e no entretanto

Luzes, flores, clarões por toda a festa

E há nos régios salões, em cada aresta,

Credências d’ouro de supremo encanto.

No baldaquino a orquestra real se apresta

E o áureo dossel finge um relevo santo...

– Bissos egípcios d’alto gosto, a um canto,

Flordelisados de nelumbo e giesta.

Morreu a noite e veio o Sol Eterno

– Âmbar de sangue que desceu do Inferno

No turbilhão dos alvos raios diurnos...

Brilham no paço refulgências de elmo

E a princesa assomou como um santelmo

Na realeza branca dos coturnos.

PELO MAR

Manhã em flor. O mar é um policromo

E imenso lago d’íris e alabastros...

A aurora é branca e ao sol, o mar é como

Um pálio imenso que caiu dos astros.

Longe, bem longe, no alvoral assomo

Ergue um navio os altanados mastros

E o Oceano dorme – alourecido pomo,

Num leito irial de pérolas e nastros.

A alma da Mágoa vai pelo seu dorso,

Em sonhos geme... Um coração de corso

Geme no mar, vibra no mar, entanto,

Colma-lhe o seio a opala das esponjas...

E à noite morta, choram vagas – monjas –

Purificadas no cristal do pranto!

PALLIDA LUNA

És do Passado! Vieste d’alvorada

N’asa dos elfos pela Morte espalma...

Cantas... e eu ouço esta berceuse calma

Da harpa dos mundos ideais do Nada!

Ergue o Missal brilhante de tu’alma,

Mas nessa elevação mistificada,

Vem, que eu te espero, Deusa constelada,

Desce, anêmona exul que o Céu ensalma!

Venhas e desças, Lua dos Martírios,

Desças, mas venhas pela unção dos lírios,

Visão de Ocaso de enluaradas comas,

Vaso de Unção descido dos espaços,

Para ungirmos, nós dois, os nossos paços,

Na tule idealizada dos aromas!

A MORTE DE VÊNUS

Velhos berilos, pálidas cortinas,

Morno frouxel de nardos recendendo

Velam-lhe o sono... e Vênus vai morrendo

No berço azul das névoas matutinas!

Halos de luz de brancas musselinas

Vão-lhe do corpo virginal descendo

– Abelha irial que foi adormecendo

Sobre um coxim de pérolas divinas.

E quando o Sol lhe beija a espádua nua,

Cai-lhe da carne o resplendor da Lua

No reverbero dos deslumbramentos...

Enquanto no ar há sândalos, há flores

E haustos de morte – os últimos clangores

Da música chorosa dos mementos!

MÁRTIR DA FOME

Nesta da vida lúgubre caverna

De ossos e frios funerais que eu sinto

Como um chacal saciando o eterno instinto

Vou saciando a minha Fome Eterna...

– Fome de sangue dum Passado extinto,

De extintas crenças – bacanal superna,

Horrível assim como a Hidra de Lerna

E muda como o bronze de Corinto!

Ânsias de sonhos, desespero fundo!

E a alma que sonha no marnel do Mundo,

Morre de Fome pelas noites belas...

É como o Cristo – o Mártir do Calvário.

Morre. E no entanto vai para o estelário

Matar a Fome num festim de estrelas!

SONHO DE AMOR

Sobre o aromal e amplo coxim de Flora,

Que os vapores da tarde inda incensavam

E que um incenso tênue e bom vapora,

Os namorados lânguidos sonhavam.

A alma do Ocaso entrava o céu agora

E havia pelas tênebras que entravam

Ora estrangulamentos surdos, ora

Ruídos de carnes que se estrangulavam.

E sonharam assim durante toda

A noite, e toda a alva manhã durante!

– O Sol jorrava largos raios longos.

E em roda, víride e nevado, em roda,

Lembrava o campo um colorido ondeante

De vidros verdes e cristais oblongos!

SONETO

(A um poeta morto, aos 25 anos,

numa noite de orgia.)

