Teve sede e fome...
E foi assim que ele morreu um dia
Amaldiçoado pelo próprio nome!
Pau d’Arco – 1906.
Dolências
Eu fui cadáver, antes de viver!...
– Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver!
Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E acostumado a assim sofrer, existo...
Existo!... – E apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei também de ser!
Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Eu, de saudades me despedaçando,
De novo, triste e sem cantar, morrer,
Nada se altere em sua marcha infinda
– O tamarindo reverdeça ainda,
A lua continue sempre a nascer!
Pau d’Arco – 1906.
AVE LIBERTAS
Ao clarão irial da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.
É que baqueia a vida escravizada!
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro,
Da República a nova sublimada.
E ali, do despotismo entre os escombros,
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;
Enquanto fora na trevosa agrura
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A Liberdade assoma majestosa,
– Estrela d’Alva imaculada e pura!
É livre a Pátria outrora opressa e exangue!
Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pôde as aras da República.
Não! que esse ideal puro, risonho,
Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!
Esplende, pois, oh! Redentora d’alma,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.
Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos,
Caia do santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A bênção do valor dos vossos filhos!
QUADRAS
Embala-me em teus braços,
De amores bons à sombra –
Quero em cheirosa alfombra
Pousar os sonhos lassos!
Teus seios, oh! morena
– Relíquias de Carrara –
Têm a ambrosia rara
Da mais rara verbena.
Aperta-me em teu peito,
E dá-me assim, divina,
De lírios e bonina
Um veludíneo leito.
Assim como Jesus,
Eu quero o meu Calvário
– Anelo morrer vário
Dos braços teus na Cruz!
Por que não me confortas?!
Bem sei, perdeste a olência,
Morreu-te a redolência,
Alma das virgens mortas –
Mas não! Apaga os traços
De tão funesto aspeito...
Aperta-me em teu peito,
Embala-me em teus braços!
VÊNUS MORTA
A Via-Sacra Azul do amor primeiro
Veste hoje o luto que a desgraça veste
No miserere do meu desespero...
– Lótus diluído n’alma dum cipreste!
Como um lilás eternizando abrolhos
Tinge de roxo o arminho da grinalda,
Rola a violeta santa dos teus olhos
– Tufos de goivo em conchas de esmeralda.
No vácuo imenso das desesperanças
E dos passados viços,
Recordo o beijo que te dei nas tranças
Emolduradas num florão de riços.
E como um nume de pesar, plangente,
Guarda a saudade que levou do Marne,
Eu guardo o travo deste beijo ardente
E a Nostalgia desta Pátria – a Carne!
Sonho abraçar-te, pálida camélia,
Mas neste sonho, langue e seminua,
Pareces reviver a antiga Ofélia,
À opalescência trágica da lua!
Tu, oh! Quimera, de reverberantes
E rubras asas de heliantos pulcros,
Crava-lhe n’alma o tirso das bacantes,
Brande-lhe n’alma o frio dos sepulcros.
Reza-lhe todo o cantochão memento
Dessa Missa de amor da Extrema Agrura,
Abençoada pelo meu tormento
E consagrada pela sepultura.
E que ela suba na serena gaza
Dos mistérios dourados e serenos
À terra Ideal das púrpuras em brasa
E ao Céu dourado e auroreal de Vênus!
ODE AO AMOR
Enches o peito de cada homem, medras
N’alma de cada virgem, e toda a alma
Enches de beijos de infinita calma...
E o aroma dos teus beijos infinitos
Entra na terra, bate nos granitos
E quebra as rochas e arrebenta as pedras!
És soberano! Sangras e torturas!
Ora, tangendo tiorbas em volatas,
Cantas a Vida que sangrando matas,
Ora, clavas brandindo em seva e insana
Fúria, lembras, Amor, a soberana
Imagem pétrea das montanhas duras.
Beijam-te o passo as multidões escravas
Dos Desgraçados! – Estas multidões
Sonham pátrias douradas de ilusões
Entre os tórculos negros da Desgraça
– Flores que tombam quando a neve passa
No turbilhão das avalanches bravas!
