Frankenstein ou O Prometeu moderno: edição comentada

selo2016

Mary Shelley

FRANKENSTEIN

OU O PROMETEU MODERNO

EDIÇÃO COMENTADA

Tradução, apresentação e notas:

Santiago Nazarian

Tradução dos anexos:

Bruno Gambarotto

Zahar

SUMÁRIO

Apresentação:
“It’s alive! It’s alive!”, por Santiago Nazarian

FRANKENSTEIN
OU O PROMETEU MODERNO

ANEXOS

Prefácio à primeira edição (1818),
por Percy Bysshe Shelley

Introdução à edição standard (1831),
por Mary Shelley

Cronologia: vida e obra de Mary Shelley

Apresentação

“IT’S ALIVE! IT’S ALIVE!”

“Está vivo!” Esta talvez seja a mais célebre frase de Frankenstein, quando o cientista louco, em meio a raios e trovões de uma noite de tempestade, consegue em seu laboratório gerar a vida. Por meio da eletricidade, a criatura move um braço, e então o dr. Frankenstein exclama alucinadamente para seu assistente corcunda: “Está vivo! Está vivo!”

É uma cena clássica que muitos associam ao romance de Mary Shelley, porém ao ler o livro pela primeira vez poderão se surpreender: nem a frase, nem o uso dos raios, nem o assistente corcunda estão presentes no texto original. Frankenstein é um caso típico de romance que ganhou vida e mitologia próprias.

O cientista como um velho louco e maldoso, o assistente corcunda chamado Igor, o monstro de cabeça chata, pele verde recosturada e parafusos no pescoço, de andar lento e mente primitiva: hoje, muito do que sabemos da história vem mais de recriações e representações cinematográficas que do texto literário. O monstro seria totalmente inocente? Foi criado com o cérebro de um criminoso? Havia também uma criatura feminina, a noiva de Frankenstein? Eu mesmo, ao iniciar a releitura (tinha lido Frankenstein na adolescência, há mais de vinte anos), fui derrubando lembranças infundadas que me foram incutidas por adaptações da obra – criando remendos de origem incerta, tão órfãos como a criatura dessa história.

Como se poderá constatar na leitura desta tradução, o cientista Victor Frankenstein é na verdade um jovem estudante de origem nobre, e há diversas alusões à sua beleza física, provavelmente derivadas do modelo que a autora usou para criá-lo: seu amado marido, o poeta romântico e filósofo Percy Bysshe Shelley. Victor trabalha sozinho, sem assistente, em segredo (o mais perto que temos da figura de Igor é seu amigo Henry Clerval, que nada tem de corcunda e nem mesmo toma conhecimento dos experimentos do jovem cientista), num quarto de estudante (não num castelo medieval, como retratado em muitas adaptações); e assim como não há indicações precisas sobre os métodos que trouxeram a criatura à vida – fato justificado no texto pela apreensão do cientista de que a experiência seja reproduzida –, Mary Shelley também não descreve em detalhes a criatura, deixando os horrores à imaginação do leitor. O que recebemos é isso:

A pele amarela mal encobria a atividade dos músculos e das artérias; o cabelo era comprido e de um preto lustroso; os dentes, de um branco perolado; mas esses luxos só formavam um contraste mais horrendo com os olhos aguados, que pareciam quase da mesma cor dos buracos acinzentados nos quais estavam cravados, e com a compleição enrugada e lábios pretos retos.

A criatura tampouco é batizada. Ao longo do texto é chamada por todo tipo de impropério: “monstro”, “demônio”, “desgraçado”, “miserável”, “abominação”. Assim, não deixa de ser irônico e ao mesmo tempo providencial que o sobrenome de seu criador seja hoje sinônimo da criatura. Mais que isso, “Frankenstein” (ou, na pronúncia abrasileirada popular, “Franquisteim”) representa hoje mais do que um único personagem, tendo se tornado uma espécie de monstro tão identificável como um zumbi, um vampiro, ou “um êemen”. Chegou mesmo a adjetivo, sinônimo de uma criação remendada e malsucedida.

