Do fado,

Do destino fatal, presa, morria

Uma noite entre as vascas da agonia

Tendo no corpo o verme do pecado!

NO CLAUSTRO

Pelas do claustro salas silenciosas,

De lutulentas, úmidas arcadas,

Na vastidão silente das caladas

Abóbadas sombrias tenebrosas,

Vagueiam tristemente desfiladas

De freiras e de monjas tristurosas,

Que guardam cinzas de ilusões passadas,

Que guardam pét’las de funéreas rosas.

E à noite quando rezam na clausura,

No sigilo das rezas misteriosas,

Nem a sombra mais leve de ventura!

Sempre as arcadas ogivais, desnudas,

E as mesmas monjas sempre tristurosas,

E as mesmas portas impassíveis, mudas!

IL TROVATORE

Canta da torre o trovador saudoso

Addio, Eleonora! oh! sonhos meus!

E o canto se desprende harmonioso

Na vibração final do extremo adeus.

Repercute, dolente, mavioso,

Subindo pelo Azul da Inspiração;

Assim canta também meu coração,

Trovador torturado e angustioso.

Ai! não, não acordeis, lembranças minhas!

Saudade d’umas noites em que vinhas

Cantar comigo um doce desafio!

Mas pouco a pouco, os sons esmorecendo,

Perdem-se as notas pelo Azul morrendo

Addio, Eleonora, addio, addio!

A LOUCA

A Dias Paredes

Quando ela passa: – a veste desgrenhada,

O cabelo revolto em desalinho,

No seu olhar feroz eu adivinho

O mistério da dor que a traz penada.

Moça, tão moça e já desventurada;

Da desdita ferida pelo espinho,

Vai morta em vida assim pelo caminho,

No sudário da mágoa sepultada.

Eu sei a sua história. – Em seu passado

Houve um drama d’amor misterioso

– O segredo d’um peito torturado –

E hoje, para guardar a mágoa oculta,

Canta, soluça – o coração saudoso,

Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

PRIMAVERA

A meu irmão Odilon dos Anjos

Primavera gentil dos meus amores,

– Arca cerúlea de ilusões etéreas,

Chova-te o Céu cintilações sidéreas

E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,

Na auréola azul dos dias teus risonhos,

Tu que sorveste o fel das minhas dores

E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,

Os dias voltarão a ser tristonhos

E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,

Arca sagrada de cerúleos sonhos,

Primavera gentil dos meus amores!

A ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,

Também como ela não sucumbe a Crença.

Vão-se sonhos nas asas da Descrença,

Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;

No entanto o mundo é uma ilusão completa,

E não é a Esperança por sentença

Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito

Sirva-te a Crença de fanal bendito,

Salve-te a glória no futuro – avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,

Também espero o fim do meu tormento,

Na voz da Morte a me bradar: descansa!

SONETO

Senhora, eu trajo o luto do Passado,

Este luto sem fim que é o meu Calvário

E anseio e choro, delirante e vário,

Sonâmbulo da dor angustiado.

Quantas venturas que me acalentaram!

Meu peito, túm’lo do prazer finado,

Foi outrora do riso abençoado,

O berço onde as venturas se embalaram.

Mas não queiras saber nunca, risonha,

O mistério d’um peito que estertora

E o segredo d’um’alma que não sonha!

Não, não busques saber por que, Senhora,

É minha sina perenal, tristonha

– Cantar o Ocaso quando surge a Aurora.

SOFREDORA

Cobre-lhe a fria palidez do rosto

O sendal da tristeza que a desola;

Chora – o orvalho do pranto lhe perola

As faces maceradas de desgosto.

Quando o rosário de seu pranto rola,

Das brancas rosas do seu triste rosto

Que rolam murchas como um sol já posto

Um perfume de lágrimas se evola.

Tenta às vezes, porém, nervosa e louca

Esquecer por momento a mágoa intensa

Arrancando um sorriso à flor da boca.

Mas volta logo um negro desconforto,

Bela na Dor, sublime na Descrença,

Como Jesus a soluçar no Horto!