A orgia mata a mocidade, quando

Rugem na Carne do delírio as feras,

E o moço morre como está sonhando

Nas suas vinte e cinco primaveras!

Em cima – o oiro sem mancha das esferas,

Embaixo oiro manchado de execrando

Festim dos sibaritas, das heteras

Lubricamente se despedaçando!

Em cima, a rede do estelário imáculo

Suspensa no alto como um tabernáculo

– A orgia, embaixo, e no delírio doudo

Como arvoredos juvenis tombados

Os moços mortos, os brasões manchados,

E um turbilhão de púrpuras no lodo!

FESTIVAL

Para Jônatas Costa

Címbalos soam no salão. O dia

Foge, e ao compasso de arrabis serenos

A valsa rompe, em compassados trenos

Sobre os veludos da tapeçaria.

Estatuetas de mármore de Lemnos

Estão dispostas numa simetria

Inconfundível, recordando a estria

Dos corpos níveos de Afrodite e Vênus.

Fulgem por entre mil cristais vermelhos

O alvo cristal dos nítidos espelhos

E a seda verde dos arbustos glabros,

E em meio às refrações verdes e hialinas,

Vibra, batendo em todas as retinas,

A incandescência irial dos candelabros.

Noturno

Chove. Lá fora os lampiões escuros

Semelham monjas a morrer... Os ventos

Desencadeados vão bater, violentos,

De encontro às torres e de encontro aos muros.

Saio de casa. Os passos mal seguros

Trêmulo movo, mas meus movimentos

Susto, diante do vulto dos conventos,

Negro, ameaçando os séculos futuros!

De São Francisco no plangente bronze

Em badaladas compassadas onze

Horas soaram... Surge agora a Lua.

E eu sonho erguer-me aos páramos etéreos

Enquanto a chuva cai nos cemitérios

E o vento apaga os lampiões da rua!

SONETO

Ao sétimo dia do seu falecimento

E ele morreu. Ele que foi um forte

Que nunca se quebrou pelo Desgosto

Morreu... mas não deixou na ara do rosto

Um só vestígio que acusasse a morte!

O anatomista que investiga a sorte

Das vidas que se abismam no Sol-posto

Ficaria admirado de seu rosto,

Vendo-o tão belo, tão sereno e forte!

Quando meu Pai deixou o lar amigo

Um sabiá da casa muito antigo

Que há muito tempo não cantava lá,

Diluiu o silêncio em litanias...

E hoje, poetas, fazem sete dias

Que eu ouço o canto desse sabiá!

VAE VICTIS

A Dor meu coração torça e retorça

E me retalhe como se retalha

Para escárnio e alegria da canalha

Um leão vencido que perdeu a força!

Sobre mim caia essa vingança corsa,

Já que perdi a última batalha!

E, enquanto o Tédio a carne me trabalha,

A Dor meu coração torça e retorça!

Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!

Os vibriões, os vermes vis, os sapos

Encontrem nele pábulo eviterno...

– Repositório de milhões de miasmas

Onde se fartem todos os fantasmas

Primavera, verão, outono, inverno!

A DOR

Chama-se Dor, e quando passa, enluta

E todo mundo que por ela passa

Há de beber a taça da cicuta

E há de beber até o fim da taça!

Há de beber, enxuto o olhar, enxuta

A face, e o travo há de sentir, e a ameaça

Amarga dessa desgraçada fruta

Que é a fruta amargosa da Desgraça!

E quando o mundo todo paralisa

E quando a multidão toda agoniza,

Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno,

De agonizante multidão rodeada,

Derrama em cada boca envenenada

Mais uma gota do fatal veneno!

TERRA FÚNEBRE

Aqui morreram tantos poetas! Tanta

Guitarra morta este lugar encerra!..

Aqui é o Campo-Santo, aqui é a Terra

Em que a alma chora e em que a Saudade canta!

O caminheiro que o Pesar desterra,

Pare chorando nesta Terra Santa,

E se cantar como a Saudade canta

O caminheiro fique nesta Terra!

