Os novilhos começaram a babar compridos filamentos mucosos. Os cavalos estavam cobertos de suor, e as gotas que lhes caíam das testas salgavam-lhes os olhos. Tinha vontade de dormir, numa renúncia total.
Por fim chegamos à estância de um tal Dom Feliciano Ochoa. A sombra do arvoredo refrescou-nos deliciosamente. A pedido de Valério, deram-nos licença de pôr a tropa num potreirinho de bom pasto, provido de aguada, e apeamos dos cava los com as roupas amarrotadas nas pernas, caminhando como patos recém-desmaneados. Rumo à cozinha, as esporas atrapalhavam-nos o passo arrastado. Saudamos a peonada, tiramos os chapéus para aliviar as testas suadas e aceitamos uns mates, enquanto no fogão colocávamos nosso churrasco de tropeiros e atiçávamos o fogo.
Não tomei parte na conversa que logo se animou entre os forasteiros e os de casa. Tinha o corpo ressequido como charque e não pensava senão na comida e em me acostar, ainda que no chão de tijolos.
— Continuarão andando quando acabarem de comer?
— Não, senhor — respondeu Valério. — O tempo está mui pesado pros animais... Pensamos, com sua licença, tirar antes uma sestinha e caminhar um pouco à noite, se Deus quiser.
Que prazer indescritível me deu aquela resposta! Instantaneamente senti os membros relaxarem num descanso aliciador e toda disposição voltou a mim como por encanto.
— Lindo! — exclamei, cuspilhando entre dentes.
— Um dos peões olhou-me sorridente: — Hás de ser novo no ofício.
— Sim — disse como para mim —, sou um novo que se vai gastando.
— Oh! — comentou um velho —, antes de gastar-te, tens que ir pra riba.
— Se é apuradaço — replicou Pedro Barrales. — Já montou hoje um potrilho; ia-se despencando pela paleta, mas não queria afrouxar o rebenque. É dos que morrem matando.
— Bom rapaz! — disse o velho com os olhos risonhos de simpatia. — Toma um mate doce pelo gaúcho que és.
— Lo terei merecido quando não me despenque, Dom.
— Será amanhã, então.
— Quem sabe — interveio Goyo — não será melhor largar o zebruno.
— Claro! — sublinhei. — Pra ver como correm pelo campo meus vinte pesos.
— Não — voltou a interromper o velhinho — se é sabidaço pra o retruque.
— Oh! — garantiu Dom Segundo —, se é pelo bico não se perde. Não cala nem que lhe inche a tromba. É da mesma marca dos papagaios barranqueiros.
— Já me castigaram — arrematei encolhendo os ombros, como para prevenir um golpe, e não falei mais.
Um guri de uns doze anos tinha-se abancado perto de mim e olhava minhas esporas, minhas mãos feridas na gineteada, meu rosto coberto pelo pó da tropa, com a mesma admiração com que dias antes observara eu a Valério ou a Dom Segundo. Sua ingênua prova de curiosidade admirativa era meu diploma de tropeiro.
Para que eu dormisse a sesta, o mesmo guri prontificou-se a indicar-me um lugar conveniente, o que me deixou quase tão agradecido como por suas manifestações de muda simpatia.
Por volta das quatro, achávamo-nos outra vez na estrada. As despedidas tinham sido cordiais depois de uns poucos mates, e eu me sentia como recém-parido por me ter banhado o rosto num balde e sacudido a terra com a blusa. Aos mancarrões lhes roncava a água na pança, e a tropa, tendo tido tempo de espojar-se e dar algumas bocadas de grama, encontrava-se mais bem-disposta.
Tínhamos, ademais, a promessa vizinha do frescor noturno; e isso de ir aos poucos melhorando, até alcançar um descanso, mantém acesa a esperança fundada.
Já à saída da estância, fui até a frente das tropilhas, onde me entretive em olhar o caminho e o casario distante, a fim de gravar tudo na memória, amealhando assim meu capital de futuro vaqueano.
Às duas horas de marcha, como íamos passar junto de um posto, Goyo chegou até mim para me transmitir uma ordem de Valério.
— Vem comigo... Vamos carnear um cordeiro e depois alcançamos a tropa.
— Não sirvo, irmão, pra esse trabalho.
— Não faz mal. Te vais acostumando. Enquanto a tropa seguia seu caminho, apeamos, no rancho, cujo dono nos recebeu como a velhos conhecidos.
— Um borrego? — disse quando Goyo lhe explicou nossa necessidade de carne — em seguidinha no mais.
Não houve discussão de preço.
Goyo era perito e ligeiro. Minha atarefada inutilidade fazia-me rir sem descanso. Mal tinha eu rasgado o couro de uma pata, quando já sua faca, vinda pela barriga, ameaçava-me com a ponta. Com talhos largos e certeiros separava o couro da carne e, uma vez aberta a brecha, metia nela o punho com o qual rapidamente procedia ao coureio do animal. Fazendo primeiro um círculo com a lâmina em redor das juntas, quebrou as quatro patas na última articulação. Entre o tendão e o osso do garrão abriu um furo em que passou a presilha do cabresto e, encostando-se a uma árvore, atirou por sobre um ramo a ponta oposta, na qual nos penduramos, eu e ele, até ficar suspensa a rês.
Rapidamente abriu-lhe a barriga, tirou a trancos e barrancos o unto, despojou o ventre dos desperdícios, o tórax dos bofes, fígado e coração.
— Pra isto é que me chamaste? — perguntei estupidamente inativo, envergonhado de minhas mãos dependuradas também como desperdícios.
— Agora me vais ajudar a levar a carne.
Acabada a carneação, metemos cada qual seu meio borrego num saco de estopa, que atamos nos tentos, e, despedindo-nos do posteiro, que nos fez servir uns mates por uma chininha magricela e chucra, fomo-nos a trote de zorrilho até alcançar a tropa, que por certo não se havia distanciado muito.
Mais apoucado por minha ignorância como carneador que por minha aventura da manhã, fui-me de novo para diante, mascando raiva. Horas antes tinha visto o bom lado da taba, quando o piá da casa de Dom Feliciano olhava com assombro minhas prendas e posturas de tropeiro; mas não me tinha lembrado que nesse jogo o osso tem um outro lado, designado por um nome malcheiroso; este eu só o via quando minha imperícia de bisonho topava com uma das tantas realidades do ofício.
Quantos outros desenganos me esperavam?
Antes de andar "bancando o bom", tinha por certo que aprender a carnear, laçar, peai ar, domar, correr como o pessoal no rodeio, fazer rédeas, bucais, cabrestos, lonquear, lavrar tentos, trançar botões, tosquiar, tosar, bolear, curar o mal do vaso, a travagem, os formigamentos e sei lá quantas coisas mais. Desconsolado ante tal programa, murmurei a título de máxima: "Uma coisa é cantar só e outra é com guitarra".
Nesses transes, assaltou-me a tarde numa rápida fuga de luz. Acovardado por minha solidão, voltei para junto dos outros, a fim de saber a que hora comeríamos.
Ceamos em campo aberto.
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