ECOS D’ALMA

Oh! madrugada de ilusões, santíssima,

Sombra perdida lá do meu Passado,

Vinde entornar a clâmide puríssima

Da luz que fulge no ideal sagrado!

Longe das tristes noites tumulares

Quem me dera viver entre quimeras,

Por entre o resplandor das Primaveras

Oh! madrugada azul dos meus sonhares;

Mas quando vibrar a última balada

Da tarde e se calar a passarada

Na bruma sepulcral que o céu embaça,

Quem me dera morrer então risonho,

Fitando a nebulosa do meu Sonho

E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

Amor e Crença

– E sê bendita!

H. Sienkiewicz

Sabes que é Deus? Esse infinito e santo

Ser que preside e rege os outros seres,

Que os encantos e a força dos poderes

Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,

Essa sublime adoração do crente,

Esse manto de amor doce e clemente

Que lava as dores e que enxuga o pranto?!

Ah! se queres saber a sua grandeza,

Estende o teu olhar à Natureza,

Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!

Deus é o Templo do Bem. Na altura Imensa,

O Amor é a hóstia que bendiz a Crença,

Ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!

ARIANA

Ela é o tipo perfeito da ariana,

Branca, nevada, púbere, mimosa,

A carne exuberante e capitosa

Trescala a essência que de si dimana.

As níveas pomas do candor da rosa,

Rendilhando-lhe o colo de sultana,

Emergem da camisa cetinosa

Entre as rendas sutis de filigrana.

Dorme talvez. Em flácido abandono

Lembra formosa no seu casto sono

A languidez dormente da indiana,

Enquanto o amante pálido, a seu lado

Medita, a fronte triste, o olhar velado

No Mistério da Carne Soberana.

TEMPOS IDOS

Não enterres, coveiro, o meu Passado,

Tem pena dessas cinzas que ficaram;

Eu vivo dessas crenças que passaram,

E quero sempre tê-las ao meu lado!

Não, não quero o meu sonho sepultado

No cemitério da Desilusão,

Que não se enterra assim sem compaixão

Os escombros benditos de um Passado!

Ai! não me arranques d’alma este conforto!

– Quero abraçar o meu Passado morto,

– Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!

Deixa ao menos que eu suba à Eternidade

Velado pelo círio da Saudade,

Ao dobre funeral dos tempos idos!

SONETO

(Lendo o “Poema de Maio”)

Na rua em funeral ei-la que passa,

A romaria eterna dos aflitos,

A procissão dos tristes, dos proscritos,

Dos romeiros saudosos da desgraça.

E na choça a lamúria que traspassa

O coração, além, ânsias e gritos

De mães que arquejam sobre os pobrezitos

Filhos que a Fome derrubou na praça.

Entre todos, porém, lânguida e bela,

Da juventude a virginal capela

A lhe cingir de luz a fronte baça,

Vai Corina mendiga e esfarrapada,

A alma saudosa pelo amor vibrada,

– A Stella Matutina da Desgraça!

SONETO

Pareceu-me inda ouvir o nome dela

No badalar monótono dos sinos.

Hermeto Lima

Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,

Saí deixando morta a minha amada,

Vinha o luar iluminando a estrada

E eu vinha pela estrada soluçando.

Perto, um ribeiro claro murmurando

Muito baixinho como quem chorava,

Parecia o ribeiro estar chorando

As lágrimas que eu triste gotejava.

Súbito ecoou do sino o som profundo!

Adeus! – eu disse. Para mim no mundo

Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.

Mas no mistério astral da noite bela

Pareceu-me inda ouvir o nome dela

No marulhar monótono das águas!

A AERONAVE

Cindindo a vastidão do Azul profundo,

Sulcando o espaço, devassando a terra,

A aeronave que um mistério encerra

Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera

Ei-la embalada n’amplidão dos ares,

Fitando o abismo sepulcral dos mares,

Vencendo o azul que ante si s’erguera.

Voa, se eleva em busca do Infinito,

E como um despertar de estranho mito,

Auroreando a humana consciência.

