Dos meus petiços, um minhas tias emprestaram ao filho do lojista Festal, que eu aborrecia por orgulhoso e maricas. Meus avios de montaria foram parar no desvão do telheiro, sob o pretexto de que eu não os usava.

Minha solidão fez-se maior, porque a gente já começava a cansar de divertir-se comigo e eu não me afanava tanto em entretê-la.

Meus passos de pequeno vagabundo levaram-me até o rio. Conheci o filho do moleiro Manzoni e o negrinho Coruja, que, apesar dos seus quinze anos, ficara surdo de tanto andar sob a água.

Aprendi a nadar. Pesquei quase todos os dias, porque disso tirava logo proveito.

Gradualmente, minhas recordações foram-me trazendo aos momentos então presentes. Voltei a pensar no bom que seria ir-me, porém mesmo esta ideia desvanecia-se na tarde, em cujo silêncio o crepúsculo começava a erguer suas primeiras sombras.

O barro das margens e os barrancos tinham-se tornado cor de violeta. As toscas ribanceiras exalavam um resplendor de metal. As águas do rio fizeram-se frias a meus olhos e o reflexo das coisas na superfície serenada tinha mais colorido que as próprias coisas. O céu distanciava-se. Mudavam-se as tintas áureas das nuvens em vermelho, o vermelho em pardo.

Junto a mim, tomei a fieira de bagrezinhos "duros pra morrer", que ainda pulavam no desespero de sua asfixia lenta, e, envolvendo a linha no caniço, cravando o anzol na cortiça, pus-me a andar rumo ao pueblo, onde começavam a piscar as primeiras luzes.

Sobre o espalhado casario baixo, a noite ia dando vulto ao velho campanário da igreja...



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4 Guacho — A criança ou animal sem pais; palavra ofensiva que equivale a um dos piores insultos que se pode fazer a um gaúcho.

5 Aranha — Carro leve de dois lugares e rodas altas, puxado por um cavalo, muito comum na campanha, onde é chamado geralmente de sulque.




II



Sem pressa, caniço ao ombro, sacudindo irreverente minhas pequenas vítimas, dirigi-me ao pueblo. O chão estava ainda encharcado por um recente aguaceiro e eu tinha de andar cauteloso para não me atolar no barro, que aderia tenazmente às minhas alpargatas, ameaçando deixar-me descalço.

Sem pensamentos, segui a estreita senda que, junto das touceiras de sina-sina, espinilho ou tuna, ia buscando altura como lebre para correr pelo parelho.

O caminho diante de mim estendia-se escuro. O céu, ainda zarco de crepúsculo, refletia-se nos charcos de forma irregular ou nas águas empoçadas nos profundos carris de alguma carreta, em cujos sulcos tomava aspecto de aço cuidadosamente recortado.

Havia já entrado na área das quintas, onde a hora ia despertando a desconfiança dos cães. Um incontido temor bailava-me nas pernas quando ouvia de perto o rosnar de algum mastim perigoso; mas, sem equívocos, eu os chamava pelos nomes: Sentinela, Capitão, Advertido. Quando algum cusco irrompia em tão afoito quanto inofensivo alarido, olhava-o com tal desprezo que valia mesmo por uma pedrada.

Passei ao lado do cemitério e um conhecido arrepio castigou-me a medula, irradiando seu pálido calafrio até as pernas e os braços. Os mortos, os fogos-fátuos, as almas do outro mundo por certo me atemorizavam mais que os possíveis maus encontros naquelas paragens. Que podia esperar de mim o mais refinado bandido? Eu conhecia de perto as caras mais velhacas, e quem por inadvertência me atalhasse o caminho quando muito conseguiria que eu lhe filasse um cigarro.

A estrada fizera-se rua, as quintas, quadras; e os renques de cinamomo, como as cercas de taipa, não tinham para mim segredos. Aqui havia alfafa, ali um milharal, um curralão, ou simplesmente a macega. A pouca distância divisei os primeiros ranchos, miseravelmente silenciosos e alumiados pela débil luz de velas ou de lampiões de malcheiroso querosene.

Ao cruzar uma rua, espantei desprevenido um cavalo, cujo tranco me parecera mais distante, e, como o medo é contagioso, mesmo de besta a homem, fiquei pregado no lamaçal, sem me animar a seguir. O ginete, que me pareceu enorme sob o poncho claro, reboleou a guasca do rebenque junto ao olho esquerdo do seu redomão; mas, como intentei dar um passo, o animal bufou como mula, abrindo-se em disparada solta. Uma poça despedaçou-se sob suas patas, estalando como vidro quebrado. Ouvi uma voz aguda dizer com calma:

— Vamos, pingo... Vamos, vamos, pingo...

Logo o trote e o galope chapetearam no barro mole. Imóvel, olhei distanciar-se, estranhamente avultado contra o horizonte luminoso, aquele perfil de cavalo e cavaleiro. Pareceu-me ver um fantasma, uma sombra, alguma coisa que passa e é mais uma ideia que um ser; algo que me atraía com a força de um remanso, cuja fundura sorve a corrente do rio.

Com a visão dentro de mim, alcancei as primeiras veredas sobre as quais pude apurar o passo.

Mais forte que nunca, apoderou-se de meu ser o desejo de ir-me para sempre daquele lugarejo miserável. Entrevia uma vida nova, feita de movimento e espaço.

Absorto nos meus cismares, cruzei o pueblo, saí para a escuridão de outro caminho e parei em La Blanqueada.

Para vencer a luz que me ofuscava, apertei bem os olhos ao entrar na pulperia. Atrás do balcão estava o pulpeiro, como de costume; e de pé, a sua frente, o índio Burgos dava cabo duma canha.

— Boas-tardes, senhores.

— "Buenas" — respondeu apenas Burgos.

— Que trazes? — inquiriu o pulpeiro.

— Aí tem, Dom Pedro — disse, mostrando minha fieira de bagrezinhos.

— Muito bem. Queres um pedaço de rapadura?

— Não, Dom Pedro.

— Uns pacotes de La Popular?

— Não, Dom Pedro... lembra-se da última pratinha que me deu?

— Sim.

— Era redonda.

— E fizeste-a rodar.

— Ahã.

— Bom, tá aí — rematou o homem, fazendo soar sobre o balcão umas moedas de níquel.

— Vais pagar o trago? — sorriu o índio Burgos.

— Na pulperia das Ganas — respondi contando meu capital.

— Há algo de novo no povo? — perguntou Dom Pedro, a quem eu costumava servir de noveleiro.

— Sim, senhor... um de fora.

— Donde viste?

— Topei com ele numa encruzilhada, quando voltava do rio.

— E não sabes quem é?

— Sei que não é daqui... não há nenhum homem tão grande no povo.

Dom Pedro franziu as sobrancelhas, como se concentrado numa recordação.

— Escuta, é um bem escuro?

— Me pareceu... sim senhor...