À noite aqui um trovador eterno

Chora, abraçado às campas dos poetas,

– Esse sombrio trovador é o Inverno!

Aqui é a Terra, onde, ao noturno açoite,

Carpem na sombra pássaros ascetas,

Gemem poetas – pássaros da Noite!

SONETO

O sonho, a crença e o amor, sendo a risonha

Santíssima Trindade da Ventura,

Pode ser venturosa a criatura

Que não crê, que não ama e que não sonha?!

Pois a alma acostumada a ser tristonha

Pode achar por acaso ou porventura

Felicidade numa sepultura,

Contentamento numa dor medonha?!

Há muito tempo, o sonho, do meu seio

Partiu num célere arrebatamento

De minha crença arrebentando a grade,

Poi se eu não amo e se também não creio,

De onde me vem este contentamento,

De onde me vem esta felicidade?!

MEDITANDO

Para o Celso Mariz

Penso em venturas! A alma do homem pensa

Sempre em venturas! Sorte do homem! O homem

Há de embalar eternamente a Crença

Sem ter grilhões e sem ter leis que o domem!

Punjam-no os vermes da Desgraça, assomem

Descrenças, surjam tédios na Descrença,

Luta, e morrem os vermes que o consomem,

Vence, e por fim, nada há que o abata e o vença!

Por isso, poeta, eu penso na Ventura!

E o pensamento, na Suprema Altura

Sinto, no imenso Azul do Firmamento

Ir rolando pelo ouro das estrelas,

E esse ouro santo vir rolando pelas

Trevas profundas do meu pensamento!

SONETO[2]

Para quem tem na vida compreendido

Toda a grandeza da Fraternidade

O aniversário dum irmão querido

A alma de alegres emoções invade.

Depois quando no irmão estremecido

Fazem aliança o gênio e a probidade,

Atinge o amor um grau nunca atingido

No termômetro santo da Amizade.

O Alexandre dos Anjos merecia

Grandes coroas nesse grande dia,

Tesouros reais, auríferos tesouros...

Terá no entanto indubitavelmente

A admiração do século presente

E a sagração dos séculos vindouros!

[2] Em epígrafe: “(Feito no decurso de dois minutos, em homenagem ao aniversário natalício de Alexandre Rodrigues dos Anjos – 28 de abril de 1905.)” (N.E.)

SONETO

A Frederico Nietzsche

Para que nesta vida o espírito esfalfaste

Em vãs meditações, homem meditabundo?!

– Escalpelaste todo o cadáver do mundo

E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...

A loucura destruiu tudo que arquitetaste

E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!...

De que te serviu, pois, estudares, profundo,

O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?!

Pois, para penetrar o mistério das lousas,

Foi-te mister sondar a substância das cousas

– Construíste de ilusões um mundo diferente,

Desconheceste Deus no vidro do astrolábio

E quando a Ciência vã te proclamava sábio,

A tua construção quebrou-se de repente!

O NEGRO

Oh! Negro, oh! filho da Hotentótia ufana,

Teus braços brônzeos como dois escudos,

São dois colossos, dois gigantes mudos,

Representando a integridade humana!

Nesses braços de força soberana

Gloriosamente à luz do sol desnudos

Ao bruto encontro dos ferrões agudos

Gemeu por muito tempo a alma africana!

No colorido dos teus brônzeos braços,

Fulge o fogo mordente dos mormaços

E a chama fulge do solar brasido...

E eu cuido ver os múltiplos produtos

Da Terra – as flores e os metais e os frutos

Simbolizados nesse colorido!

Soneto

À memória do meu colega Caldas Lins

Vinhas trilhando gárrulo a Avenida

Onde Deus manda que todo homem goze,

Quando o fantasma da tuberculose

Pediu-te, em ânsias, o óbolo da Vida!

Recordo agora a nossa despedida

Na Estação do Cobé – santa nevrose

que com fios de ferro as almas cose

Principalmente se uma está ferida!

Das tuas dores na procela brava

Não soubeste talvez que eu te estimava!