Cheia da luz do cintilar de um astro,

Deixa ver na fulgência do seu rastro

A trajetória augusta da Ciência.

LIRIAL

Por que choras assim, tristonho lírio,

Se eu sou o orvalho eterno que te chora,

P’ra que pendes o cálice que enflora

Teu seio branco do palor do círio?!

Baixa a mim, irmã pálida da Aurora,

Estrela esmaecida do Martírio;

Envolto da tristeza no delírio,

Deixa beijar-te a face que descora!

Fosses antes a rosa purpurina

E eu beijaria a pétala divina

Da rosa, onde não pousa a desventura.

Ai! que ao menos talvez na vida escassa

Não chorasses à sombra da desgraça,

Para eu sorrir à sombra da ventura!

A MINHA ESTRELA

A meu irmão Aprígio A.

E eu disse – Vai-te, estrela do Passado!

Esconde-te no Azul da Imensidade

Lá onde nunca chegue esta saudade,

– A sombra deste afeto estiolado.

Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,

Minh’alma que de longe a acompanhava,

Viu o adeus que do Céu ela enviava,

E quando ela no Azul foi-se sumindo

Surgia a Aurora – a mágica princesa!

E eu vi o Sol do Céu iluminando

A Catedral da Grande Natureza.

Mas a noite chegou, triste, com ela

Negras sombras também foram chegando,

E nunca mais eu vi a minha estrela!

SONETO

A praça estava cheia. O condenado

Transpunha nobremente o cadafalso,

Puro de crime, isento de pecado,

Vítima augusta de indelével falso.

E na atitude do Crucificado,

O olhar azul pregado n’amplidão,

Pude rever naquele desgraçado

O drama lutuoso da Paixão.

Quando do algoz cruento o braço alçado

Se dispunha a vibrar sem compaixão

O golpe na cabeça do culpado

Ele, o algoz – o criminoso – então,

Caiu na praça como fulminado

A soluçar: perdão, perdão, perdão!

VERSOS D’UM EXILADO

Eu vou partir. Na límpida corrente

Rasga o batel o leito d’água fina

– Albatroz deslizando mansamente

Como se fosse vaporosa Ondina.

Exilado de ti, oh! Pátria! ausente

Irei cantar a mágoa peregrina

Como canta o pastor a matutina

Trova d’amor, à luz do sol nascente!

Não mais virei talvez e, lá sozinho,

Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho,

D’onde levo comigo a nostalgia

E esta lembrança que hoje me quebranta

E que eu levo hoje como a imagem santa

Dos sonhos todos que já tive um dia!

SONETO[1]

Ergue, criança, a fronte condorina

Que é tua fronte, oh! genial criança,

É como a estrela-d’alva da esperança,

Do talento sagrado que a ilumina!

Ergue-a, pois, e que, à auréola purpurina

Do Sol da Ciência, o rútilo tesouro

Do Estudo – o Grande Mestre – que te ensina,

Chova sobre ela suas gemas d’ouro!

E hoje que colhes um laurel bendito,

Aceita a saudação que num contrito

Fervor, eleva, qual penhor sincero,

Um peito amigo a outro peito amigo,

A um gênio que desponta e que eu bendigo,

A um coração de irmão que tanto quero!

Engenho Pau d’Arco – 14 de dezembro de 1901.

[1] Em epígrafe: “Ao meu prezado irmão Alexandre Júnior, pelo término dos seus estudos neste ano, em troféu de homenagem ao grande aproveitamento que deles soube tirar; a aplicação será sempre a “alma mater” da inteligência humana, e o caminho mais perfeito que nos pode levar à tortuosa via da Ciência.” (N.E.)

A ESMOLA DE DULCE

Ao Alfredo A.

E todo o dia eu vou como um perdido

De dor, por entre a dolorosa estrada,

Pedir a Dulce, a minha bem-amada,

A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,

E eu balbucio trêmula balada:

– Senhora, dai-me u’a esmola – e estertorada

A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,

Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,

E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!

Bendita seja a Dulce! A minha vida

Estava unicamente nessa esmola.

