Ao redor da cancha demos uma grande volta. Pouco a pouco fui-me envalentonando e cutuquei o petiço, provocando a velhaqueada. Dois ou três corcovos amplos responderam ao meu convite; e eu resisti sem apelar para o recurso aconselhado.

— Já está manso — disse.

— Não o provoques — respondeu simplesmente Dom Segundo, a quem minha manobra não tinha escapado. E, colocando-se alternadamente de um e outro lado, levou-me até o lugar em que os demais tropeiros estavam desjejuando com uns mates, à beira do caminho.

Receberam-nos com gritos e aplausos.

Inchado de orgulho como um peru, rematei meu trabalho tironeando o petiço, segundo as ordens de meu padrinho.

— Agora pra esquerda... Agora pra direita... Agora firme no mais, até que recue.

E assanhava-me a cada tirão, fazendo tremelicar o focinho de minha vítima, tal como vira fazerem os outros.

— Está bom. Podes desmontar. Agarra-te no fiador do bucal e abre-te bem pra cair longe.

Cheio de confiança, despachei-me.

— Moço leviano — exclamou Pedro Barrales.

Quando quis desencilhar dei conta de que, por haver-me excedido nos tirões, tinha dilaceradas as mãos, das quais a esquerda sangrava abundantemente.

— Te machucaste — disse Horácio percebendo minha olhadela. — Deixa no mais teu redomão, que eu le vou baixar os couros.

Não me fiz rogar, porque sentia agudas ferroadas, que me subiam até o cotovelo. Envolvi a ferida com um lenço, que Pedro me ajudou a atar.

— Estão ressequidas as rédeas — disse a modo de desculpa.

— Deixa isso no mais — interveio Goyo —, e chega-te pra tomar uns tragos da guampa, que bem mereces.

Com explicável alegria recebi aquela oferta, que se apresentava como o mais precioso dos prêmios.

Meia hora depois, como se esgotassem os elogios e as palmas, e a erva, tornamos às nossas impassíveis atitudes de tropeiros. Mas eu levava em mim um tesouro de satisfação, que saboreava em grandes sorvos com o ar jovem da manhã.

Entrementes, as nuvens densas amontoadas no horizonte haviam recoberto o céu e, quando a tropa em marcha voltava ao aperto do corredor, as primeiras gotas soaram de um modo opaco e precipitado.

Como, apesar da hora matinal, sentíssemos calor, foi antes um gozo aquele tamborilar fresco.

Alguns começaram a arrumar seus ponchos; eu esperei.

Olhando o céu, coligimos que aquilo era o prelúdio de coisas mais sérias.

A terra tinha-se posto a despedir perfumes intensos. A pastagem e os cardos esperavam com paixão certa. O campo inteiro escutava.

Logo um novo crepitar de gotas levantou rente da estrada uma sutil polvadeira. Parecia que nosso caminho se havia iluminado de um tênue resplendor.

Dessa vez me acomodei o calamaco7, preparando-me para enfrentar a chuvarada.

A água precipitou-se, interceptando-nos o horizonte, os campos e até as coisas mais próximas.

Os tropeiros distribuíram-se ao longo da novilhada, para cercar de mais perto a marcha.

— Água! — gritou Valério, entreverando-se a pechadas entre os animais.

Por minha parte, entretive-me em sentir sobre o corpo o cerrado martelar das gotas, perguntando-me se o poncho me defenderia delas. Meu chambergo soava oco e logo de suas bordas começaram a formar-se goteiras. Para que a água não me caísse no pescoço, dobrei sobre a testa a aba, baixando-a atrás, a fim de que o chorrinho escorresse pelas costas.

A primeira reação ante a chuva, segundo mais tarde pôde inferir minha experiência, é o riso, embora muitas vezes nada de bom nos traga a perspectiva da molhadura. Rindo, pois, aguentei aquele primeiro ataque. Mas tive muito logo que deixar de pensar em mim, porque a tropa, desgostada pelo aguaceiro que a cegava de frente, queria dar-lhe anca e fazia-se rebelde à marcha.

