Havisham — o que leva a uma revisão moral: “Eu via nele apenas um homem que fora muito melhor do que eu fora para com Joe” (p. 606). Mas os termos em que se dá essa revisão cognitiva fazem com que sua eficácia seja muito duvidosa. A tarefa a ser enfrentada por Pip é a de substituir uma fada madrinha por um forçado que fugiu do degredo; ou, como observa Michal Peled Ginsburg, substituir o mundo do desejo pelo mundo da culpa. O capítulo 8, que relata a primeira ida de Pip à Casa Satis, enfatiza de modo brutal a diferença entre esses dois mundos. Diz Ginsburg: “Se o encontro com Magwitch repete uma sensação de culpa tão velha quanto a vida e a própria consciência, o encontro com Estella e a sra. Havisham é o nascimento de um novo conceito de eu: ele marca a primeira percepção do eu como deficiente, como definido pela falta, e portanto sujeito ao desejo”.6 Pip toma consciência, pela primeira vez, de que suas mãos são grosseiras e suas botas são pesadas. O anseio criado nesse momento dirige-se tanto a Estella quanto ao status social. É porque ele vivencia um novo sentimento na Casa Satis, e não a repetição de um sentimento antigo, que Pip identifica suas grandes esperanças com a sra. Havisham e Estella. “Foi para mim um dia memorável, pois ocasionou grandes mudanças em mim” (p. 121), ele relembra. A cena no volume ii, capítulo 11, em que o empregado de Trabb debocha cruelmente das roupas novas e dos novos ares de Pip, capta perfeitamente a sensação de estranheza do eu, criada pelo desejo.

 

Não tenho palavras para exprimir a indignação e a mortificação que o empregado de Trabb me proporcionou quando, passando a meu lado, ele levantou o colarinho da camisa, retorceu os cabelos, pôs uma mão na cintura e, com um sorriso afetadíssimo, sacudindo os cotovelos e o corpo, rosnou para seus acompanhantes: ‘Não conheço ’ocês, não conheço ’ocês, juro por Deus que não conheço ’ocês!’ (p. 344.)

 

Como G. K. Chesterton observou, George Eliot ou Thackeray saberiam descrever tão bem quanto Dickens a humilhação de Pip, mas não o “vigor” do empregado de Trabb, o tom de vingança irreprimível e necessária.7

A culpa, porém, insiste. Cada encontro com um objeto cintilante de desejo é precedido por uma manifestação de criminalidade. Jaggers vem anunciar as grandes esperanças, no volume i, capítulo 18, logo após uma conversa sobre um assassinato na taberna Três Barqueiros Alegres. Quando vai visitar a sra. Havisham e Estella, no volume ii, capítulo 9, Pip se vê na diligência sentado entre dois presidiários. Enquanto espera Estella, no capítulo 14, Pip faz uma visita a Newgate, onde fica a meditar sobre a “nódoa de prisão e crime” que tudo engloba. Os dois mundos se cruzam. A narrativa constantemente aponta para — e desse modo, talvez, qualifica — a substituição da sra. Havisham por Magwitch. Pip aprende a amar Magwitch. Aprende também que no encalço do desejo vem sempre a culpa; no do que gostaríamos de ser, aquilo que não podemos deixar de ser.

O primeiro gesto de gratidão de Magwitch é enviar a Pip certa quantia através de um forçado que já ganhou a liberdade: “duas notas gordas e suadas, que pareciam ter gozado da maior intimidade com todos os mercados de gado do condado” (p. 129). Depois que Magwitch volta da Austrália, Pip, ainda supondo que a fonte de sua fortuna seja a sra. Havisham, tenta devolver-lhe o dinheiro.

 

Ele ficou a olhar-me quando pus a carteira sobre a mesa e abri-a, e ficou a olhar-me enquanto eu separava as duas notas de uma libra. Eram limpas e novas, e eu desdobrei-as e entreguei-as a ele.