Ave DOLOROSA

Ave perdida para sempre – crença

Perdida – segue a trilha que te traça

O Destino, ave negra da Desgraça,

Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!

Dos sonhos meus na Catedral imensa

Que nunca pouses. Lá, na névoa baça,

Onde o teu vulto lúrido esvoaça,

Seja-te a vida uma agonia intensa!

Vives de crenças mortas e te nutres,

Empenhada na sanha dos abutres,

Num desespero rábido, assassino...

E hás de tombar um dia em mágoas lentas,

Negrejada das asas lutulentas

Que te emprestar o corvo do Destino!

SONETO

Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me,

Leva-me o esp’rito dessa luz que mata,

E a alma me ofusca e o peito me maltrata,

E o viver calmo e sossegado tolhe-me!

Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me

N’asa da Morte redentora, e à ingrata

Luz deste mundo em breve me arrebata

E num pallium de tênebras recolhe-me!

Aqui há muita luz e muita aurora,

Há perfumes d’amor – venenos d’alma –

E eu busco a plaga onde o repouso mora,

E as trevas moram, e, onde d’água raso

O olhar não trago, nem me turba a calma

A aurora deste amor que é o meu ocaso!

NIMBOS

Nimbos de bronze que empanais escuros

O santuário azul da Natureza,

Quando vos vejo, negros palinuros

Da tempestade negra e da tristeza,

Abismados na bruma enegrecida,

Julgo ver nos reflexos de minh’alma

As mesmas nuvens deslizando em calma,

Os nimbos das procelas desta vida;

Mas quando o céu é límpido, sem bruma

Que a transparência tolde, sem nenhuma

Nuvem sequer; então, num mar de esp’rança,

Que o céu reflete, a vida é qual risonho

Batel, e a alma é a Flâmula do sonho,

Que o guia e o leva ao porto da bonança.

O MAR

O mar é triste como um cemitério;

Cada rocha é uma eterna sepultura

Banhada pela imácula brancura

De ondas chorando num albor etéreo.

Ah! dessas vagas no bramir funéreo

Jamais vibrou a sinfonia pura

Do amor; lá, só descanta, dentre a escura

Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,

Banhando a fria solidão das fragas,

Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma,

Reflete a luz do sol que já não arde,

Treme na treva a púrpura da tarde,

Chora a Saudade envolta nesta espuma!

Pau d’Arco – 1902.

ANSEIO

Nessas paragens desoladas, onde

O silêncio campeia soberano

Morreram notas do bulício humano,

Nem vibra a corda que a saudade esconde.

Anseios d’alma aqui se perdem. Donde

Fluiu outrora a luz dum doce engano,

Hoje é trevas, é dor, é desengano,

E eu ergo preces que ninguém responde.

Triste criança virginal, quem dera

Voar est’alma a ti, longe dos laços

Dessa jaula de carne que a encarcera!

Ah! que unidos assim, lá nos espaços,

Cantarias do amor a primavera,

Tendo a minh’alma presa nos teus braços!

Pau d’Arco – 1902.

SONETO

Aurora morta, foge! Eu busco a virgem loura

Que fugiu-me do peito ao teu clarão de morte

E Ela era a minha estrela, o meu único Norte,

O grande Sol de afeto – o Sol que as almas doura!

Fugiu... e em si levou a Luz consoladora

Do amor – esse clarão eterno d’alma forte –

Astro da minha Paz, Sírius da minha Sorte

E da Noite da vida a Vênus Redentora.

Agora, oh! minha Mágoa, agita as tuas asas,

Vem! rasga deste peito as nebulosas gazas

E, num Pálio auroral de Luz deslumbradora,

Ascende à Claridade. Adeus oh! Dia escuro,

Dia do meu Passado! Irrompe, meu Futuro;

Aurora morta, foge – eu busco a virgem loura!

Pau d’Arco – 1902.

NO CAMPO

Tarde. Um arroio canta pela umbrosa

Estrada; as águas límpidas alvejam

Como cristais. Aragem suspirosa

Agita os roseirais que ali vicejam.

