Passa o seu enterro!...

A Luz descreve zigue-zagues tortos

Enviando à terra os derradeiros beijos.

Pela estrada feral dois realejos

Estão chorando meus amores mortos!

E a treva ocupa toda a estrada longa...

O Firmamento é uma caverna oblonga

Em cujo fundo a Via-láctea existe.

E como agora a lua cheia brilha!

Ilha maldita vinte vezes a ilha

Que para todo o sempre me fez triste!

Pau d’Arco – 1904.

MATER

Como a crisálida emergindo do ovo

Para que o campo flórido a concentre,

Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo

Ser, entre dores, te emergiu do ventre!

E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,

No lábio róseo a grande teta farta

– Fecunda fonte desse mesmo leite

Que amamentou os efebos de Esparta. –

Com que avidez ele essa fonte suga!

Ninguém mais com a Beleza está de acordo,

Do que essa pequenina sanguessuga,

Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,

Essas humanas coisas pequeninas

A um biscuit de quilate muito raro

Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.

Mas o ramo fragílimo e venusto

Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,

Há de crescer, há de tornar-se arbusto

E álamo altivo de ramagem grossa.

Clara, a atmosfera se encherá de aromas,

O Sol virá das épocas sadias...

E o antigo leão, que te esgotou as pomas,

Há de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice

Batida pelos bárbaros invernos,

Relembrarás chorando o que eu te disse,

À sombra dos sicômoros eternos!

Pau d’Arco – 1905.

POEMA NEGRO

A Santos Neto

Para iludir minha desgraça, estudo.

Intimamente sei que não me iludo.

Para onde vou (o mundo inteiro o nota)

Nos meus olhares fúnebres, carrego

A indiferença estúpida de um cego

E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.

Para onde irá correndo minha sombra

Nesse cavalo de eletricidade?!

Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:

– Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?

E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!

Dos brados meus ouvindo apenas o eco,

Eu torço os braços numa angústia douda

E muita vez, à meia-noite, rio

Sinistramente, vendo o verme frio

Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte – esta carnívora assanhada –

Serpente má de língua envenenada

Que tudo que acha no caminho, come...

– Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,

Sai para assassinar o mundo inteiro,

E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,

Corro. Arranco os cadáveres das lousas

E as suas partes podres examino...

Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,

Na podridão daquele embrulho hediondo

Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.

Então meu desvario se renova...

Como que, abrindo todos os jazigos,

A Morte, em trajes pretos e amarelos,

Levanta contra mim grandes cutelos

E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo

Eu fui caindo como um sol caindo

De declínio em declínio; e de declínio

Em declínio, com a gula de uma fera,

Quis ver o que era, e quando vi o que era,

Vi que era pó, vi que era esterquilínio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!

Eu desafio agora essa grandeza,

Perante a qual meus olhos se extasiam...

Eu desafio, desta cova escura,

No histerismo danado da tortura

Todos os monstros que os teus peitos criam!

Tu não és minha mãe, velha nefasta!

Com o teu chicote frio de madrasta

Tu me açoitaste vinte e duas vezes...

Por tua causa apodreci nas cruzes,

Em que pregas os filhos que produzes

Durante os desgraçados nove meses!

Semeadora terrível de defuntos,

Contra a agressão dos teus contrastes juntos

A besta, que em mim dorme, acorda em berros;

Acorda, e após gritar a última injúria,

Chocalha os dentes com medonha fúria

Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.

Tu mataste o meu tempo de criança

E de segunda-feira até domingo,

Amarrado no horror de tua rede,

Deste-me fogo quando eu tinha sede...

Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!

Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.

A treva invade o obscuro orbe terrestre.

No Vaticano, em grupos prosternados,

Com as longas fardas rubras, os soldados

Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,

Cai no silêncio da Cidade Eterna

A água da chuva em largos fios grossos...

De Jesus Cristo resta unicamente

Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente

Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.

Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,

As luzes funerais arquejam fracas...

O vento entoa cânticos de morte.

Roma estremece! Além, num rumor forte,

Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha Ideia

Aumenta. Como as chagas da morfeia

O medo, o desalento e o desconforto

Paralisam-me os círculos motores.

Na Eternidade, os ventos gemedores

Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra

Da Borborema, no ar de minha terra,

Na molécula e no átomo... Resume

A espiritualidade da matéria

E ele é que embala o corpo da miséria

E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos

Uma dor bruta puxa-me os cabelos.

