Acendido pelo espetáculo, alentado pelas duas canhas que me bailavam na cabeça, lembrei-me do meu projeto de pouco antes.
— Quem me dá uma de mãozinha pra encilhar meu potrilho?
— Pra quê?
— Pra montar.
— Vai te deixar moído.
— Não faz mal.
— Eu te ajudo — disse Horácio —, ainda que não seja mais que pra tomar café esta noite no velório.
Às risadas e ao compasso de dichotes, agarraram e encilharam meu petiço, mais depressa que o necessário para eu pensar na minha temeridade. Horácio tomou o potrilho pela orelha, deu-lhe uns safanões.
— Quando quiser, irmão.
De mansinho aproximei-me, pus o pé no estribo e boleei a perna, tratando de não despertar muito logo as cócegas do zebruninho.
As chacotas punham-me nervoso. Para que lado iria sair o petiço? Como pré veria eu o primeiro movimento'?
Tinha que acabar de uma vez e, tomando minha coragem com ambas as mãos, depois de ter-me acomodado da maneira que me pareceu mais eficiente, dei a voz de mando.
— Larguem no mais!
O petiço não se moveu. Por roeu lado, não via bem claro. Diante de mim adivinhava um cogote fraquito, ridículo, um pouco torcido. Ao mesmo tempo notei que minhas mãos suavam e tive medo de não me poder firmar nas rédeas.
— Pra quando é? — gritou atrás de mim uma voz que não soube a quem atribuir.
Mais envergonhado que por uma bofetada, senti o ridículo de minha espera e, ao azar, apliquei pela cabeça do petiço uma rebencada. Experimentei um doloroso tirão nos joelhos e desapareceu para mim toda noção de equilíbrio. Para mal de meus pecados, dobrei o corpo para a frente e o segundo corcovo foi-me anunciado por um golpe seco nos assentos, que se estendeu ao corpo em desconcertante sacudida. Abri bem os olhos prevendo a queda e dobrei-me dessa vez para trás, pois via o chão subir para mim, não dando já com os olhos nem no cogote nem na cabeça do petiço.
Outra vez repetiram-se os tironaços, que pareciam querer desconjuntar-me os ossos, mas, sentindo os joelhos firmes e alentados por um "agora!" dos companheiros, voltei a aplicar outro rebencaço no meu potro. Mais e mais corcoveios seguiram-se com rapidez. Parecia-me que já iam a cem e minhas pernas se enchiam de câimbra. Um joelho escapou do pelego; julguei-me perdido. Os arreios desapareceram debaixo de mim. Desesperadamente, vendo-me cair no vazio, larguei-me num manotaço sem rumo. O golpe castigou-me o ombro e as cadeiras com tal violência que me fez perder os sentidos. A grande custo, contudo, alcancei pôr-me de pé.
— Te machucaste? — perguntou-me Valério, que não se apartara de meu lado durante minha má gineteada.
— Nada, irmão, não me fez nada — respondi, esquecendo o respeito devido a meu capataz.
A uns trinta metros, Dom Segundo tinha atirado o laço ao fugitivo e corri em sua direção.
— Segure pra mim!
— Pra chorar logo o finadinho? — riu Goyo.
— Não, sério, segurem-me este maula que le vou fazer roncar na guasca.
— Deixe p diversão.
— Me parece — disse Dom Segundo — que, se este não se sossega, vamos ter que mandar pra gaiola das tias.
Horácio trouxe-me embuçalado o petiço do filho do Festal.
VIII
No pampa as impressões são rápidas, espasmódicas, para logo se esfumarem na amplidão do ambiente, sem deixar rastro. Assim foi que todos os rostos voltaram a ser impassíveis e assim foi também que esqueci meu recente fracasso, sem guardar seus naturais dissabores. A estrada era semelhante à estrada anterior, o céu permanecia tenazmente azul, o ar, ainda que pouco mais quente, cheirava do mesmo modo, e o tranco do meu petiço era apenas mais vivo.
A novilhada andava bem. As tropilhas, que iam adiante, chamavam sempre com seus cincerros claros. Os mugidos da madrugada tinham cessado. O matraquear das patas, em compensação, parecia mais nume roso e o pó levantado pelos milhares de pés ia-se tornando mais denso e branco.
Animais e pessoas, moviam-se como presas de uma ideia fixa: caminhar, caminhar, caminhar.
As vezes um novilho retardava-se mordiscando o pasto da estrada, e havia que lhe dar um atropelão.
Influído pelo coletivo balanceio daquela marcha, deixei-me ir no ritmo geral e fiquei numa semi-inconsciência, que era torpor, apesar de meus olhos abertos. Assim me parecia possível andar indefinidamente sem pensamento, sem esforço, acalentado pelo vaivém embalador do tranco, sentindo em minhas espáduas e ombros o apertão do sol como um conselho de perseverança.
As dez, o couro das costas dava-me uma sensação de efervescência. O petiço tinha o cogote molhado. A terra soava muito forte sob as patas sempre levianas.
Às onze, tinha inchadas as mãos e as veias. Os pés pareciam dormentes. Doíam-me o ombro e o flanco machucados. Os novilhos andavam mais pesadamente. A pulsação latejava-me as têmporas de modo embrutecedor. A meu lado, a sombra do petiço diminuía desesperadamente devagar.
As doze, íamos sobre as próprias sombras, sentindo assim maior desamparo. Não havia ar e o pó envolvia-nos como querendo esconder-nos numa nuvem amarelenta.
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