No alto, entretanto, os astros rumorejam

Um presságio de noite luminosa

E ei-la que assoma – a Louca tenebrosa,

Branca, emergindo às trevas que a negrejam.

Chora a corrente múrmura, e, à dolente

Unção da noite, as flores também choram

Num chuveiro de pétalas, nitente,

Pendem e caem – os roseirais descoram

E elas boiam no pranto da corrente

Que as rosas, ao luar, chorando enfloram.

Pau d’Arco – 1902

SONETO

Canta o teu riso esplêndida sonata,

E há, no teu riso de anjos encantados,

Como que um doce tilintar de prata

E a vibração de mil cristais quebrados.

Bendito o riso assim que se desata

– Cítara suave dos apaixonados,

Sonorizando os sonhos já passados,

Cantando sempre em trínula volata!

Aurora ideal dos dias meus risonhos,

Quando, úmido de beijos em ressábios

Teu riso esponta, despertando sonhos...

Ah! num delíquio de ventura louca,

Vai-se minh’alma toda nos teus lábios,

Ri-se o meu coração na tua boca!

Pau d’Arco – 1902.

CRAVO DE NOIVA

Ao Dias Paredes

Cravo de noiva. A nívea cor de cera

Que o seu seio branqueja, é como os prantos

Níveos, que a virgem chora, entre os encantos

Dum noivado risonho em primavera.

Flor dos mistérios d’alma, sacrossantos,

Guarda segredos divinais que eu dera

Duas vidas, se duas eu tivera,

P’ra desvendar os seus segredos santos.

E tudo quer que nessa flor se enleve

O poeta. É que dessa concha armínea

Da lactescência angélica da neve,

Se evolam castos, virginais aromas

De essência estranha; olências de virgínea

Carne fremindo num langor de pomas.

Pau d’Arco – 1902.

PLENILÚNIO

Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida

Que lhe serve de alvíssimo sudário

Respira essências raras, toda a cálida

Mística essência desse alampadário.

E a lua é como um pálido sacrário,

Onde as almas das virgens em crisálida

De seios alvos e de fronte pálida,

Derramam a urna dum perfume vário.

Voga a lua na etérea imensidade!

Ela, eterna noctâmbula do Amor,

Eu, noctâmb’lo da Dor e da Saudade.

Ah! como a branca e merencória lua,

Também envolta num sudário – a Dor,

Minh’alma triste pelos céus flutua!

Pau d’Arco – 1902.

Insânia

No mundo vago das idealidades

Afundei minha louca fantasia;

Cedo atraiu-me a áurea fulgidia

Da refulgência antiga das idades.

Mas ao esplendor das velhas majestades

Vacila a mente e o seu ardor esfria;

Busquei então, na nebulosa fria

Das Ilusões, sonhar novas idades.

Que desespero insano me apavora!

Aqui, chora um ocaso sepultado;

Ali, pompeia a luz da branca aurora.

E eu tremo e hesito entre um mistério escuro:

– Quero partir em busca do Passado,

– Quero correr em busca do Futuro.

Paraíba - 1902.

O BANDOLIM

Cantas, soluças, bandolim do Fado

E de Saudade o peito meu transbordas;

Choras, e eu julgo que nas tuas cordas

Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez dum desgraçado,

Um dia morto da Ilusão às bordas,

Tanto que cantas, e ilusões acordas,

Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é triste e calma,

Teu canto, vindo de profundas fráguas,

É como as nênias do Coveiro d’alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...

E vais aos poucos soluçando mágoas,

E vais aos poucos soluçando queixas!

ARA MALDITA

Como um’ave, cindindo os céus risonhos,

Meiga, tu vinhas a cindir os ares

E, qual hóstia caindo dos altares,

Foste caindo n’ara dos meus sonhos.

E eu vi os seios teus virem inconhos,

– Esses teus seios que os cerúleos lares

Branquejaram de eternos nenufares,

Para nunca tocarem negros sonhos!

Caíste enfim no meu sacrário ardente,

Quiseste-me beijar a ara do peito

E eu quis beijar-te o lábio redolente.