Desperto. É tão vazia a minha vida!

No pensamento desconexo e falho

Trago as cartas confusas de um baralho

E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.

Eu, somente eu, com a minha dor enorme

Os olhos ensanguento na vigília!

E observo, enquanto o horror me corta a fala,

O aspecto sepulcral da austera sala

E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre;

O termômetro negue minha febre,

Torne-se gelo o sangue que me abrasa,

E eu me converta na cegonha triste

Que das ruínas duma casa assiste

Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema

Onde vazei a minha dor suprema

Tenho os olhos em lágrimas imersos...

Rola-me na cabeça o cérebro oco.

Por ventura, meu Deus, estarei louco?!

Daqui por diante não farei mais versos.

Paraíba – 1906.

ETERNA MÁGOA

O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo, o homem que é triste

Para todos os séculos existe

E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga

Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.

Quer resistir, e quanto mais resiste

Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe

É que essa mágoa infinda assim, não cabe

Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;

E quando esse homem se transforma em verme

É essa mágoa que o acompanha ainda!

Pau d’Arco – 1904.

QUEIXAS NOTURNAS

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!

Saio. Minh’alma sai agoniada.

Andam monstros sombrios pela estrada

E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida

As insígnias medonhas do infeliz

Como os falsos mendigos de Paris

Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem

O próprio Pedro Américo não pinta...

Para pintá-lo, era preciso a tinta

Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte

Espera alguém, armado de arcabuz,

Na ânsia incoercível de roubar a luz,

Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude

E a minha mágoa de hoje é tão intensa

Que eu penso que a Alegria é uma doença

E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!

Quero, arrancado das prisões carnais,

Viver na luz dos astros imortais,

Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante

E dentro do meu peito, no combate,

A Eternidade esmagadora bate

Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza

Na mais terrível desesperação

É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião

Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca

Inda mesmo que os músculos se esforcem;

Os pobres braços do mortal se torcem

E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta

Que, rolando dos últimos degraus,

O Hércules treme e vai tombar no caos

De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,

E tombe para sempre nessas lutas,

Estrangulado pelas rodas brutas

Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros

Há de travar-se essa batalha vã

Do dia de hoje contra o de amanhã,

Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me

É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;

Não sou capaz de amar mulher alguma

Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes

E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;

O coração do Poeta é um hospital

Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;

A bênção matutina que recebo...

E é tudo: o pão que como, a água que bebo,

O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia

Na atra e assombrosa solidão feroz

Onde não cheguem o eco duma voz

E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh’alma americana

Não mais palpite o coração – esta arca,

Este relógio trágico que marca

Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira

Cantada sobre o túmulo de Orfeu;

Seja este, enfim, o último canto meu

Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu’asa!

És a árvore em que devo reclinar-me...

Se algum dia o Prazer vier procurar-me

Dize a este monstro que eu fugi de casa!

Pau d’Arco – 1906.

INSÔNIA

Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo

Passou de certo por aqui chorando!

Assim, em mágoa, eu também vou passando

Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...

Que voz é esta que a gemer concentro

No meu ouvido e que do meu ouvido

Como um bemol e como um sustenido

Rola impetuosa por meu peito adentro?!

– Por que é que este gemido me acompanha?!

Mas dos meus olhos no sombrio palco

Súbito surge como um catafalco

Uma cidade ao mapa-múndi estranha.

A dispersão dos sonhos vagos reúno.

Desta cidade pelas ruas erra

A procissão dos Mártires da Terra

Desde os Cristãos até Giordano Bruno!

Vejo diante de mim Santa Francisca

Que com o cilício as tentações suplanta,

E invejo o sofrimento desta Santa,

Em cujo olhar o Vício não faísca!

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,

Depois de embebedado deste vinho,

Sair da vida puro como o arminho

Que os cabelos dos velhos embranquece!

Por que cumpri o universal ditame?!

Pois se eu sabia onde morava o Vício,

Por que não evitei o precipício

Estrangulando minha carne infame?!

Até que dia o intoxicado aroma

Das paixões torpes sorverei contente?

E os dias correrão eternamente?!

E eu nunca sairei desta Sodoma?!

À proporção que a minha insônia aumenta

Hieróglifos e esfinges interrogo...

Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo

Toda a alvorada esplêndida se ostenta.

Vagueio pela Noite decaída...

