Pedro i e d. Miguel, que disputaram o trono português depois da morte de d. João vi, em 1826. Sabemos, por outro lado, que d. Pedro i é em si figura dividida entre duas nações, pois foi Pedro i no Brasil e Pedro iv em Portugal.
Assim, sugere-se que a crise da transição do Império para a República pode ser relacionada a uma crise que se liga aos inícios da formação da nação brasileira, que por sua vez remete às divisões da Igreja, que por sua vez remonta à divisão do judaísmo, que por sua vez tem correspondente na Antiguidade clássica. O romance multiplica assim as possíveis chaves interpretativas para o ódio figadal e inexplicável que une os dois gêmeos protagonistas, convocando a mitologia clássica, o Antigo Testamento, o Novo Testamento, a história das relações coloniais entre Brasil e Portugal, a história do Brasil e por aí vai…
Afinal, estamos diante do quê? De uma história sobre o ódio arquetípico entre irmãos? Sobre a psicologia da rivalidade? Sobre a dúvida? Sobre as relações de amor e ódio entre nações? Sobre a fratura irreconciliável no interior de uma mesma nação? Esses vários níveis de sentido, que são apenas alguns dos sugeridos no interior do próprio romance, rebatem uns sobre os outros, como num jogo de espelhos. Estamos diante de um romance em abismo, com vários planos de sentido concorrentes, o que torna difícil determinar se há e qual seria o nível alegórico principal.
Com personagens, assuntos e fragmentos de enredo arquiconhecidos, Machado monta uma trama singularíssima e da maior complexidade. A cada passo o romance propõe uma chave diferente de interpretação, fornecendo caminhos divergentes para o entendimento da narrativa. Assim, a apreensão de um sentido único e último só se torna possível pela supervalorização de determinado nível de sentido em detrimento de todos os outros, o que cabe ao leitor fazer, por sua conta e risco, já que nenhuma das instâncias narrativas — autor empírico, autor ficcional, editor do livro, narradores, personagens — sanciona qualquer sentido unívoco.
O deslocamento crescente da responsabilidade interpretativa para o leitor é marca do romance machadiano. De Ressurreição ao Memorial de Aires, as narrativas se tornam cada vez mais exigentes conosco, leitores, que costumamos chegar à última linha com muito mais dúvidas e perguntas do que tínhamos ao abrir o livro. Dom Casmurro por certo é o caso mais conhecido e eloquente dessa ambiguidade radical do romance machadiano, que incita o leitor a um julgamento sem lhe oferecer qualquer possibilidade de julgamento seguro. Com isso, o romance evidencia o caráter necessariamente precário do conhecimento do outro e a instabilidade das interpretações. Em Esaú e Jacó, a participação decisiva do leitor no processo ficcional é discutida na própria narrativa, que o representa como figura-chave do jogo ficcional.
O enxadrista e os seus trebelhos
Neste romance, concebido como último, Machado traça uma analogia que parece condensar seu modo de conceber a ficção. Trata-se da comparação da narrativa com o jogo de xadrez, que ocupa todo o capítulo xiii, intitulado “A epígrafe”:
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as ideias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos.5
Em primeiro lugar, há a surpresa de topar com “A epígrafe” fora do seu lugar convencional, que é o início do romance. Além de alertar o leitor para o fato de que as convenções são apenas convenções, e não verdades, o que esse deslocamento do início para o capítulo xiii sugere? Pode-se pensar que o capítulo todo funciona como uma grande epígrafe — ou o par de lunetas que permite ao leitor compreender o que estiver menos claro —, de modo que as comparações entre a narrativa ficcional e o jogo de xadrez resumem não só o assunto do romance, mas sintetizam a hipotética teoria da composição machadiana.
