fracasso. Como Dom Jeremias se havia mostrado bondoso, a ele me dirigi, embora gaguejando meu pedido. O inglês encolheu os ombros: — Valério te dirá se te quer levar.
Valério, de quem eu menos esperava boa vontade, disse-me que falaria com o patrão, pedindo-lhe permissão para agregar-me aos tropeiros, com meio salário.
— Olha — ajuntou — que o ofício é duro.
— Não faz mal.
— Bueno, esta noite te respondo.
Quando, meia hora mais tarde, Valério me fez um sinal do palanque, larguei dos pratos que estava lavando na cozinha e saí correndo.
— Podes ir arrumando tua trouxa e preparando a tropilha.
— Me leva?
— Ahã.
— Falou com o patrão?
— Ahã.
— Isso sim é que é gaúcho! — prorrompi cheio de infantil gratidão.
— Vamos ver — que vais dizer quando os arreios começarem a te lonquear a bunda.
— Vamos ver —, respondi, confiante em mim mesmo.

A fanfarronada é uma ajuda porque, escapado o gesto, torna-se necessário abafar todo pensamento sincero. Já foi tomada a atitude e não resta senão o finca-pé. Mas a ausência de público corrige logo as resoluções tomadas afoitamente, de sorte que quando fiquei só pus-me, desgostoso, a consultar as possibilidades de sustentar minha galhardia. Como falaria, efetivamente, quando os "arreios começassem a lonquear-me as nádegas"?
Que tal me saberia dormir em campo raso uma noite de chuvisco? Que meios empregaria para dissimular meus futuros sofrimentos de novato? Nenhuma dessas vicissitudes da vida rude me era conhecida e comecei a lembrar crescentes d'água, diálogos de pulperia, astúcias e espertezas de guri pueblero, que me pusessem em terreno conhecido. Inútil. Tudo o que aprendera em minha meninice aventureira somava mísera bagagem de experiência para a vida que ia empreender. Para que, diabos, me tiraram do lado de "mamãe", no pequeno posto campeiro, levando-me ao colégio para aprender o alfabeto, as contas e a história, que hoje de nada me serviam?
Enfim, tinha de endurecer a barriga e aguentar a cincha.
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