E beijei-te, mas eis que neste enleio,

Tocando n’ara negra o níveo seio,

Caíste morta ao celestial preceito.

SONETO

Na etérea limpidez de um sonho branco,

Lúcia sorriu-se à bruma nevoenta,

E a procela chorou num fundo arranco

De mágoa triste e de paixão violenta.

E Lúcia disse à bruma lutulenta:

– Foge, senão co’o o meu olhar te espanco!

E eu vi que, à voz de Lúcia, grave e lenta,

O céu tremia em seu trevoso flanco.

Fulgia a bruma para sempre. A vida

Despontava na aurora amortecida

À rutilância mágica do dia.

Aquele riso despertava a aurora!

E tudo riu-se, e como Lúcia, agora,

O sol, alegre e rubro, também ria!

TREVA E LUZ

Neste pélago escuro em que te afundas,

Longe das sombras aurorais e amadas,

Sentes o peito em ânsias revoltadas,

Diluis teu peito em sensações profundas.

Mas, eis que emerges, luminosa, às fundas

Águas do mar das glórias obumbradas,

E, ante o branco estendal das madrugadas,

Nua, em banho ideal de amor te inundas.

Agora, à luz das alvoradas santas

Ungem-te o corpo redolências tantas,

Que, ao ver-te nua, o Mundo se concentre,

E a lua, a Virgem Mãe dos céus escampos,

Que beija a terra e que abençoa os campos,

Beije-te o seio e te abençoe o ventre!

SONETO

O Templo da Descrença – ei-lo que avisto. A imensa

Cruz da Dor lá está serena como um lírio!

E vejo o pedestal que sustenta o Martírio;

E vejo o pedestal que sustenta a Descrença!

– A colunata exul do Sonho Morto – o círio

Da Quimera Falaz, o túmulo da Crença,

Tudo! até o altar onde a Angústia vibra intensa

Numa fúria assombral de feras em delírio!

Penetro louco enfim o abismo funerário,

E a rasgar, a rasgar o lúrido sacrário,

Em mim como no Templo a Angústia se condensa,

E em mim como no Templo, urnas de Sonho, e, em bando,

Flores mortas da Aurora, e, eu sombrio chorando

Ante a imagem fatal do Sepulcro da Crença!

A PESTE

Filha da raiva de Jeová – a Peste,

Num insano ceifar que aterra e espanta,

De espaço a espaço sepulturas planta

E em cada coração planta um cipreste!

Exulta o Eterno, e... tudo chora, tudo!

Quando Ela passa, semeando a Morte,

Todos dizem co’os olhos para a Sorte

– É o castigo de Deus que passa mudo!

– Fúlgido foco de escaldantes brasas

– O sol a segue, e a Peste ri-se, enquanto

Vai devastando o coração das casas...

E como o sol que a segue e deixa um rastro

De luz em tudo, ela, como o sol – o astro –

Deixa um rastro de luto em cada canto!

IDEAL

Quero-te assim, formosa entre as formosas

No olhar d’amor a mística fulgência

E o misticismo cândido das rosas

Plena de graça, santa de inocência!

Anjo de luz de astral aurifulgência,

Etéreo como as Willis vaporosas,

Embaladas no albor da adolescência,

– Virgens filhas das virgens nebulosas!

Quero-te assim, formosa, entre esplendores

Colmado o seio de virentes flores,

A alma diluída em etereais cismares...

Quero-te assim... e que bendita sejas

Como as aras sagradas das igrejas,

Como o Cristo sagrado dos altares!

CÍTARA MÍSTICA

Cantas... e eu ouço etérea cavatina!

Há nos teus lábios – dois sangrentos círios –

A gêmea florescência de dois lírios

Entrelaçados numa unção divina.

Como o santo levita dos Martírios,

Rendo piedosa dúlia peregrina

À tua doce voz que me fascina,

– Harpa virgem brandindo mil delírios!

Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,

E a Noite afeia como num sarcasmo

E agora a sombra vesperal morreu...

Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,

Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,

É a música de Deus que vem do Céu!