No espaço a luz de Aldebarã e de Argos

Vai projetando sobre os campos largos

O derradeiro fósforo da Vida.

O Sol, equilibrando-se na esfera,

Restitui-me a pureza da hematose

E então uma interior metamorfose

Nas minhas arcas cerebrais se opera.

O odor da margarida e da begônia

Subitamente me penetra o olfato...

Aqui, neste silêncio e neste mato,

Respira com vontade a alma campônia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.

Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.

As árvores, as flores, os corimbos,

Recordam santos nos seus próprios nichos.

Com o olhar a verde periferia abarco.

Estou alegre. Agora, por exemplo,

Cercado destas árvores, contemplo

As maravilhas reais do meu Pau d’Arco!

Cedo virá, porém, o funerário,

Atro dragão da escura noite, hedionda,

Em que o Tédio, batendo na alma, estronda

Como um grande trovão extraordinário.

Outra vez serei pábulo do susto

E terei outra vez de, em mágoa imerso,

Sacrificar-me por amor do Verso

No meu eterno leito de Procusto!

BARCAROLA

Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores

Do céu, em reflexos, nas

Águas, fingindo cristais

Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões dourados

Cai a luz dos astros por

Sobre o marítimo horror

Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam

Fulguram como outros sóis

Os flamívomos faróis

Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda

E nesse eterno vaivém

Coitadas! não acham quem,

Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha

Do que pelo Mundo vai!

Se um sonha e se ergue, outro cai;

Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre

Que em meio da Vida cai!

Esse não volta, esse vai

Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.

O Céu, de cima, a luzir

Como um diamante de Ofir

Imita a curva de um arco.

A Lua – globo de louça –

Surgiu, em lúcido véu.

Cantam! Os astros do Céu

Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia

Que a sereia vai falar...

Haja silêncio no mar

Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?! Será uma

História de amor feliz?

Não! O que a sereia diz

Não é história nenhuma.

É como um requiem profundo

De tristíssimos bemóis...

Sua voz é igual à voz

Das dores todas do mundo.

“Fecha-te nesse medonho

“Reduto de Maldição,

“Viajeiro da Extrema-Unção,

“Sonhador do último sonho!

“Numa redoma ilusória

“Cercou-te a glória falaz,

“Mas nunca mais, nunca mais

“Há de cercar-te essa glória!

“Nunca mais! Sê, porém, forte.

“O poeta é como Jesus!

“Abraça-te à tua Cruz

“E morre, poeta da Morte!”

– E disse e porque isto disse

O luar no Céu se apagou...

Súbito o barco tombou

Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo

E Deus se enlute no Céu!

Mais um poeta que morreu,

Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas!

TRISTEZAS DE UM QUARTO

MINGUANTE

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,

Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...

Nos engenhos da várzea não existe

Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado

A lua magra, quando a noite cresce,

Vista, através do vidro azul, parece

Um paralelepípedo quebrado!

O sono esmaga o encéfalo do povo.

Tenho 300 quilos no epigastro...

Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro

Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

Vou amarrar um pano na cabeça,

Molhar a minha fronte com vinagre.

Aumentam-se-me então os grandes medos.

O hemisfério lunar se ergue e se abaixa

Num desenvolvimento de borracha,

Variando à ação mecânica dos dedos!

Vai-me crescendo a aberração do sonho.

Morde-me os nervos o desejo doudo

De dissolver-me, de enterrar-me todo

Naquele semicírculo medonho!

Mas tudo isto é ilusão de minha parte!

Quem sabe se não é porque não saio

Desde que, 6a feira, 3 de maio,

Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas

Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,

Como um degenerado psicopata

Eis-me a contar o número das telhas!

– Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta

Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,

A conta recomeço, em ânsias: – Uma...

Mas novamente eis-me a perder a conta!

Sucede a uma tontura outra tontura.

– Estarei morto?! E a esta pergunta estranha

Responde a Vida – aquela grande aranha

Que anda tecendo a minha desventura! –

A luz do quarto diminuindo o brilho

Segue todas as fases de um eclipse...

Começo a ver coisas de Apocalipse

No triângulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.

Cinco lençóis balançam numa corda,

Mas aquilo mortalhas me recorda,

E o amontoamento dos lençóis desmancho.

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.

Acho-me, por exemplo, numa festa...

Tomba uma torre sobre a minha testa,

Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roídos me assombraram...

