A aparição de Magwitch no cemitério coincide com sua primeira impressão da “identidade das coisas” (p. 34). Pip sente esse mal-estar desde que começa a ter sentimentos. Mas até mesmo essa primeira impressão é, sob certos aspectos, uma segunda impressão. Ela assinala o momento não em que ele “descobre”, e sim em que ele descobre “com certeza” (o grifo é meu) que o charco era o charco, o rio era o rio, e assim por diante. Magwitch não é exatamente uma coisa nova, e sim uma coisa arrancada de uma paisagem que Pip habita desde que nasceu. “Um homem que havia afundado na água, e chafurdado na lama, e torcido o pé nas pedras, e se cortado nas pederneiras, e se espetado nas urtigas, e se rasgado nas urzes; que mancava, e estremecia, e rosnava; e que me olhava com olhar feroz, estalejando os dentes enquanto me agarrava pelo queixo” (p. 34). Magwitch é uma atmosfera, uma condição, não um dilema moral. Ele logo volta para o lugar de onde veio. Junto ao rio há um patíbulo, do qual pendem algumas correntes às quais outrora um pirata foi preso. Após esse primeiro encontro, Pip vê Magwitch ir embora “mancando em direção a esse patíbulo, como se fosse o pirata redivivo, que dele tendo descido agora voltava, para lá se pendurar outra vez” (p. 38).

No capítulo 2, conhecemos a irmã de Pip, a sra. Joe Gargery, a qual, tendo-o criado “com a mão”, não precisa que ninguém a convença de que ele é um criminoso nato. Para ela, já é muito difícil ser esposa de um ferreiro (“e de um Gargery inda por cima”), quanto mais ser uma mãe para Pip (p. 41). O ressentimento constante da sra. Joe já convenceu Pip há muito tempo de que ele sempre foi um criminoso. A culpa redespertada de modo intenso pelo surgimento de Magwitch é um sentimento que lhe é bem familiar. Assim, ele volta ao charco com uma consciência duplamente “oprimida” no capítulo 3. A criminalidade, representada pelo forçado, é e sempre foi uma condição física, de imundície e fome, que a qualquer momento pode envolvê-lo, mas que pode também ser anulada por um ato de bondade.

 

Alguma coisa estalou em sua garganta, como se ele tivesse dentro dele um mecanismo como o de um relógio, que estivesse prestes a dar a hora. E ele passou a manga rude e rasgada nos olhos.

Apiedando-me de seu desamparo, e vendo-o atacar aos poucos o pastelão, criei coragem de dizer: “Que bom que o senhor gostou”.

“Falaste?”

“Eu disse que bom que o senhor gostou.”

“Obrigado, meu menino. Gostei, sim.” (p. 53.)

 

Por um momento, tem-se a impressão de que Dickens vai se tornar conivente — com a ênfase um pouco excessiva de “manga rude e rasgada” — com a autocomiseração avassaladora de Magwtich, com a irmanação sentimental na culpa. Mas a firmeza admirável de “atacar” — uma versão abrutalhada da refeição a que assistimos no capítulo seguinte na casa dos Gargery — possibilita a clareza moral da conversa que se segue: só muitos anos depois Pip vai conseguir manifestar gratidão de maneira tão espontânea. Esse intervalo de clareza, porém, serve apenas para reforçar a desolação geral. Desde o início, a nódoa da prisão e a do crime grudam em Pip, como a lama e a umidade do charco. Antes de surgirem suas grandes esperanças, a expectativa de Pip é que lhe vão mostrar que ele já cometeu algum crime. Trata-se de uma expectativa voltada para o passado, sobre a volta do passado no futuro, o retorno do reprimido. Muitas razões já foram propostas para esse sentimento de culpa desproporcional, entre elas o egoísmo e a masturbação.5 Mas é necessário que haja sempre um motivo para a culpa? Dickens, imagino, estava mais interessado na insistência da culpa do que na sua etiologia.

Grandes esperanças, ao que parece, é uma história de revisão cognitiva — Pip descobre que seu benfeitor é Magwitch e não a sra.