Tudo dominas! – Dos vergéis tranquilos
Aos Capitólios, e dos Capitólios
Aos claros, pulcros e brilhantes sólios
De esplendor pulcro e de fulgências claras,
Rendilhados de fulvas gemas raras
E pontilhados de crisoberilos.
Sobes ao monte onde o edelweiss pompeia
N’alma do que subiu àquele monte!
Mas, vezes, desces ao segredo insonte
Do mar profundo onde a sereia canta
E onde a Alcíone trêmula se espanta
Ouvindo a gusla crebra da sereia!
Rompe a manhã. Sinos além bimbalham.
Troa o conúbio dos amores velhos
– As borboletas e os escaravelhos
Beijam-se no ar... Retroa o sino! E, quietos,
Beijam-se além os silfos e os insetos
Sob a esteira dos campos que se orvalham.
E em tudo estruge a tua dúlia – dúlia
Que na fibra mais forte e até na fibra
Mais tênue, chora e se lamenta e vibra...
E em cada peito onde um Ocaso chora
Levanta a cruz da redenção da Aurora
Como a Judite a redimir Betúlia!
Bem haja, pois, esse poder terrível,
– Essa dominação aterradora
– Enorme força regeneradora
Que faz dos homens um leão que dorme
E do Amor faz uma potência enorme
Que vela sobre os homens, impassível!
Esta de amor ode queixosa, Irene,
Quedo, sonhei-a, aos astros, ontem, quando
Entre estrias de estrelas, fosforeando,
Egrégia estavas no teu plaustro egrégio
Mais bela do que a Virgem de Corrégio
E os quadros divinais de Guido Reni!
Qual um crente em asiático pagode,
Entre timbales e anafis estrídulos,
Cativo, beija os áureos pés dos ídolos,
Assim, Irene, eis-me de ti cativo!
Cativaste-me, Irene, e eis o motivo,
Eis o motivo por que fiz esta ode.
A Lágrima
– Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Clorureto de sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!
– “A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina. –”
– O farmacêutico me obtemperou. –
Vem-me então à lembrança o pai Ioiô
Na ânsia psíquica da última eficácia...
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
Paraíba – 1909.
CANTO DE AGONIA
Agonia de amor, agonia bendita!
– Misto de infinita mágoa e de crença infinita.
Nos desertos da Vida uma estrela fulgura
E o Viajeiro do Amor, vendo-a, triste, murmura:
– Que eu nunca chore assim! Que eu nunca chore como
Chorei, ontem, a sós, num volutuoso assomo,
Numa prece de amor, numa delícia infinda,
Delícia que ainda gozo, oração, prece que ainda
Entre saudades rezo, e entre sorrisos e entre
Mágoas soluço, até que esta dor se concentre
No âmago de meu peito e de minha saudade.
Amor, escuridão e eterna claridade...
– Calor que hoje me alenta e há de matar-me em breve,
Frio que me assassina, amor e frio, neve,
Neve que me embala como um berço divino,
Neve da minha dor, neve do meu destino!
E eu aqui a chorar nesta noite tão fria!
Agonia, agonia, agonia, agonia!
– Diz e morre-lhe a voz, e cansado e morrendo
Viajeiro vai, e vê a luz e vendo
Uma sombra que passa, uma nuvem que corre,
Caminha e vai, o louco, abraça a sombra e... morre!
E a alma se lhe dilui na amplidão infinita...
Agonia de amar, agonia bendita!
HISTÓRIA DE UM VENCIDO
Sol alto. A terra escalda: é um forno. A flama oriunda
Da solar refração bate no mundo, acende
O pó, aclara o mar e por tudo se estende
E arde em tudo, mordendo a atra terra infecunda.
E o Velho veio para o labor cotidiano,
Triste, do alegre Sol ao grande globo quente
E pôs-se para aí, desoladoramente
A revolver da terra o atro e infecundo arcano.
Por seis horas seu braço empenhado na luta,
Fez reboar pelo solo, alta e descompassada
A dura vibração incômoda da enxada,
Rasgando, do agro solo, a superfície bruta.