Mítica também é a origem do romance – que teria sido fruto de uma competição de histórias de terror entre autores célebres como o poeta romântico inglês Lord Byron (1788-1824), o já mencionado Percy Shelley (1792-1822) e sua esposa, Mary. De fato, essa é uma lenda com fundamento, com origem no verão de 1816, enquanto Mary, então prestes a completar dezenove anos, passava férias com o marido em Genebra, Suíça.

Nascida em 30 de agosto de 1797, em Londres, na Inglaterra, Mary Wollstonecraft Godwin é filha de William Godwin e Mary Wollstonecraft. Seu pai, um filósofo e escritor ateu, havia se tornado célebre por suas posições radicais contra o governo. Sua obra Enquiry Concerning Political Justice (Inquérito acerca da justiça política), publicado em 1793, propagava ideias anarquistas, colocando as instituições políticas como uma força corruptora da sociedade. A mãe de Mary era uma feminista pioneira, autora conhecida de A Vindication of the Rights of the Woman (Uma defesa dos direitos da mulher, 1792). Os dois se conheceram num círculo de amigos intelectuais e, apesar de criticarem publicamente a instituição do casamento, se uniram em março de 1797, já com uma gravidez avançada. O casamento durou pouco; cinco meses após a união e dez dias após dar à luz Mary, sua mãe faleceu devido a uma infecção contraída no parto. William Godwin se casou novamente quando Mary tinha quatro anos. A madrasta, Mary Jane Clairmont, lhe trouxe dois irmãos agregados: Charles (de sete anos) e Jane (da mesma idade de Mary), que se tornou uma grande amiga e companheira pela vida.

Aos dezesseis anos, Mary começou um relacionamento com o futuro marido. Como muitos autores e intelectuais da época, Percy frequentava a casa de Godwin, que também possuía uma pequena editora. Encantado com a adolescente, Percy abandonou sua primeira esposa, grávida do segundo filho, para ficar com Mary, o que inicialmente enfureceu seu antigo mentor. Em 28 de julho de 1814, os dois fugiram da Inglaterra para o continente com a irmã por afinidade de Mary, que a essa altura adotara o nome artístico de Claire (a partir de Clairmont, seu sobrenome). Harriet, a primeira esposa de Shelley, viria a se suicidar, afogando-se, em 1816, grávida de um amante desconhecido. Percy Shelley morreu pouco antes de completar trinta anos, afogado num acidente de barco, em 1822.

Os dramas do parto, que acompanharam Mary desde o nascimento, com a morte de sua mãe, se seguiram em seu casamento com Shelley. Três de seus quatro filhos tiveram mortes precoces, ainda na infância – o primeiro ainda em 1815, quando Mary tinha dezessete anos –, o que talvez explique a relação conflituosa de paternidade em Frankenstein. Seu único filho que chegou à idade adulta foi Percy Florence Shelley (1819-89).

Filha de escritores, Mary sempre foi estimulada por seu marido a seguir a carreira. E seus círculos de amizade no meio literário favoreceram isso. Antes de Frankenstein, em 1817 Mary já havia publicado History of a Six Weeks Tour (História de uma turnê de seis semanas), em coautoria com Percy. O livro traz um relato turístico da viagem feita por eles em companhia de Claire por parte da França, Suíça, Alemanha e Holanda, com cartas narrando a navegação pelo lago de Genebra e as geleiras de Chamouni. Não foi um sucesso de vendas, mas teve boas críticas e muito de seu estilo romântico de descrição de paisagens foi aproveitado nas viagens do célebre romance que Mary escreveria em seguida.

A criação de Frankenstein, em 1816, se deu em Campagne Chapuis, um chalé em Genebra, próximo de onde Lord Byron havia se estabelecido após deixar a Inglaterra.