Mas a amizade oculta não se finda...

Embora oculta, ela subiu, no entanto...

E subiu tanto e subiu tanto e tanto

Que hoje que és morto – ei-la que sobe ainda!

Pau d’Arco – 1905.

O ÉBRIO

Bebi! Mas sei por que bebi!... Buscava,

Em verdes nuanças de miragem, ver

Se nesta ânsia suprema de beber

Achava a Glória que ninguém achava!

E todo o dia então eu me embriagava

– Novo Sileno – em busca de ascender

A essa Babel fictícia do Prazer

Que procuravam e que eu procurava.

Trás de mim, na atra estrada que trilhei

Quantos também, quantos também deixei!

Mas eu não contarei nunca a ninguém,

A ninguém nunca eu contarei a história

Dos que, como eu, foram buscar a Glória

E que, como eu, irão morrer também!

Pau d’Arco – 1905.

O Canto da Coruja

A coruja cantara-lhe na porta

Sinistramente a noite inteira! Indício

Mais certo não havia! – Era o suplício!...

Daí a pouco, ela seria morta.

Saiu. O Sol ardia. A estrada torta

Lembrava a antiga ponte de Sublício...

Havia pelo chão um desperdício

De folhas que a áurea xantofila corta.

Nisto, ouve o canto aziago da coruja!

– Quer fugir, e não vê por onde fuja –

Implora a Deus como a um fetiche vago...

– Se ao menos voasse! – E o horror começa! Rasga

As vestes; uma convulsão a engasga

E morre ouvindo o mesmo canto aziago!

Pau d’Arco – 1905.

Senectude Precoce

Envelheci. A cal da sepultura

Caiu por sobre a minha mocidade...

E eu que julgava em minha idealidade

Ver inda toda a geração futura!

Eu que julgava! Pois não é verdade?!

Hoje estou velho. Olha essa neve pura!

– Foi saudade? Foi dor? – Foi tanta agrura

Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!

Sei que durante toda a travessia

Da minha infância trágica, vivia,

Assim como uma casa abandonada

Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas...

Sei que na infância nunca tive auroras

E afora disto, eu já nem sei mais nada!

Pau d’Arco – 1905.

André Chénier

Na real magnificência dos gigantes,

Grave como um lacedemônio harmoste

André Chénier ia subir ao poste

A que Luís XVI subira dantes!

Que a sua morte a homem nenhum desgoste

E incite o heroísmo das nações distantes...

Por isso, ele a morrer, canta vibrantes

Versos divinos que arrebatam a hoste.

Não há quem nele um só tremor denote!

– Continua a cantar, a alma serena...

Mas, de repente, pressentindo a lousa,

Batendo com a cabeça no barrote

Da guilhotina, diz ao povo: “É pena!

– Aqui ainda havia alguma cousa...”

Pau d’Arco – 1905.

Mystica Visio

Vinha passando pelo meu caminho

Um vulto estranhamente iluminado...

Para onde eu ia, o vulto ia a meu lado

E desde então, não andei mais sozinho!

Abraçou-me, beijou-me com um carinho

Que a um ser divino não seria dado...

E eu me elevava, sendo assim beijado,

Muito acima do humano burburinho!

Falou-me de ilusões e de luares,

Da tribo alegre que povoa os ares...

– Assombrava-me aquela claridade!

Mas através daquelas falsas luzes

Pude rever enfim todas as cruzes

Que têm pesado sobre a Humanidade!

Pau d’Arco – 1905.

GOZO INSATISFEITO

Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento

De minha mocidade, experimento

O mais profundo e abalador atrito...

Queimam-me o peito cáusticos de fogo,

Esta ânsia de absoluto desafogo

Abrange todo o círculo infinito.

Na insaciedade desse gozo falho

Busco no desespero do trabalho,

Sem um domingo ao menos de repouso,

Fazer parar a máquina do instinto,

Mas, quanto mais me desespero, sinto

A insaciabilidade desse gozo!

