Educado à maneira antiga e com severidade e recato, passou da adolescência à juventude sem conhecer as corrupções de espírito nem as influências deletérias da ociosidade; viveu a vida de família, na idade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em coisas ínfimas a virgindade das primeiras sensações. Daí veio que, aos dezoito anos, conservava ele tal ou qual timidez infantil, que só tarde perdeu de todo. Mas, se perdeu a timidez, ficara-lhe certa gravidade não incompatível com os verdes anos e muito própria de organizações como a dele. Na política seria talvez meio caminho andado para subir aos cargos públicos; na sociedade, fazia que lhe tivessem respeito, o que o levantava a seus próprios olhos. Convém dizer que não era essa gravidade aquela coisa enfadonha, pesada e chata, que os moralistas asseveram ser quase sempre um sintoma de espírito chocho; era uma gravidade jovial e familiar, igualmente distante da frivolidade e do tédio, uma compostura do corpo e do espírito, temperada pelo viço dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e reto adornado de folhagens e flores. Juntava às outras qualidades morais uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sóbria e forte; áspero consigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.

Tal era o filho do conselheiro; e se alguma coisa há ainda que acrescentar, é que ele não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a idade e a classe em que nascera. Elegante e polido, obedecia à lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes dela. Ninguém entrava mais corretamente numa sala; ninguém saía mais oportunamente.

Ignorava a ciência das nugas, mas conhecia o segredo de tecer um cumprimento.

Na situação criada pela cláusula testamentária do conselheiro, Estácio aceitou a causa da irmã, a quem já via, sem a conhecer, com olhos diferentes dos de Camargo e D. Úrsula.

Esta comunicou ao sobrinho todas as impressões que lhe deixara o ato do irmão. Estácio Edições Costa Flosi

Helena,

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de Machado de Assis

procurou dissipar-lhas; repetiu as reflexões opostas ao médico; mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade de um morto.

— Bem sei que não há já agora outro remédio mais que aceitar essa menina e obedecer às determinações solenes de meu irmão, disse D. Úrsula, quando Estácio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ela os meus afetos não sei que possa nem deva fazer.

— Contudo, ela é do nosso mesmo sangue.

D. Úrsula ergueu os ombros como repelindo semelhante consangüinidade. Estácio insistiu em trazê-la a mais benévolos sentimentos. Invocou, além da vontade, a retidão do espírito de seu pai, que não havia dispor uma coisa contrária à boa fama da família.

— Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que meu pai a legitimou, convém que não se ache aqui como enjeitada. Que aproveitaríamos com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da nossa vida interior. Vivamos na mesma comunhão de afetos; e vejamos em Helena uma parte da alma de meu pai, que nos fica para não desfalcar de todo o patrimônio comum.

Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estácio percebeu que não vencera os sentimentos da tia, nem era possível consegui-lo por meio de palavras. Confiou ao tempo essa tarefa. D. Úrsula ficou triste e só.