Úrsula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma página de catecismo; mas o ato final bem podia ser a reparação de leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Úrsula.
Para ela, o principal era a entrada de uma pessoa estranha na família.
A impressão de Estácio foi muito outra. Ele percebera a má vontade com que a tia recebera a notícia do reconhecimento de Helena, e não podia negar a si mesmo que semelhante fato criava para a família uma nova situação. Contudo, qualquer que ela fosse, uma vez que seu pai assim o ordenava, levado por sentimentos de eqüidade ou impulsos da natureza, ele a aceitava tal qual, sem pesar nem reserva. A questão pecuniária pesou menos que tudo no espírito do moço; não pesou nada. A ocasião era dolorosa demais para dar entrada a considerações de ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estácio não lhe permitia inspirar-se delas. Quanto à camada social a que pertencia a mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo de que eles saberiam levantar a filha até à classe a que ela ia subir.
Edições Costa Flosi
Helena,
10
de Machado de Assis
No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do conselheiro, ocorreu a Estácio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. Provavelmente era aquele o ponto a que aludira o médico. Interrogado acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o filho do conselheiro:
— Aconteceu o que eu previa, um erro, disse ele. Não houve lacuna, mas excesso. O
reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, muito bonito, mas pouco prático. Um legado era suficiente; nada mais. A estrita justiça...
— A estrita justiça é a vontade de meu pai, redargüiu Estácio.
— Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sê-lo à custa de direitos alheios.
— Os meus? Não os alego.
— Se os alegasse seria pouco digno da memória dele. O que está feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa família e afetos de família. Persuado-me de que ela saberá corresponder-lhes com verdadeira dedicação...
— Conhece-a? inquiriu Estácio, cravando no médico uns olhos impacientes de curiosidade.
— Vi-a três ou quatro vezes, disse este no fim de alguns segundos; mas era então muito criança. Seu pai falava-me dela como de pessoa extremamente afetuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem olhos de pai.
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