SÚPLICA NUM TÚMULO

Maria, eis-me a teus pés. Eu venho arrependido,

Implorar-te o perdão do imenso crime meu!

Eis-me, pois, a teus pés, perdoa o teu vencido,

Açucena de Deus, lírio morto do Céu!

Perdão! e a minha voz estertora um gemido,

E o lábio meu p’ra sempre apartado do teu

Não há de beijar mais o teu lábio querido!

Ah! quando tu morreste, o meu Sonho morreu!

Perdão, pátria da Aurora exilada do Sonho!

– Irei agora, assim, pelo mundo, para onde

Me levar o Destino abatido e tristonho...

Perdão! e este silêncio e esta tumba que cala!

Insânia, insânia, insânia, ah! ninguém me responde...

Perdão! e este sepulcro imenso que não fala!

AFETOS

Bendito o amor que infiltra n’alma o enleio

E santifica da existência o cardo,

– Amor que é mirra e que é sagrado nardo,

Turificando a languidez dum seio!

O amor, porém, que da Desgraça veio

Maldito seja, seja como o fardo

Desta descrença funeral em que ardo

E com que o fogo da paixão ateio!

Funambulescamente a alma se atira

À luta das paixões, e, como a Aurora

Que ao beijo vesperal anseia e expira,

Desce para a alma o ocaso da Carícia

Ora em sonhos de Dor, supremos, e ora

Em contorções supremas de Delícia!

MARTÍRIO SUPREMO

Duma Quimera ao fascinante abraço,

Por um Cocito ardente e luxurioso,

Onde nunca gemeu o humano passo,

Transpus um dia o Inferno Azul do Gozo!

O amor em lavas de candência d’aço,

Banhou-me o peito... Em ânsia de repouso,

Da Messalina fria no regaço,

Chora saudades do terreno pouso!

Como um mártir de estranho sacrifício,

Tinha os lábios crestados pela ardência

Da luz letal do grande Sol do Vício!

E mergulhei mais fundo no estuário...

Mas, no Inferno do Gozo, sem Calvário,

Cristo d’amor, morri pela Inocência!

SOMBRA IMORTAL

– E tu velas, a sós, no pó da fulgurância

Como uma velha cruz vela na sombra morta!

Fora, a noite é tumbal... e a saudade da infância,

Como um’alma de mãe, me acalenta e conforta!

Noite! E somente tu velas a rutilância...

Lua que já passou e que hoje ainda corta

O penetral que guia à derradeira estância,

O penetral que leva à derradeira porta!

Revejo em ti, mulher, num lânguido smorzando

A sombra virginal qu’eu adoro chorando

E há de um dia amparar-me na luta morrendo...

Ah! que um dia da Vida, estes dardos acúleos

Caiam, também da Dor, lá dos braços hercúleos,

Domados pela meiga Onfale a que me rendo!

CORAÇÃO FRIO

Frio e sagrado coração de lua,

Teu coração rolou da luz serena!

E eu tinha ido ver a aurora tua

Nos raios d’ouro da celeste arena...

E vi-te triste, desvalida e nua!

E o olhar perdi, ansiando a luz amena

No silêncio noctívago da rua...

– Sonâmbulo glacial de estranha pena!

Estavas fria! A neve que a alma corta

Não gele talvez mais, nem mais alquebre

um coração como a alma que está morta...

E estavas morta, eu vi, eu que te almejo,

– Sombra de gelo que me apaga a febre,

– Lua que esfria o sol do meu desejo!

NOTURNO

Para o vale noital da eterna gaza

Rolou o Sol – imenso moribundo –

E a noite veio na negrura d’asa,

Santificada pela Dor do Mundo!

U’a luz, entanto, no negror me abrasa,

E um canto vai morrer no vale fundo...

Que luz é esta que das brumas vaza,

Que canto é este, virginal, profundo?!

Rumores santos... e no santo harpejo,

Somente tristes os teus olhos vejo,

Para o Infinito e para o Céu voltados!

Cantas, e é noite de fatais abrolhos...

Choras, e no meu peito estes teus olhos

Como que cravam dois punhais gelados!

