Perto da estrada havia uma canhada com uns salsos, de onde trouxemos alguns ramos secos. O resplendor da chama deu-nos aos semblantes uma severa aparência de cobre, enquanto de cócoras formávamos um círculo de espera. As mãos, manejando a faca e a carne, apareciam luzidias e duras.
Tudo era quietude, salvo o leve soar dos cincerros e os nostálgicos mugidos da boiada.
Na canhada coaxaram as rãs, quebrando o uniforme cricri dos grilos. Os tachãs delatavam nossa presença, a intervalos preguiçosos. Os galhos verdes de nossa lenha silvavam, para rebentar como longínquas bombas de procissão. Sentia a dor do cansaço mudar de lugar em meu pobre corpo e parecia-me ter a cabeça apertada sob um pelego.
Não tínhamos água e havia que sofrer a sede por umas horas.
Novamente, ao andar da tropa, prosseguimos nossa viagem.
Em cima de nós o céu estrelado parecia um olho imenso, cheio de luminosa areia de sonho.
Cada passo propagava manadas de dores por meus músculos. Quantos vaivéns do tranco teria que aguentar ainda?
Já não sabia se nossa tropa era um animal querendo ser muitos, se muitos querendo ser um. O andar desarticulado do enorme conjunto entontecia-me, e, se olhava para a terra, porque meu petiço mudava de rumo ou torcia a cabeça, sofria a ilusão de que o solo todo se movia como uma informe pasta carnosa.
Quisera ter podido dormir a cavalo, como os tropeiros velhos.
Ninguém se ocupava já de mim. O pessoal ia atento à animalada, temendo que algum se desgarrasse. Ouvia-se de vez em quando um berro. Os quero-queros gritavam à nossa passagem e as corujas começavam a brincar de esconder, chamando-se com gargantas de veludo.
Não se avistava nenhuma casa.
De súbito, dei conta de que havíamos chegado. Perto já, vimos o grande vulto escuro de um casario e a estrada ficou larga como um rio que chega à lagoa.
Goyo, Dom Segundo e Valério iam fazer a ronda, segundo ouvi dizer.
Estávamos no local de uma feira, nas redondezas de um pueblo.
Perto das tropilhas desenfreei meu petiço e baixei-lhe os arreios.
Sob um telheiro de zinco atirei minhas prendas ao chão e me deixei cair por cima, como cai um pedaço de barro de uma roda de carreta.
Uma rebencada quase insensível me pegou pelas paletas.
— Te faz de duro, rapaz!
E me pareceu reconhecer a voz de Dom Segundo.
IX
Goyo teve de me arrastar pelo menos uns três metros, puxando-me pelos pés, para poder despertar-me.
— Tá que és dorminhoco... que já estava quase por fazer-te a prova que se faz no tatu pra tirar da toca.
— Já nos vamos?
— Daqui a pouco.
Querendo-me aprumar, fiz um esforço inútil.
— Não podes te levantar?
— Mal que mal — respondi enquanto lograva tomar posição de gente.
— Que te dói? — riu Goyo.
— A pancada — aleguei para não confessar minha fadiga.
— Onde, aqui?
— Ahã! — exclamei retirando rapidamente o braço de Goyo que me apertava. Porém aquilo era na realidade uma farsa. O que me doía eram o ventre, as virilhas, as coxas, as paletas, as pernas.
— Estarás estropiado?
— Assim que me mova, passa.
Fazendo um dolorido esforço, saí caminhando sem dar mostras de meu sofrimento. O dia nublado mal começava a clarear.
— Teremos chuva?
— Sim.
— Onde está Dom Segundo?
— Na tropilha, encilhando.
Guiado pelos cincerros, caminhei até ver a grande silhueta do paisano, avultada pela noite.
— Bom-dia, Dom Segundo.
— Bom-dia, rapaz. Estava esperando pra falar-te.
— Diga, Dom.
— Vais encilhar outra vez teu potrilho?
— Por que não?
— Bueno, vou te ajudar pra que não andes servindo de palhaço do pessoal. Aqui ninguém nos vai ver e vais fazer o que eu te mandar.
— Como não, Dom Segundo.
Dos tentos de sua encimeira vi-o tirar o laço. Em seguida tomou meu bucal, revistou o cabresto, que era forte, e ordenou-me que o seguisse.
Na luz incerta da madrugada chovediça, dirigiu-se ao meu zebruninho fazendo a armada. O petiço, meio dormido, não teve tempo de safar-se. O laço cingiu-lhe no alto do cogote, e Dom Segundo, sem se dar sequer a pena de firmar-se nas virilhas, conteve sua presa.
— Vai trazendo os arreios.
Ao voltar encontrei já meu potrilho sujeito a um poste por três voltas de cabresto e enredeado.
Com paciência, Dom Segundo foi colocando baixeiros, bastos e cincha. Quando puxou da correia, o potrinho quis debater-se, mas já era tarde. Os pelegos completaram rapidamente a encilhada.
Assombrado, contemplava eu o domínio daquele homem, que tratava meu petiço como a um cordeiro guacho.
Enquanto apertava a sobrecincha e desatava o zebruninho do poste, trazendo-o para o meio da cancha, Dom Segundo me instruía:
— O homem não deve passar por bobo. Dos muitos ginetes que vês agora, muitos foram maturrangos e só aprenderam à força de esperteza. Ao montar, te agarra bem no cabeçote e não te envergonha, que eu não vou andar contando, e não te solta até que te sintas bem seguro. Estás me entendendo?
— Ahã.
— Bom.
O cavalo de Dom Segundo estava a dois passos, pronto para apadrinhar-me. Antes de subir, olhei em redor, pois, apesar dos conselhos do homem que entre todos merecia meu respeito, ficaria aborrecido se os outros me pilhassem trapaceando.
Tranquilizado com minha inspeção, subi cautelosamente, não sem que me tremessem um pouco as pernas. Apenas me tive sentado, a dor na virilha e nas coxas tornou-se quase insuportável; mas era mau momento para afrouxar e acomodei-me o melhor possível.
— Não lo movas pra ver se me dá tempo de montar. Como se entendesse, o petiço ficou quieto, até que meu padrinho chegou-se a meu lado.
Dom Segundo levantou o rebenque. O petiço alçou a cabeça e deitou a correr sem intentar mais defesa.
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