Nesse universo ficcional, o papel do leitor não se esgota no preenchimento das lacunas deixadas pelo autor/narrador, como em Dom Casmurro. Cabe a ele (e a nós) munir-se de um olhar capaz não só de esclarecer o que for menos claro, mas também de aceitar as obscuridades, já que, afinal, para que serviria um par de lunetas diante do que é “totalmente escuro”? A ideia de que o leitor participa da composição da narrativa, presente nos romances anteriores, ganha aqui sua formulação mais explícita e radical, na medida em que o leitor é incluído entre as pessoas da narração e entre as peças que compõem o jogo ficcional, explicitamente comparado ao jogo de xadrez:
Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações do jogo, um diagrama das posições belas ou difíceis. Não havendo tabuleiro, é um grande auxílio este processo para acompanhar os lances, mas também pode ser que tenhas visão bastante para reproduzir na memória as situações diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo.6
Enxadrista dedicado e de vida inteira, leitor de publicações sobre o jogo e memorizador de posições belas e difíceis, Machado sabia muito bem das possibilidades quase infinitas da combinação de 32 peças em movimento sobre os 64 quadrados de um tabuleiro. A aparência esquemática do tabuleiro está longe de apontar para qualquer tipo de esquematismo no jogo de xadrez, da mesma maneira que as simetrias e a associação da história do romance a várias matrizes míticas e narrativas também não tornam a história de Esaú e Jacó esquemática nem definem seu sentido.
A multiplicação das dualidades e ambivalências, principal recurso retórico empregado por Machado neste romance, baseado na proliferação de comparações e oposições, encontra figuração perfeita no tabuleiro de xadrez, também assentado na dualidade e na oposição simétrica entre peças pretas e brancas. A configuração do tabuleiro esclarece muito da armação ficcional, já que o mesmo tipo de oposição entre as peças se aplica ao enredo, marcado pelo duelo metafórico entre os gêmeos, a princípio pelo amor da mãe e mais tarde pelo amor de Flora, pelo poder político etc. No jogo, assim como na ficção, ainda que as peças sejam caracterizadas como tipos, o que implica limitação dos movimentos, isso não determina seus destinos, uma vez que qualquer peça, branca ou preta, pode decidir a partida.
A interlocução dessa vez é com um leitor capaz de compreender e aceitar a comparação entre o xadrez e o jogo ficcional, de considerar muitas variáveis, de fazer interpretações complexas e perceber que as explicações nem sempre se reduzem a aparências — as peças brancas e pretas, por exemplo, se distinguem menos pela diferença visível do que pelas funções variadas e complexas que desempenham.
São necessários muitos níveis de observação e interpretação: das peças individualmente (rei e rainha), das peças enquanto tipos (bispos, cavalos, torres e peões) e de todo o conjunto, levando-se em conta suas posições relativas, de modo a “reproduzir na memória as situações diversas”. É essa visão dinâmica e gestáltica do tabuleiro que parece sintetizar a visão machadiana da composição e da recepção do texto ficcional.
Assim, o xadrez comparece em Esaú e Jacó como metáfora sintética e complexa do jogo ficcional, em que virtualmente qualquer situação pode ser construída com os mesmos personagens sobre um mesmo chassi. Trata-se da depuração de uma ideia já presente em Dom Casmurro, em que o narrador também chama a atenção para o fato de que todas as histórias podem ser reduzidas a uma mesma matriz — “mas tudo cabe na mesma ópera…”.7
A imagem é relembrada, aliás, por Olavo Bilac, que ao escrever sobre Esaú e Jacó logo em seguida à sua publicação, em 1904, espantava-se com o talento de Machado de Assis para escrever “uma literatura originalíssima” a partir de “uma cidade sem caráter próprio, uma cosmópolis imprecisa e vaga”. E concluía: “Com os mesmos cenários, porém, com os mesmos personagens, e com as mesmas paixões, fazem-se 100 mil dramas diversos. A literatura de Machado de Assis realiza o milagre de criar, no Rio de Janeiro, conflitos morais, estados de alma, e aspectos sociais absolutamente inéditos”.8
Com razão, Bilac observa que Machado de Assis teve de construir seu universo ficcional a partir de matéria social e histórica rarefeitas, no interior de uma sociedade pouco dinâmica e diversificada, assentada à força sobre diferenças praticamente intransponíveis, primeiro entre senhores e escravos, depois entre ricos e pobres. Foi nesse mundo monótono e repetitivo que Machado viveu e fez literatura, servindo-se de matrizes narrativas de vários tempos e quadrantes para compor uma obra de envergadura enciclopédica e que realmente dá impressão de milagre.
Dessa forma, a deliberada monotonia do enredo associada à exuberante proliferação das referências em Esaú e Jacó dizem respeito ao problema difícil que o escritor-enxadrista teve de enfrentar na composição do seu universo ficcional.
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