Como os demais, tive que me introduzir entre o gado, distribuindo sopapos e rebencaços. A cada grito enchia a boca de água, obrigando-me a cuspir sem descanso. Com os movimentos, percebi que meu ponchozinho era curto, o que me proporcionou o primeiro desgosto.

Em meia hora, tinha os joelhos empapados e as botas como cisterna.

Comecei a sentir frio, embora lutasse mesmo com vantagem contra ele. O lenço no pescoço já não servia de esponja e, tanto pelo peito como pelo espinhaço, senti que me desciam dois carreiros de frio.

Assim, logo fiquei ensopado.

O vento, que trazíamos de frente, aumentou, fazendo mais duro o castigo, e, apesar de que a seu impulso o ar se fizesse mais claro, não foi tanto o alívio para que deixássemos de desejar um próximo fim.

Acovardado, olhei meus companheiros, pensando encontrar neles um eco das minhas tribulações. Sofreriam? Em seus rostos indiferentes, a água resvalava como por sobre os moirões, e não pareciam mais feridos que o próprio campo.

A estrada, que fora uma nota clara em relação aos campos, estava lôbrega. Diante da tropa a vereda rebrilhava acerada; atrás tudo ia ficando trilhado por duas mil patas, cujas pisadas soavam no barrai como mastigação de ruminante. Os cascos do meu petiço resvalavam, dando maior maciez a seu tranco. Em certos trechos, a terra dura parecia tão envernizada que refletia o céu como um arroio.

Duas horas passei assim, olhando em redor o campo hostil e brunido.

As roupas, pegadas ao corpo, eram como febre em período álgido sobre meu peito, meu ventre, minhas coxas. Tiritava continuamente, sacudido por violentos estirões musculares, e dizia-me que se fosse mulher havia de chorar desconsoladamente.

Súbito uma abertura se fez no céu. A chuva amiudou numa sutil poeira de água e, como cedendo a meu angustioso desejo, um raio de sol caiu sobre o campo, correu quebrando-se nos matos, perdendo-se nas baixadas, encarapitando-se nas lombas.

Aquilo foi o primeiro anúncio de melhora que, ao cabo de uma breve dúvida, veio tombar em benéfico esbanjamento solar.

Mourões, alambrados, cardos choraram de alegria. O céu fez-se enorme e a luz calcou forte sobre o chão.

Os novilhos pareciam ter vestido roupas novas, bem como nossos cavalos, e mesmo nós tínhamos perdido as rugas feitas pelo calor e a fadiga, para ostentar uma pele esticada e lustrosa.

O sol logo criou um bafo de evaporação sobre nossas roupas. Tirei o poncho, abri a blusa e a camiseta, joguei para a nuca o chambergo.

A tropa, farejando o campo, fez-se mais difícil de cuidar. Tivemos que correr, arriscando resbaladas e prancheaços.

Uma vida poderosa vibrava em tudo e senti-me novo, fresco, capaz de sobrelevar todas as penúrias que me impusesse a sorte.

Entretanto, a vitalidade excedente ficou recolhida em nossos corpos, pois dela teríamos necessidade para arrostar os próximos inconvenientes e, sem esparrames em inúteis entreveres, voltamos a cair em nosso ritmo contido e obstinado: Caminhar, caminhar, caminhar.



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7 Calamaco: Poncho ordinário, tecido com lã tingida, fabricado nas províncias do norte da Argentina.




X



Tirei-lhe o freio, que mal estava acostumando a cascar; afrouxei-lhe o maneador o mais possível, para que bebesse tranquilo.

O baio chegou-se à água, que roçou com focinho cauteloso, e, apressado pela sede, bebeu a sorvos interrompidos, sem afastar de mim seu olho vivaz.