Pau d’Arco – 1906.

DOLÊNCIAS

Oh! Lua morta de minha vida,

Os sonhos meus

Em vão te buscam, andas perdida

E eu ando em busca dos rastos teus...

Vago sem crenças, vagas sem norte,

Cheia de brumas e enegrecida,

Ah! Se morreste pra minha vida!

Vive, consolo de minha morte!

Baixa, portanto, coração ermo

De lua fria

À plaga triste, plaga sombria

Dessa dor lenta que não tem termo.

Tu que tombaste no caos extremo

Da Noite imensa do meu Passado,

Sabes da angústia do torturado...

Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo!

Instilo mágoas saudoso, e enquanto

Planto saudades num campo morto,

Ninguém ao menos dá-me um conforto,

Um só ao menos! E no entretanto

Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar

Cedo na lida...

Oh! Lua fria vem me chorar,

Oh! Lua morta da minha vida!

IDEALIZAÇÕES

A Santos Neto

I

Em vão flameja, rubro, ígneo, sangrento

O sol, e, fulvos, aos astrais desígnios,

Raios flamejam e fuzilam, ígneos,

Nas chispas fulvas de um vulcão violento!

É tudo em vão! Atrás da luz dourada,

Negras, pompeiam (triste maldição!)

– Asas de corvo pelo coração...

– Crepúsculo fatal vindo do Nada!

Que importa o Sol! A Treva, a Sombra – eis tudo!

E no meu peito – condensada treva –

A sombra desce, e o meu pesar se eleva

E chora e sangra, mudo, mudo, mudo...

E há no meu peito – ocaso nunca visto,

Martirizado porque nunca dorme

As Sete Chagas dum martírio enorme,

E os Sete Passos que magoaram Cristo!

II

Agora dorme o astro de sangue e de ouro

Como um sultão cansado! As nuvens, como

Odaliscas, da Noite ao negro assomo

Beijam-lhe o corpo ensanguentado d’ouro.

Legiões de névoas mortas e finadas

Como fragmentações d’ouro e basalto

Lembram guirlandas pompeando no Alto

Eterizadas, volatilirizadas.

E a Noite emerge, santa e vitoriosa

Dentre um velarium de veludos. Atros

Descem os nimbos... No ar há malabatros

Turiferando a negridão tediosa.

Além, dourando as névoas dos espaços,

Na majestade dum condor bendito,

Subindo à majestade do Infinito,

A Via-Láctea vai abrindo os braços!

Áureas estrelas, alvas, luminosas,

Trazem no peito o branco das manhãs

E dormem brancas como leviatãs

Sobre o oceano astral das nebulosas.

Eu amo a noite que este Sol arranca!

Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,

Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra

A imagem lirial da Noite Branca.

III

De novo, a Aurora, entre esplendores, há-de

Alva, se erguer, como tombou outrora,

E como a Aurora – o Sol – hóstia da Aurora,

Abençoada pela Eternidade!

E ei-lo de novo, ontem moribundo,

Hoje de novo, curvo ao seu destino,

Fantástico, ciclópico, assassino

Ébrio de fogo, dominando o mundo!

Mas de que serve o Sol, se triste em cada

Raio que tomba no marnel da terra,

Mais em meu peito uma ilusão se enterra,

Mais em minh’alma um desespero brada?!

De que serve, se, à luz áurea que dele

Emana e estua e se refrange e ferve,

A Mágoa ferve e estua, de que serve

Se é desespero e maldição todo ele?!

Pois, de que serve, se, aclarando os cerros

E engalanando os arvoredos gaios,

A alma se abate, como se esses raios

N’alma caindo, se tornassem ferros?!

IV

Poeta, em vão na luz do Sol te inflamas,

E nessa luz queimas-te em vão! És todo

Pó, e hás de ser após as chamas, lodo,

Como Herculanum foi após as chamas.

Ah! Como tu, em lodo tudo acaba,

O leão, o tigre, o mastodonte, a lesma,

Tudo por fim há de acabar na mesma

Tênebra que hoje sobre ti desaba.