– “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!

Os vermes já não querem mais comer-nos

E os formigueiros já nos desprezaram”.

Figuras espectrais de bocas tronchas

Tornam-me o pesadelo duradouro...

Choro e quero beber a água do choro

Com as mãos dispostas à feição de conchas.

Tal uma planta aquática submersa,

Antegozando as últimas delícias

Mergulho as mãos – vis raízes adventícias –

No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rolo no tapete,

Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio

Cai sobre o meu estômago vazio

Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;

O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...

Minha família ainda está dormindo

E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janela. Elevam-se fumaças

Do engenho enorme. A luz fulge abundante

E em vez do sepulcral Quarto Minguante

Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos

Dos poros vegetais, no ato da entrega

Do mato verde, a terra resfolega

Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa

A universal criação. Broncos e feios,

Vários répteis cortam os campos, cheios

Dos tenros tinhorões e da úmida erva.

Babujada por baixos beiços brutos,

No húmus feraz, hierática, se ostenta

A monarquia da árvore opulenta

Que dá aos homens o óbolo dos frutos.

De mim diverso, rígido e de rastos

Com a solidez do tegumento sujo

Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo

Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,

A ouvir, nestes bucólicos retiros,

Toda a salva fatal de 21 tiros

Que festejou os funerais de Hamleto!

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!

Quisera ser, numa última cobiça,

A fatia esponjosa de carniça

Que os corvos comem sobre as jurubebas!

Porque, longe do pão com que me nutres

Nesta hora, oh! Vida em que a sofrer me exortas

Eu estaria como as bestas mortas

Pendurado no bico dos abutres!

MISTÉRIOS DE UM FÓSFORO

Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o

Depois. E o que depois fica e depois

Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois

Túmulos dentro de um carvão promíscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo

Que a individual psiquê humana tece e

O outro é o do sonho altruístico da espécie

Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:

– “Cinza, síntese má da podridão,

“Miniatura alegórica do chão,

“Onde os ventres maternos ficam podres;

“Na tua clandestina e erma alma vasta,

“Onde nenhuma lâmpada se acende,

“Meu raciocínio sôfrego surpreende

“Todas as formas da matéria gasta!”

Raciocinar! Aziaga contingência!

Ser quadrúpede! Andar de quatro pés

É mais do que ser Cristo e ser Moisés

Porque é ser animal sem ter consciência!

Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,

Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto

O amargor específico do absinto

E o cheiro animalíssimo do parto!

E afogo mentalmente os olhos fundos

Na amorfia da cítula inicial,

De onde, por epigênese geral,

Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, através ovoide e hialino

Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante

Minha massa encefálica minguante

Todo o gênero humano intrauterino!

É o caos da avita víscera avarenta

– Mucosa nojentíssima de pus,

A nutrir diariamente os fetos nus

Pelas vilosidades da placenta! –

Certo, o arquitetural e íntegro aspecto

Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele

Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele

Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abismos

– Zooplasma pequeníssimo e plebeu,

De onde o desprotegido homem nasceu

Para a fatalidade dos tropismos. –

Depois, é o céu abscôndito do Nada,

É este ato extraordinário de morrer

Que há de, na última hebdômada, atender

Ao pedido da célula cansada!

Um dia restará, na terra instável,

De minha antropocêntrica matéria

Numa côncava xícara funérea

Uma colher de cinza miserável!

Abro na treva os olhos quase cegos.

Que mão sinistra e desgraçada encheu

Os olhos tristes que meu Pai me deu

De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!

Dentro um dínamo déspota, sozinho,

Sob a morfologia de um moinho,

Move todos os meus nervos vibráteis.

Então, do meu espírito, em segredo,

Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,

Na síntese acrobática de um salto,

O espectro angulosíssimo do Medo!

Em cismas filosóficas me perco

E vejo, como nunca outro homem viu,

Na anfigonia que me produziu

Nonilhões de moléculas de esterco.

Vida, mônada vil, cósmico zero,

Migalha de albumina semifluida,

Que fez a boca mística do druida

E a língua revoltada de Lutero;

Teus gineceus prolíficos envolvem

Cinza fetal!... Basta um fósforo só

Para mostrar a incógnita de pó,

Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o conúbio incestuoso

Dessas afinidades eletivas,

De onde quimicamente tu derivas,

Na aclamação simbiótica do gozo!

O enterro de minha última neurona

Desfila...