Palavra estrangeira, ou de gíria, só entra no centro da cidade se estiver aspada ou grifada.
— Olhem! — gritou Emília. — Aquela palavrinha acolá acaba de tirar do bolso um par de aspas, com as quais está se enfeitando, como se fossem asinhas. . .
— É que recebeu chamado para figurar nalguma frase lá no centro e está vestindo o passaporte. Trata-se da palavra francesa Soirée. Reparem que perto dela está outra a botar-se em grifo. É a palavra Bouquet. . .
— Judiação! — comentou Narizinho. — Acho odioso isso. Assim como num país entram livremente homens de todas as raças —
italianos, franceses, ingleses, russos, polacos, assim também devia ser com as palavras. Eu, se fosse ditadora, abria as portas da nossa língua a todas as palavras que quisessem entrar — e não exigia que as coitadinhas de fora andassem marcadas com os tais grifos e as tais aspas.
— Mesmo assim — explicou o rinoceronte — muitas palavras estrangeiras vão entrando e com o correr do tempo acabam
"naturalizando-se". Para isso basta que mudem a roupa com que vieram de fora e sigam os figurinos desta cidade.
Bouquet, por exemplo, se trocar essa sua roupinha francesa e vestir um terno feito aqui, pode andar livremente pela cidade. Basta que vire Buquê. . .
Perto havia uma elevação donde se descortinava toda a cidade; o rinoceronte levou os meninos para lá.
III
Gente importante e gente pobre
A cidade de Portugália dava a idéia duma fruta incõe — ou de duas cidades emendadas, uma mais nova e outra mais velha. A separação entre ambas consistia num braço de mar.
— A parte de lá — explicou o rinoceronte — é o bairro antigo, onde só existiam palavras portuguesas. Com o andar do tempo essas palavras foram atravessando o mar e deram origem ao bairro de cá, onde se misturaram com as palavras indígenas locais. Desse modo formou-se o grande bairro de Brasilina.
— Compreendo — disse Pedrinho. — Para cá é a parte do Brasil e para lá é a parte de Portugal. Foi a parte de lá, ou a cidade velha, que deu origem à parte de cá, ou a cidade nova.
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