Mas o braço cansou! Trabalhou... e o trabalho
– Do Eterno Bem motor principal e alavanca –
Arrancara-lhe a Crença assim como se arranca
De um ninho a seda branca e de uma árvore o galho!
Sangrou-lhe o coração a saudade da Aurora!
– O Hércules que ele fora! O fraco que ele hoje era!
E surpreendido viu que um abismo se erguera
Entre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!
Pois havia de, assim, nesta maldita senda
De sofrimento ignaro em sofrimento ignaro
Ir caminhando até tombar sem um amparo
No tremendo marnel da Desgraça tremenda?!
II
Noite! O silêncio vinha entrando pelo mundo
E ele, lúgubre e só, trôpego e cambaleando
Foi-se arrastando, foi aos poucos se arrastando,
Para as bordas fatais dum precipício fundo!
Quis um momento ainda olhar para o Passado...
E em tudo que o rodeava, oito vezes, funéreo,
Horrorizado viu como num cemitério
Cadáveres de um lado e cinzas de outro lado!
De súbito, avistando uma frondosa tília
Julgou, louco, avistar a Árvore da Esperança...
E bateram-lhe então de chofre na lembrança
A casa que deixara, os filhos, a família!
Não morreria, pois! Somente morreria
Se da Vida, sozinho, ele pisasse os trilhos...
Que mal lhe haviam feito a esposa e a irmã e os filhos?!
Preciso era viver! Portanto, viveria!
Viveria! E a fecunda e deleitosa seara
Verde dos campos, onde arde e floresce a Crença,
Compensaria toda a sua dor imensa
Tal qual o Céu a dor de Cristo compensara!
E aos tropeços, tombando, o Velho caminhava...
Caminhava, e a sonhar, bêbado de miragem,
Nem viu que era chegado o termo da viagem,
E amplo, a rugir-lhe aos pés, o precipício estava.
Num instante viu tudo, e compreendendo tudo,
Quis fazer um esforço – o último esforço, e o braço
Pendeu exangue, o peito arqueou-se, o cansaço
Empolgara-o, e ele quis falar e estava mudo!
Mudo! E a quem contaria agora as suas mágoas?!
E trágico, no horror bruto da despedida
Abraçou-se com a Dor, abraçou-se com a Vida
E sepultou-se ali no coração das águas!
Cantavam muito ao longe uns carmes doloridos!
Eram tropeiros, era a turba trovadora
Que assim cantava, enquanto a Terra Vencedora
Celebrava ao luar a Missa dos Vencidos!
E o cadáver, à toa, a flux d’água, flutua!
Ninguém o vê, ninguém o acalenta, o acalenta...
Somente entre a negrura atra da terra poenta
Alguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua!
ESTROFES SENTIDAS
Eu sei que o Amor enche o Universo todo
E se prende dos poetas à guitarra
Como o pólipo que se agarra ao lodo
E a ostra que às rochas eternais se agarra.
O amor reduz-nos a uniformes placas,
Uniformiza todos os anelos
E une organizações fortes e fracas
Nos mesmos laços e nos mesmos elos.
Por muito tempo eu lhe sorvi o aroma,
E, desvairado, sem prever o abismo,
Fiz desse amor um ídolo de Roma,
Eleito Deus no altar do fetichismo!
Tudo sacrifiquei para adorá-lo
– Mas hoje, vendo o horror dos meus destroços,
Tenho vontade de estrangulá-lo
E reduzi-lo muitas vezes a ossos!
Todo o ser que no mundo turbilhona
Vejando Amor, à luz das minhas frases,
Uma montanha que se desmorona,
Estremecendo em suas próprias bases.
E em qualquer parte do Universo veja –
Sombrias ruínas de um solar egrégio
E o desmoronamento duma Igreja
Despedaçada pelo sacrilégio.
A Natureza veste extraordinárias
Roupagens de ouro. Além, nas oliveiras,
Aves de várias cores e de várias
Espécies, cantam óperas inteiras.
A compreensão da minha niilidade
Aumenta à proporção que aumenta o dia
E pouco a pouco o encéfalo me invade
Numa clareza de fotografia.
