Fugindo do clima melancólico de Londres, Mary, Percy e Claire se depararam com um verão suíço atipicamente chuvoso, o que os confinou por dias dentro de casa. Na companhia de Byron, com quem Claire se relacionava na época, e do médico John William Polidori, os amigos liam “histórias de fantasmas”, quando Byron sugeriu o desafio de cada um escrever um conto no gênero. Os homens seguiram entusiasmados com a tarefa, porém as mulheres não se sentiram tão inspiradas. Mary relata que inicialmente nada vinha à sua mente, ela não se via como ficcionista: “Sentia a vazia incapacidade da invenção, que é a maior miséria da autoria”, descreveu ela. Até que, certa noite, uma conversa entre Percy e Byron – “da qual eu era ouvinte devota, mas quase silenciosa” – sobre “a natureza do princípio da vida” instigou sua imaginação.
Talvez o círculo intelectual a que Mary pertencia a tornasse mais propensa ao interesse pelas especulações científicas do que pelo caráter sobrenatural e fantástico das “histórias de fantasmas”. Hoje não são raras as análises que consideram Frankenstein mais uma obra de ficção científica gótica do que puramente de horror. De fato não há uma base sobrenatural fantástica no romance. Toda a argumentação da história se dá através da razão científica e filosófica; o despertar da criatura é justificado cientificamente, e sua inteligência e capacidade de comunicação se dão pelo aprendizado e leitura de obras clássicas.
Com essas ideias em mente, Mary foi dormir naquela noite gestando as primeiras imagens do cientista que gera uma criatura monstruosa. “Foi numa lúgubre noite de novembro que contemplei a conquista de meus pesados trabalhos” é a frase com que ela iniciou seu romance, em junho de 1816 (e que na versão definitiva se encontra no capítulo 5).1 A história de Mary, que fascinou seus amigos naquelas férias, foi transformada num romance por encorajamento de seu marido. Em poucos meses, em maio de 1817, aos dezenove anos, Mary Shelley terminou Frankenstein ou O Prometeu moderno, que foi publicado anonimamente menos de um ano depois, em janeiro de 1818.
As primeiras críticas foram em sua maioria negativas, pelo absurdo da trama e a identidade obscura do autor. O Quarterly Review, importante periódico de literatura e política da época, publicou no número de março:
O romance não incute uma lição de conduta, modos ou moralidade … fatiga os sentimentos sem interessar a compreensão; molesta gratuitamente o coração e apenas acrescenta uma sensação dolorosa… o leitor é deixado numa luta entre risada e pavor, em dúvida se é a mente ou o coração do autor que é mais doentio.
Ainda assim, o sucesso de público foi quase imediato. Em 1821 saía a primeira edição traduzida para o francês e em 1823 estreava a primeira adaptação para o teatro. Mesmo que ainda hoje possam se apresentar ressalvas ao romance, sua longevidade e o caráter atemporal de seus conceitos são uma prova de sua força. Frankenstein é sem dúvida um dos romances de horror mais famosos e influentes da história, rivalizado apenas por Drácula, de Bram Stoker (publicado quase oitenta anos depois, em 1897).
A primeira versão para o cinema foi feita nos Estados Unidos, em 1910, um curta-metragem mudo de dezesseis minutos, dirigido por J. Searle Dawley.2 Curiosamente, nessa versão, a criatura (interpretada por Charles Ogle) é trazida à vida por uma mistura química de um caldeirão, um esqueleto que vai ganhando carne, num efeito bastante impressionante para a época. Ela aqui ostenta uma vasta cabeleira desgrenhada, mas já possui a cabeça chata que se tornaria marca registrada do personagem. O desfecho do curta é bastante simbólico: a criatura é vencida ao se contemplar no espelho, seu reflexo então se torna o de seu criador, Victor, com o monstro se revelando uma alucinação ou um aspecto doentio de sua própria personalidade – remetendo aí a outro clássico da literatura de horror: O médico e o monstro, do escocês Robert Louis Stevenson (publicado em 1886).
Desde então inúmeras adaptações foram feitas – incluindo seriados de TV, desenhos animados, peças de teatro, quadrinhos e videogames –, porém a versão cinematográfica da Universal, de 1931, dirigida por James Whale, permanece como a mais célebre. Ainda que pouco fiel ao romance, o filme consagrou a imagem pela qual se reconhece Frankenstein até hoje, criada pelo maquiador grego Jack Pierce, responsável por outras caracterizações célebres do cinema de terror na época, como o Drácula interpretado por Bela Lugosi (também num filme da Universal, de 1931). O inglês Boris Karloff, que interpretou a criatura de Frankenstein, reprisou o papel diversas vezes em continuações e paródias e tornou-se um dos atores mais famosos do gênero de horror. A Universal aproveitou a história como uma franquia, lançando A noiva de Frankenstein (1935), também dirigido por Whale, e O filho de Frankenstein (1939), dirigido por Rowland V. Lee, ambos com Karloff como monstro. Isso ajudou a sedimentar o visual que o estúdio criou para a criatura como a representação “oficial” (ou ao menos a mais conhecida). Mesmo versões de grande orçamento, como Frankenstein de Mary Shelley, de 1994, dirigida por Kenneth Branagh (na esteira do sucesso de Drácula de Bram Stoker, dirigida por Francis Ford Coppola em 1992), com Robert de Niro no papel da criatura, não conseguiram estabelecer outra imagem para o personagem na cultura popular: se não tem a aparência do monstro de Karloff, não parece ser “o verdadeiro Frankenstein”. (A primeira tradução do romance que eu li, nos anos 1990, inclusive, publicada pela Ediouro, trazia na capa um desenho reproduzindo a aparência clássica do monstro da Universal.)
Mary Shelley nunca escreveu uma continuação para sua história, nem mesmo se aventurou novamente na literatura de horror. Seu segundo romance, Mathilda, escrito entre 1819 e 1820, narra uma relação incestuosa entre pai e filha, escrita no auge da depressão de Shelley pela morte prematura de seus filhos. Ela, no entanto, realizou diversas alterações em Frankenstein ao longo de sua carreira. Além da primeira edição anônima em três volumes, de 1818, foi publicada uma segunda em dois volumes, em 1823, já trazendo o nome da autora. A terceira edição, de volume único, foi publicada em 1831. A tradução aqui presente foi baseada nessa edição, considerada a definitiva pela autora, contendo todas as suas revisões finais, mas mantendo a divisão dos três volumes originais.
Uma das principais modificações feitas por Mary Shelley entre a primeira e essa última versão diz respeito à identidade de Elizabeth, originalmente uma prima do cientista Victor, adotada pela família Frankenstein após a morte da mãe. Na versão definitiva, tal parentesco foi alterado para afastar conotações incestuosas, embora ela continue a ser chamada de “prima”, como um tratamento carinhoso.
1 comment