Uma ou duas ventanias rigorosas e um princípio de vazamento são acidentes que navegantes experientes mal se lembram de registrar; e devo ficar bem satisfeito se nada de pior acontecer durante nossa viagem.

Adieu, minha querida Margaret. Assegure-se de que, para meu próprio bem, assim como o seu, não vou procurar impulsivamente o perigo. Serei frio, perseverante e prudente.

Mas o sucesso deve coroar meus esforços. Como não? Assim, longe eu fui, traçando um rastro seguro sobre mares não delineados: as próprias estrelas em si como testemunhas e provas de meu triunfo. Por que não proceder sobre o indomado ainda que obediente elemento? O que pode deter o coração determinado e a vontade decidida do homem?

Meu coração inchado involuntariamente assim se derrama. Mas devo encerrar. Que o céu abençoe minha amada irmã!

R.W.

CARTA IV

Para a sra. Saville, Inglaterra

5 de agosto de 17–

Um acidente tão estranho aconteceu conosco que não posso me abster de registrá-lo, apesar de ser muito provável que você me veja antes que esses papéis tenham chegado às suas mãos.

Segunda-feira passada (31 de julho) estávamos cercados por gelo, que bloqueava o navio por todos os lados, deixando pouco mais que o espaço de mar no qual ele flutuava. Nossa situação era um tanto perigosa, especialmente por estarmos envolvidos por uma neblina muito densa. Assim, ancoramos, esperando que alguma mudança acontecesse na atmosfera e no clima.

Por volta das duas horas, a neblina se dissipou e contemplamos, estendidas em todas as direções, vastas e irregulares planícies de gelo que pareciam não ter fim. Alguns dos meus camaradas resmungaram, e minha mente começou a ficar alerta com pensamentos ansiosos, quando uma estranha visão de repente atraiu nossa atenção e nos afastou da preocupação com nossa situação. Notamos uma charrete baixa fixada num trenó e puxada por cães, passando em direção ao norte, a pouco menos de um quilômetro de distância; sentado no trenó, guiando os cães, vinha um ser que tinha a forma de um homem, mas aparentemente de estatura gigante. Observamos o rápido progresso do viajante com nossos telescópios até ele desaparecer entre as longínquas irregularidades do gelo.

Essa visão nos provocou um espanto absoluto. Estávamos, como acreditávamos, a muitas centenas de quilômetros de qualquer terra; mas essa aparição parecia denotar que, na realidade, não havíamos chegado tão longe quanto supúnhamos. Trancados porém pelo gelo, era impossível seguir seu rastro, o qual observamos com a maior atenção.

Cerca de duas horas após a ocorrência, ouvimos o mar estalando; e antes de chegar a noite o gelo partiu-se e liberou nosso navio. No entanto, ficamos ancorados até a manhã, temendo encontrar no escuro aquelas grandes massas soltas que flutuam nas águas depois que o gelo se quebra. Aproveitei o tempo para descansar algumas horas.

Porém, de manhã, logo que clareou, fui ao convés e encontrei todos os marinheiros ocupados de um lado da embarcação, aparentemente conversando com alguém no mar. Era de fato um trenó, como o que havíamos visto antes, que havia vagado na nossa direção durante a noite num grande fragmento de gelo. Apenas um dos cães permanecia vivo; mas havia também um ser humano, que os marinheiros persuadiam a entrar na embarcação. Ele não parecia, como o outro viajante, um habitante selvagem de alguma ilha não descoberta, mas um europeu. Quando cheguei ao convés, o mestre disse:

– Este é o nosso capitão, e ele não vai permitir que você pereça em mar aberto.

Ao me notar, o estranho se dirigiu a mim em inglês, mas com um sotaque estrangeiro.

– Antes de eu entrar em sua embarcação – disse –, você teria a bondade de me informar para onde se dirigem?

Você pode imaginar meu espanto ao ouvir tal pergunta de um homem à beira da morte, para quem eu deveria supor que minha embarcação teria sido um recurso que ele não trocaria pelo mais precioso tesouro que a terra pudesse oferecer. Porém respondi que estávamos numa viagem de descobrimento em direção ao polo norte.

Ao ouvir isso, ele pareceu satisfeito e consentiu em vir a bordo. Bom Deus! Margaret, se você tivesse visto o homem que assim capitulou por sua segurança, sua surpresa teria sido irrefreável. Seus membros estavam quase congelados e seu corpo, horrendamente emaciado por fadiga e sofrimento. Nunca vi um homem numa condição tão arrasada. Tentamos carregá-lo para a cabine; mas logo que abandonou o ar fresco ele desmaiou. Consequentemente, nós o trouxemos de volta para o convés e o reanimamos esfregando-o com conhaque e forçando-o a engolir uma pequena quantidade. Logo que mostrou sinais de vida, nós o envolvemos em cobertores e o colocamos perto da chaminé do forno da cozinha. Lentamente ele se recuperou e tomou um pouco de sopa, que o restaurou maravilhosamente.

Dois dias se passaram dessa maneira, até ele ser capaz de falar; e frequentemente temi que seus sofrimentos o tivessem privado da razão. Quando, em certa medida, ele se recuperou, eu o removi para minha própria cabine e cuidei dele tanto quanto meu dever permitia.