SEDUTORA

Alva d’aurora, e em lânguida sonata

Vinhas transpondo a margem do caminho,

Branca bem como empalecido arminho,

Alvorejando em arrebol de prata.

– Bendita a Santa do Carinho, inata!

E, ajoelhando à imagem do Carinho,

O roble altivo entreteceu-te um ninho,

Alva d’aurora, te acolheu a mata. –

Pérolas e ouro pela serrania...

No lago branco e rútilo do dia,

O azul pompeava para sempre vasto.

Chegaste, o seio branco, e, tu, chegando,

Uma pantera foi se ajoelhando,

Rendida ao eflúvio do teu seio casto!

PELO MUNDO

Ânsias que pungem, mórbidos encantos,

Crepitações de flamas incendidas

N’alma explodindo como fogos santos,

Vão pelo mundo ensanguentando as Vidas.

Eflúvios quentes e fatais quebrantos

Crestam a alma das virgens adormidas...

E as brumas velam nos sinistros mantos

E as virgens dormem nas tumbais jazidas!

Súbitos fremem ’spasmos derradeiros...

E a paixão morre e os corações coveiros

Vão como duendes pelos céus risonhos,

Chorando auroras, músicas perdidas,

Na estrada santa ensanguentando as Vidas,

Nos campos-santos enterrando os Sonhos!

SONETO

E o mar gemeu a funda melopeia

À luz feral que a tarde morta instila,

Triste como um soluço de Dalila,

Fria como um crepúsculo da Judeia.

Já Vésper, no Alto, e lânguida, cintila!

Naquela hora morria para a Ideia

A minha branca e desgraçada Deia,

Qual rosa branca que ao tufão vacila.

E o mar chamou-a para o fundo abismo!

E o céu chamou-a para o Misticismo.

Nesse momento a Lua vinha calma.

E céu e mar num desespero mudo

Não viram que num halo de veludo

À alma de Deia se evolava est’alma.

O RISO

“Ri, coração, tristíssimo palhaço.”

Cruz e Sousa

O Riso – o voltairesco clown – quem mede-o?!

– Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,

Na Via-Láctea fria do Nirvana,

Alenta a Vida que tombou no Tédio!

Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,

E ergue à sombra da dor a que se irmana

Lauréis em sangue de volúpia insana,

Clarões de sonho em nimbos de epicédio!

Bendito sejas, Riso, clown da Sorte

– Fogo sagrado nos festins da Morte,

– Eterno fogo, saturnal do Inferno!

Eu te bendigo! No mundano cúmulo

És a Ironia que tombou no túmulo

Nas sombras mortas dum desgosto eterno!

SONETO

Vamos, querida! Já é Ave-Maria

– A hora dos tristes e dos descontentes.

Desfaz-se o peito em vibrações dormentes

E o Fado geme sob a névoa fria!

Que eu sinta n’alma o que tu n’alma sentes!

Nesta Missa de Atroz Melancolia

Bebes chorando o Vinho da Agonia!

– Consagração das almas padecentes!

Foi numa tarde assim que nos amamos.

Silfos morriam... No ar, os gaturamos

Num recesso de névoa, adormecida...

Punge-me o peito da Saudade o cardo,

Enquanto um mocho, sonolento e tardo,

Canta no espaço a maldição da vida.

A UMA MÁRTIR

Alma em cilício, vem, enrista a clava,

Brande no seio o espículo e o acinace

E unjam-te o seio que d’auroras nasce

Sangrentas bênçãos eclodindo em lava!

Nossa Senhora te unge a face escrava,

Cristo saudoso te abençoa a face,

Monja, – violeta que do Céu baixasse

À Virgem Santa Natureza brava!

Vais caminhando para a terra extrema,

Rosa dos sonhos! e o teu galho trema

E a tua crença, o desespero mate-a...

E em nuvens d’ouro ascende enfim ao plaustro

Da Neve Eterna, estrela azul do claustro

Levada para o Azul da Via-Láctea!

RÉGIO

Festa no paço! Noite...