Ninguém se exime dessa lei imensa

Que, em plena e fulva reverberação,

Arrasta as almas pela Escuridão,

E arrasta os corações pela Descrença.

Ergue, pois, poeta, um pedestal de tanta

Treva e dor tanta, e num supremo e insano

E extraordinário e grande e sobre-humano

Esforço, sobe ao pedestal, e... canta!

Canta a Descrença que passou cortando

As tuas ilusões pelas raízes,

E em vez de chagas e de cicatrizes

Deixar, foi valas funerais deixando.

E foi deixando essas funéreas, frias,

Medonhas valas, onde, como abutres

Medonhos, de ossos, de ilusões te nutres,

Vives de cinzas e de ruinarias!

V

Agora é noite! E na estelar coorte,

Como recordação da festa diurna,

Geme a pungente orquestração noturna

E chora a fanfarra triunfal da Morte.

Então, a Lua que no céu se espalha,

Iluminando as serranias, banha

As serranias duma luz estranha,

Alva como um pedaço de mortalha!

Nessa música que a alma me ilumina

Tento esquecer as minhas próprias dores,

Canto, e minh’alma cobre-se de flores

– Fera rendida à música divina.

Harpas concertam! Brandas melodias

Plangem... Silêncio! Mas de novo as harpas

Reboam pelo mar, pelas escarpas,

Pelos rochedos, pelas penedias...

Eu amo a Noite que este Sol arranca!

Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,

Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra

A imagem lirial da Noite Branca!

A VITÓRIA DO ESPÍRITO

Era uma preta, funeral mesquita,

Abandonada aos lobos e aos leopardos

Numa floresta lúgubre e esquisita.

Engalanava-lhe as paredes frias

Uma coroa de urzes e de cardos

Coberta em pálio pelas laçarias.

Uma vez, aos lampejos derradeiros

Das irisadas vespertinas velas,

Feras rompiam tojos e balseiros.

E, pelas catacumbas desprezadas,

Mochos vagavam como sentinelas,

Em atalaia às gerações passadas!

Um crepúsculo imenso nunca visto

Tauxiava o Céu de grandes vidros roxos

Da mesma cor da túnica de Cristo.

Fulgia em tudo uma estriação violeta

E um violáceo clarão banhava os mochos

Que em torno estavam da mesquita preta.

Já na iminência da amplidão sidérea

Como uma umbela, se desenrolava

A esteira astral da retração etérea.

Os astros mortos refulgiam vivos

E a noite, ampla e brilhante, rutilava

Lantejoulada de opalinos crivos.

Súbito alguém, o passo constrangendo,

Parou em frente da mesquita morta...

– Um vento frio começou gemendo.

Era uma viúva, e o olhar errante, a viúva,

Em passo lento, foi transpondo a porta,

Eternamente aberta ao sol e à chuva.

A Lua encheu o espaço sem limites

E, dentro, nos altares esboroados,

Foram caindo como estalactites

Sobre o ouro e a prata das alfaias priscas

Um dilúvio de fósforos prateados

E uma chuva dourada de faíscas.

Fora, entretanto, por um chão de onagras

Vinha passeando como numa viagem

Um grupo feio de panteras magras.

E havia no atro olhar dessas panteras

Essa alegria doida da carnagem

Que é a alegria única das feras.

E ardendo na impulsão das ânsias doudas

E em sevas fúrias, infernais ardendo

Todas as feras, as panteras todas

Avançam para a viúva desvalida.

E raivosas, contra ela, arremetendo,

Tiram-lhe todas ali mesmo a vida.

Morria a noite. As flâmulas altivas

Do sol nascente erguiam-se vermelhas,

Como uma exposição de carnes vivas.

E iam cair em pérolas de sangue

Sobre as asas doiradas das abelhas,

E sobre o corpo da viúva exangue.

A Natureza celebrava a festa

Do astro glorioso em cantos e baladas

– O próprio Deus cantava na floresta!

