Ao longo de todo o romance, composto de 121 capítulos, ninguém se casa, comete adultério, deixa ou recebe herança; das transições fundamentais da vida humana, há apenas a morte de duas personagens. Assim, os motores principais do romance do século xix estão deliberadamente desativados, a ponto de terminarmos o livro com a sensação de que nada aconteceu.
De fato, a obra ideal aqui parece ser uma obra sobre o nada, capaz de imitar a passagem do tempo, como fica sugerido num trecho lapidar: “o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro”.1
Aqui temos dois gêmeos, Pedro e Paulo, que teriam brigado desde o útero da mãe. O tempo principal da história se passa entre os inícios das décadas de 1870 e 1890. O período compreende o começo da derrocada do Império, que tem um de seus marcos na promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, e os primeiros anos da República, quando já era possível aquilatar os impasses e os novos (e velhos) padrões de violência trazidos pelo novo regime.
Os irmãos, para os quais a famosa cabocla do Castelo prevê grande futuro, desde cedo divergem em tudo. Pedro é monarquista e Paulo é republicano; um admira Luís xvi e o outro admira Robespierre; um decide estudar medicina no Rio e o outro vai fazer direito em São Paulo. Discordam menos por convicções individuais do que pela necessidade algo primária de se distinguir pelas oposições. Eles só concordam numa coisa, e mesmo essa concordância é apenas outro modo de radicalizar a divergência: ambos se apaixonam pela mesma moça, Flora, que por sua vez jamais consegue se decidir por um dos dois.
A dúvida e a oscilação, matérias recorrentes na ficção de Machado, se tornam aqui o principal impulso da intriga amorosa. Depois de dezenas de capítulos em que a heroína ora pende para Pedro, para imediatamente descobrir uma qualidade nova em Paulo, inclinando-se em seguida para este, para descobrir uma nova qualidade em Pedro, o narrador confronta o leitor com o seguinte comentário, num capítulo intitulado “Não, não, não”:
Se não fora o que aconteceu e se contará por essas páginas adiante, haveria matéria para não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que estes pensaram e sentiram, e o que ela sentiu e pensou, até que o editor dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a história começada ficaria sem fim. Não, não, não… Força é continuá-la e acabá-la.2
Chegando ao terço final do romance, o narrador obriga o leitor a se dar conta de que foi justamente a oscilação entre o sim e o não que ocupou boa parte das páginas. Chega a fazer troça não só do método de composição do seu livro, que gira em falso na sucessão quase indefinida de negações e afirmativas, mas também da paciência do leitor que chegou até ali acompanhando a personagem alternar-se entre sins e nãos, num jogo que tende ao infinito.
Os bastidores da ficção
A rarefação da narrativa não se deve, é claro, à inabilidade ou à falta de imaginação do romancista, insuficiências de que chegou a ser acusado por alguns dos contemporâneos. Desde o início da carreira, Machado insistiu nisso, refreando o ritmo dos acontecimentos narrativos, frustrando deliberadamente a expectativa dos leitores e leitoras acostumados e desejosos de intrigas movimentadas e complicações amorosas. Em vez disso, chamava a atenção para o processo mesmo da construção ficcional. Aqui, a certa altura, inscreve na própria narrativa a possível reação de uma leitora:
Já estou cansada de saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto às blandícias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, às duas, se não é uma só a pessoa…3
Ao que o narrador responde:
Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método. A insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a ser impertinente. Suponha que eles deveras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a leitora me lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que sucedeu e pode ser confirmado por dezenas de testemunhas? Não, senhora minha, não pus a pena na mão, à espreita do que me viessem sugerindo. Se quer compor o livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre dois capítulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras.4
O narrador conduz o leitor aos bastidores da ficção, levantando questões de método e escancarando os procedimentos da escrita. Ao mesmo tempo que rompe com as convenções do ilusionismo ficcional, mostrando o que há por trás das linhas vistas, faz dessa quebra matéria para a construção de um novo tipo de pacto com nós, leitores. O pacto não está mais baseado na suspensão da descrença, mas na manutenção de uma descrença fundamental, de modo que tanto o pacto como o leitor estão sob ameaça permanente. Esse caráter autoconsciente e autorreflexivo dos narradores machadianos, que implica pôr o leitor nesse permanente estado de alerta, atinge seu ápice aqui.
Outra marca da ficção machadiana levada às últimas consequências em Esaú e Jacó é a multiplicação das matrizes narrativas às quais o romance se refere e, consequentemente, das possíveis chaves de interpretação do romance. O Esaú e Jacó do título a princípio remete o leitor aos irmãos do Velho Testamento, filhos de Isaac e Rebeca, que, ainda grávida, sente as crianças lutando dentro dela e, ao consultar Javé, é informada: “Há duas nações em teu seio, dois povos saídos de ti se separarão”.
Entretanto, ao abrir o livro percebemos que os gêmeos do romance não se chamam Esaú e Jacó, mas sim Pedro e Paulo. A remissão se desloca então para os apóstolos fundadores do cristianismo, que a certa altura também entraram em conflito pelo estabelecimento dos princípios de conversão dos pagãos em cristãos. Mas as matrizes mitológicas não se esgotam aí, já que a rede de referências remonta também à Antiguidade clássica. A certa altura os gêmeos brasileiros são comparados a Aquiles e Ulisses, guerreiros homéricos, e também a Castor e Pólux, os gêmeos inseparáveis da mitologia grega, filhos de Leda e Zeus, outro mito baseado na ideia da unidade irremediavelmente dividida.
Num outro nível de alegoria, Pedro e Paulo, que vivem a transição do Império à República, encarnam também a oposição entre os regimes. Um é monarquista, identificado desde o nome com d. Pedro ii; o outro, republicano roxo, leva o nome de São Paulo, um dos centros irradiadores das ideias e do movimento republicano, onde ele frequentou a famosa Faculdade de Direito.
Essa oposição política, que diz respeito ao momento histórico em que o romance se situa, desdobra-se em várias outras. Há o episódio em que os gêmeos, sempre em oposição, encantam-se pelas figuras inimigas de Robespierre e Luís xvi, associando de maneira jocosa o conflito do presente brasileiro às lutas sanguinárias da Revolução Francesa. Também há referência a outros dois irmãos inimigos, d.
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