Estácio desejara ainda saber alguma coisa acerca da mãe de Helena, mas repugnou-lhe entrar em novas indagações, e tentou encarreirar a conversa para outro assunto. Camargo, entretanto, insistiu:

— O conselheiro falou-me algumas vezes no projeto de reconhecer Helena; procurei dissuadi-lo, mas sabe como era teimoso, acrescendo neste caso o natural impulso de amor paterno. O nosso ponto de vista era diferente. Não me tenho por homem mau; contudo, entendo que a sensibilidade não pode usurpar o que pertence à razão.

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Camargo proferiu estas palavras no tom seco e sentencioso que tão natural e sem esforço lhe saía. A velha amizade dele e do finado era sabida de todos; a intenção com que falava podia ser hostil à família? Estácio refletiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir ao médico, curta reflexão que por nenhum modo lhe abalou a opinião já assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espírito que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.

— Não quero saber, disse ele, se há excesso na disposição testamentária de meu pai.

Se o há, é legítimo, justificável pelo menos; ele sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro.

Receberei essa irmã, como se fora criada comigo. Minha mãe faria com certeza a mesma coisa.

Camargo não insistiu. Sobre ser esforço baldado dissuadir o moço daqueles sentimentos, que aproveitava já agora discutir e condenar teoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executá-la lealmente, sem hesitação nem pesar. Isso mesmo declarou ele a Estácio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem constrangimento, mas sem fervor.

Estácio ficara satisfeito consigo mesmo. Seu caráter vinha mais diretamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a única paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe acharemos nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era antes resultado do costume que da consistência dos afetos. A vida correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou ocasião de experimentar a própria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha mediana.

A mãe de Estácio era diferente; possuíra em alto grau a paixão, a ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus toques de orgulho, daquele orgulho que é apenas irradiação da consciência. Vinculada a um homem que, sem embargo do afeto que lhe tinha, despendia o coração em amores adventícios e passageiros, teve a força de vontade necessária para dominar a paixão e encerrar em si mesma todo o ressentimento. As mulheres que são apenas mulheres, choram, arrufam-se ou resignam-se; as que têm alguma coisa mais do que a debilidade feminina, lutam ou recolhem-se à dignidade do silêncio. Aquela padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe permitia outra coisa mais do que um Edições Costa Flosi

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procedimento altivo e calado. Ao mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial de sua organização, concentrou-a toda naquele único filho, em quem parecia adivinhar o herdeiro de suas robustas qualidades.

Estácio recebera efetivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não sendo grande talento, deveu à vontade e à paixão do saber a figura notável que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se à ciência com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indiferente ao ruído exterior.