Nos arvoredos rejuvenescidos,

Estrugiam canções desesperadas

De misereres e de sustenidos.

Além, entanto, na redoma clara

Que envolve a porta da região etérea,

O espírito da viúva se quedara

Ao contemplar dessa fulgente porta

E dessa clara e alva redoma aérea,

No desfilar de sua carne morta

A transitoriedade da matéria!

CANTO ÍNTIMO

Meu amor, em sonhos, erra,

Muito longe, altivo e ufano

Do barulho do oceano

E do gemido da terra!

O Sol está moribundo.

Um grande recolhimento

Preside neste momento

Todas as forças do Mundo.

De lá, dos grandes espaços,

Onde há sonhos inefáveis

Vejo os vermes miseráveis

Que hão de comer os meus braços.

Ah! Se me ouvisses falando!

(E eu sei que às dores resistes)

Dir-te-ia coisas tão tristes

Que acabarias chorando.

Que mal o amor me tem feito!

Duvidas?! Pois, se duvidas,

Vem cá, olha estas feridas,

Que o amor abriu no meu peito.

Passo longos dias, a esmo...

Não me queixo mais da sorte

Nem tenho medo da Morte

Que eu tenho a Morte em mim mesmo!

“Meu amor, em sonhos, erra,

Muito longe, altivo e ufano

Do barulho do oceano

E do gemido da terra!”

A LUVA

Para o Augusto Belmont

Pensa na glória! Arfa-lhe o peito, opresso.

– O pensamento é uma locomotiva –

Tem a grandeza duma força viva

Correndo sem cessar para o Progresso.

Que importa que, contra ele, horrendo e preto

O áspide abjeto do Pesar se mova!...

E só, no quadrilátero da alcova,

Vem-lhe à imaginação este soneto:

“A princípio escrevia simplesmente

Para entreter o espírito... Escrevia

Mais por impulso de idiossincrasia

Do que por uma propulsão consciente.

Entendi, depois disso, que devia,

Como Vulcano, sobre a forja ardente

Da Ilha de Lemnos, trabalhar contente,

Durante as vinte e quatro horas do dia!

Riam de mim, os monstros zombeteiros.

Trabalharei assim dias inteiros,

Sem ter uma alma só que me idolatre...

Tenha a sorte de Cícero proscrito

Ou morra embora, trágico e maldito,

Como Camões morrendo sobre um catre!”

Nisto, abre, em ânsias, a tumbal janela

E diz, olhando o céu que além se expande:

“ – A maldade do mundo é muito grande,

Mas meu orgulho ainda é maior do que ela!

Ruja a boca danada da profana

Coorte dos homens, com o seu grande grito,

Que meu orgulho do alto do Infinito

Suplantará a própria espécie humana!

Quebro montanhas e aos tufões resisto

Numa absoluta impassibilidade!”,

E como um desafio à eternidade

Atira a luva para o próprio Cristo!

Chove. Sobre a cidade geme a chuva,

Batem-lhe os nervos, sacudindo-o todo,

E na suprema convulsão o doudo

Parece aos astros atirar a luva!

À CARIDADE

No universo a caridade,

Em contraste ao vício infando,

É como um astro brilhando

Sobre a dor da humanidade!

Nos mais sombrios horrores

Por entre a mágoa nefasta

A caridade se arrasta

Toda coberta de flores!

Semeadora de carinhos,

Ela abre todas as portas

E no horror das horas mortas

Vem beijar os pobrezinhos.

Torna as tormentas mais calmas,

Ouve o soluço do mundo

E dentro do amor profundo

Abrange todas as almas.

O céu de estrelas se veste

E em fluidos de misticismo

Vibra no nosso organismo

Um sentimento celeste.

A alegria mais acesa

Nossas cabeças invade...

Glória, pois, à Caridade

No seio da Natureza!

Estribilho

Cantemos todos os anos

Na festa da Caridade

A solidariedade

Dos sentimentos humanos.

ILUSÃO

Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes

Tudo que sentes.