Ambos tomaram assento nos pequenos bancos e prosseguiu a palestra com grandes pausas.

Voltando-se para mim, Valério ordenou com autoridade: — Vamos ver, guri, traz um mate e ceva pra Dom Segundo.

— Este?

— Não. Esse é do Gualberto, que é meio cosquilhoso. Agarra aquele outro de cima da mesa.

Encantado, pus uma chaleira ao fogo, ativei as brasas e enchi a cuia na vasilha da erva.

— Doce ou amargo?

— Como vier.

— Doce, então.

— Está bem.

Acomodei um banco para mim e, enquanto a água começava a fazer gorgolejes, contemplei Dom Segundo com certo ressentimento, por não haver sido em seu cumprimento um pouco menos distraído.

Como ninguém falasse, atrevi-me a perguntar: — Não me reconhece?

Dom Segundo olhou-me sem se dignar a fazer um esforço para me dar prazer.

— Fui eu — ajuntei — quem lhe espantou o redomão ontem de noite, lá perto das quintas... pueblo.

Longe da exclamação que esperava, meu homem pôs-se a observar-me com atenção, como se qualquer coisa curiosa esperasse encontrar em meu semblante.

— A língua — disse — me parece que tens frouxa.

Compreendi e minha cara afogueou. Dom Segundo temia uma indiscrição e preferia não me conhecer. Um bom pedaço ficamos em silêncio, e o diálogo interrompido entre o forasteiro e o domador voltou a arrastar-se lentamente.

— São muitas as éguas?

— Não, senhor, oito no mais, oito.

— Me disseram que os animais desta cria costumam sair frouxos de cincha.

— Não, senhor. São meio manhosos no mais, meio manhosos.

O sino chamou para o almoço. Mas Dom Segundo seguia chupando na bomba e eu já mudara duas vezes a cevadura.

Foram chegando os peões, esbaforidos pelo calor, mas alegres por haverem concluído por um tempo com o trabalho. Sendo quase todos conhecidos do forasteiro, não se ouviram por um pouco senão saudações e bons-dias.

Pouco dura a sisudez em uma estância, quando nela trabalham numerosos rapazes inquietos e fortes. Goyo tropeçou nos pés de Horácio. Este jogou-lhe na cabeça um pelego. O pessoal abriu cancha para aqueles rapagões estabanados e afeitos a andar aos encontrões por todos os cantos.

— A dedo tisnado, maula! — propôs Horácio, e ambos os contendores, por seu turno, passaram os dedos sobre o bojo da panela.

As pernas abertas em uma guarda curta, que permite rápidas corpeadas e investidas, o braço à frente como se guarnecido pelo poncho, a direita movediça em curtas fintas, Goyo e Horácio procuravam marcar-se.

Parou a brincadeira quando Horácio jogou sobre a cara as pontas do lenço que levava ao pescoço, procurando dissimular a risca de tisnado que lhe atravessava a bochecha.

— És mui pesado — disse Goyo.

— Isso já teve que dizer tua irmã.

— Desde quando comemos porco em casa?

Interrompeu a algazarra a entrada do patrão, homem de aspecto ríspido. Dom Segundo adiantou-se para cie, dizendo-lhe o objeto de sua vinda. Saíram conversando e a cozinha caiu num silêncio de igreja.

Dom Segundo comeu conosco e disse que se havia ajustado para começar a doma essa mesma tarde. Valério ficou de pôr as éguas no curral quando baixasse um pouco o sol, para que sofressem menos.

— Se necessita algum maneador, rédeas ou outra coisa, posso emprestar o que quiser.

— Obrigado, creio que tenho tudo.

Apesar de minha fadiga, não pude dormir a sesta, pensando como faria para assistir à doma.

Sabia que o patrão havia recomendado a Dom Segundo o maior cuidado, por seu peso; mas até onde se pode evitar que um potro corcoveie?

Chegado o momento, arrumei-me para levar ao monturo dos sangões umas cargas de arames rotos, ferros velhos e varetas quebradas. Andando pelo caminho, cruzaria pela cancha e talvez me coubesse a sorte de presenciar o trabalho.

Adveio o que eu previra. As três primeiras éguas saíram mansas, dando trabalho só aos padrinhos. A quarta quis livrar-se da carga que lhe pesava no lombo, mas foi vencida pelas mãos potentes do domador, que a impediam de abaixar a cabeça.

A quinta foi vinho de outra pipa e, como não podia correr, corcoveou furiosamente, às voltas, do modo mais duro e perigoso.

Tive a sorte de que isso coincidisse com meu regresso dos sangões, e de perto ouvi o grito abafado do animal, o ruído das caronas, o golpear descompassado das patas contra o solo, em cujo apoio a égua buscava desesperadamente o contragolpe brusco. Mas o corpo do homem grande estava como parafusado nos bastos, enquanto a cara brônzea dizia do esforço e a boca entreaberta arquejava breves palavras.

— Deixe-a deste lado... atraque-se à direita pra ver se se levanta... agora sim... até que tome fôlego.

Os padrinhos tratavam de seguir aquelas ordens, ainda que não houvesse outro remédio senão ficar a distância, esperando intervir de modo eficaz. A égua já não relinchava. Dom Segundo calou-se.

Era como se ambos estivessem atentos a um intenso trabalho mental, feito de astúcias e surpresas, de resistência e galhardia.

O animal, já vencido, resistiu passivamente aos tirões que lhe deviam abrandar a boca. Dom Segundo desmontou de um salto agi], que o colocou a distância prudente. Sua respiração buscava profundamente satisfazer-lhe a ânsia de ar, levantando seu amplo tórax. Tinha as mãos ainda crispadas de haver apertado as rédeas, e as pernas moldadas pelos arreios arqueavam-se sobre os pés, como para firmar seu equilíbrio; e os ombros, atirados para trás a fim de aliviar o peito, pareciam ter prazer em sentir sua capacidade de domínio.

Lastimosa, a égua, cujo cogote suado mal podia sustentar a cabeça, arquejava trabalhosamente, os vazios trémulos e cavados.

— Esta não é como a zaina — disse Valério com certa satisfação.

— Não, senhor — replicava Dom Segundo com sua espantada voz de falsete —, esta é alazã.

De súbito lembrei-me de que estava, com meu petiço Sapo e minha carrocinha de varal à cincha, abrindo a boca nas barbas do próprio patrão, e um susto repentino fez-me castigar o pobre matungo, tomando o rumo do casario, ao compasso do férreo canto do forcado, que matraqueava sobre as planchas. Dê-lhe música, irmão, e move-me estes ossinhos!

À ave-maria, o senhor mandou-me chamar para que lhe cevasse uns mates, à sombra já escura de um pátio de cinamomos. Para isso tive de ir à cozinha da casa. A cozinheira que me entregou a cuia fez-me longas recomendações, quase chegando a dizer que o patrão me engoliria vivo se visse nadarem alguns pauzinhos da erva na boca de prata da cuia.