Sabemos que o romance brasileiro constituiu-se obrigatoriamente em relação a outras referências narrativas, de preferência a francesa. Machado compreendeu isso e, em vez de adotar uma matriz preferencial, como fez a maioria dos seus colegas escritores, multiplicou as referências, fazendo com que elas se relativizassem entre si, de modo que nunca há adesão a nenhuma matriz literária ou mitológica, mas sim o questionamento recíproco pela transição livre de uma matriz a outra.

Mas chega de explicações. Como pondera e recomenda o narrador: “Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção”.9

1 Esaú e Jacó, capítulo xxii.

2 Ibid., capítulo lxxxviii.

3 Ibid., capítulo xxvii.

4 Ibid.

5 Ibid., capítulo xiii.

6 Ibid., capítulo xiii.

7 Dom Casmurro, capítulo ix.

8 Olavo Bilac, “Registro”, A Notícia, Rio de Janeiro, 26-7 nov. 1904, p. 2. Apud Hélio de Seixas Guimarães. Os leitores de Machado de Assis: O romance machadiano e o público de literatura no século 19. 2a ed. São Paulo: Nankin/ Edusp, 2012, pp. 399-400.

9 Esaú e Jacó, capítulo v.

Esaú e Jacó

Advertência

 

 

 

 

 

 

Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, i, ii, iii, iv, v, vi, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.

A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último por quê?

A hipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar a leitura dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazê-la? Ele não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.

Tal foi a razão de se publicar somente a narrativa. Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir, Ab ovo,1 por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a ideia de lhe dar estes dois nomes que o próprio Aires citou uma vez:

 

esaú e jacó

 

1 A expressão latina significa “desde a origem”, “desde a concepção”, e está registrada na Arte poética de Horácio (18 a.C.).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dico, che quando l’anima mal nata…

dante1

 

 

Capítulo I
Coisas futuras!

 

Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo.2 Começaram de subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu club, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo.

Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o club. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas há um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: “Você quer ver que elas vão à cabocla?” E ambos pararam a distância, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana.

Com efeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o número da casa da cabocla, até que deram com ele. A casa era como as outras, trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada à aventura.