Na área em que estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho de carneiros dóceis...
E o Sol arranca as minhas crenças como
Boucher de Perthes arrancava fósseis.
Observo então a condição tristonha
Da Humanidade, ébria de fumo e de ópio,
Tal qual ela é, e não tal qual a sonha
E a vê o Sábio pelo telescópio.
O Sábio vê em proporções enormes
Aquilo que é composto de pequenas
Partes, construindo corpos quase informes
Daquilo que é uma parcela apenas.
Da observação nos elevados montes
Prefiro, à nitidez real dos aspectos,
Ver mastodontes onde há mastodontes
E insetos ver onde há somente insetos.
A inanidade da Ilusão demonstro
Mas, demonstrando-a, sinto um violento
Rancor da Vida – este maldito monstro
Que no meu próprio estômago alimento!
Nisto a alma o ofício da Paixão entoa
E vai cair, heroicamente, na água
Da misteriosíssima lagoa
Que a língua humana denomina Mágoa!
Dos meus sonhos o exército desfila
E, à frente dele, eu vou cantando a nênia
Do Amor que eu tive e que se fez argila,
Como Tirteu na guerra de Messênia!
Transponho assim toda a sombria escarpa
Sinistro como quem medita um crime...
E quando a Dor me dói, tanjo minha harpa
E a harpa saudosa a minha Dor exprime!
Estes versos de amor que agora findo
Foram sentidos na solidão de uma horta,
À sombra dum verdoengo tamarindo
Que representa minha infância morta!
Pau d’Arco – 1905.
Augusto dos Anjos veio da Paraíba para o Rio de
Janeiro em 1910. Com 26 anos, recém-casado,
pensava conseguir na capital do Brasil um meio de subsistência compatível com a cultura e o talento que possuía. Não teve êxito e sua desilusão seria ainda maior: não encontrou nem mesmo quem lhe apreciasse o estro. Para publicar aquele que viria a ser o seu único livro, precisou valer-se do auxílio financeiro do irmão.
A crítica contemporânea o ignorou e, se alguma exceção se abriu, foi para reputá-lo autor de versos estapafúrdios e aberrantes. De certo modo, o repúdio ao seu engenho poético e as penas da vida familiar confirmavam a voz pessimista do poeta, que cantava (e com que musicalidade!) a onipresença da dor e a excludente destinação do homem à morte, aos vermes e ao pó.
Conta Francisco de Assis Barbosa que, em novembro de 1914, Orris Soares e Heitor Lima encontraram-se com Olavo Bilac e o informaram do prematuro falecimento de Augusto. “E quem é esse Augusto?”, perguntou Bilac. Um grande poeta, responderam-lhe, e Heitor Lima recitou o soneto Versos a um coveiro. Bilac sorriu superiormente e comentou: “Fez bem em morrer, não se perde grande coisa”.
Bilac não viveu o bastante para perceber que se enganara. Os anos da guerra modificavam o gosto dos leitores e a literatura excedia o frívolo tropo de “sorriso da sociedade”. Da terceira edição de Eu, em 1928, venderam-se 5.500 exemplares em dois meses, os primeiros 3.000 em apenas quinze dias. Era o começo da longa e acidentada via do reconhecimento público, que faria de Augusto o que ele é hoje, um dos mais admirados poetas brasileiros e, por certo, o mais original.
Texto de acordo com a nova ortografia.
Capa: Ivan G. Pinheiro Machado sobre óleo sobre tela de Francis Bacon
Revisão: Delza Menin, Renato Deitos e Lolita Beretta
A599e
Anjos, Augusto dos, 1884-1914.
Eu e outras poesias / Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos. – Porto Alegre: L&PM, 2013.
(Coleção L&PM POCKET; v. 148)
ISBN 978.85.254.2834-9
1.Ficção brasileira-poesias. 2. Anjos, Augusto de Carvalho Rodrigues dos, 1884-1914. I.Título. II.Série.
CDD 869.91
CDU 869.0(81)-1
Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329.
© desta edição, L&PM Editores, 1998
Todos os direitos desta edição reservados a L&PM Editores
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