Respondeu- me que a enviaria de bom grado se conseguisse encontrar uma escola de rapazes. Parece-me que muito lhe agradaria se nos encarregássemos da educação de Nan. E se esta tarde fôssemos buscá-la?
– Mas não tens bastantes trabalhos sobre ti, minha querida Jo, para quereres sofrer as travessuras de mais um diabinho?
– Sabes, querido Fritz, que gosto imenso das criaturas rebeldes e que sinto uma grande simpatia por Annie ao lembrar-me de que fui tão travessa como ela é agora. Estou certa de que essa pequena tem grandes qualidades e que unicamente necessita de uma educação acertada para ser uma rapariguinha tão boa como Daisy. Ou muito me engano ou nesta casa transformaremos em anjo esse diabinho rebelde. Para conseguir o milagre, basta proceder como o meu pai procedeu para comigo.
– E se conseguires apenas metade do que o teu pai conseguiu, milagre – e dos grandes – terás feito.
– Está bem; se troças de mim condeno-te a tomar uma semana inteira café muito claro – disse a mamã Bhaer, dando um puxão de orelhas ao marido.
– Daisy não se assusta com os costumes um tanto selvagens de Nan? – perguntou o mestre beijando os seus filhinhos Teddy e Rob, que lhe tinham subido para os joelhos.
– Pode ser que se assuste no princípio, mas tranquilizar-se-á depois; entretém-se muito quando Nan a vem visitar e espero que hão de dar-se bem e ajudar-se mutuamente. Metade da arte de ensinar consiste, quanto a mim, em saber o que os meninos podem fazer uns pelos outros e conhecer quando é oportuno tê-los juntos.
– Espero que não seja outro elemento de discórdia nem outro archote incendiário.
– Pobre Dan! Não consigo perdoar-me o tê-lo deixado ir-se embora.
Teddy, ao ouvir pronunciar o nome do seu amigo ausente, desceu dos joelhos do pai, correu para a porta, olhou para ela um instante, e voltou suspirando e dizendo:
– O mê Danny não vem.
– Devíamos tê-lo mantido connosco, quando mais não fosse levando-lhe em conta o grande amor que mostrava para com Teddy; talvez essa amizade e a presença do pequenito tivessem conseguido o que nós não conseguimos.
– Muitas vezes pensei nisso mesmo, querida Jo, mas não era possível, pelo menos agora, manter entre os rapazes um elemento de discórdia, nem continuarmos expostos a perecermos entre os escombros da casa incendiada.
– Já está posta a mesa! Vou tocar a sineta – gritou Rob. E ato contínuo principiou a repicar com tal energia que tornou impossível continuar a conversa.
– Concordamos, pois, em que posso trazer a Annie?
– Uma dúzia de Annies, se quiseres – respondeu o papá Bhaer, sempre pronto a receber todos os meninos abandonados e travessos do mundo.
Quando naquela tarde a tia Jo regressou da sua excursão, viu-se sair do carro, brincando, uma menina de uns dez anos de idade, que entrou correndo pela casa dentro, gritando:
– Olá, Daisy! Onde estás?
Daisy apareceu satisfeita, embora tivesse ficado inquieta ao ouvir Nan dizer:
– Venho para ficar e viver contigo; o papá autorizou-me. Amanhã mandam-me o baú com as coisas, porque hoje não estava lavada nem arranjada toda a minha roupa; a tua tia foi-me lá buscar. Havemos de brincar muito, não é verdade?
– Sim, sim. Trouxeste a boneca grande? – perguntou Daisy, lembrando-se que a boneca Branca Matilde, na última visita que fizera a casa de Nan, ficara estragada por a pequena ter teimado em lavar-lhe a cara.
– Sim, trago-a, mas anda mal da cabeça. Escuta: trago-te um anel feito com crinas arrancadas do rabo do Vencedor. Queres? – exclamou oferecendo-lhe o sedoso anel, como prenda de amistosa reconciliação, pois forçoso é esclarecer que da última vez que as duas meninas se haviam visto tinham-se separado dispostas a nunca mais se falarem em toda a vida.
Reconhecida por tão maravilhosa oferta, Daisy mostrou-se mais afetuosa e convidou Nan a visitar a sua cozinha. A recém-chegada respondeu:
– De maneira nenhuma: primeiro quero ver os rapazes – disse saindo a correr e rodopiando com o chapéu até que a fita se rompeu e ele ficou caído no chão.
– Olá, Nan! – gritaram os pequenos.
A pequena colocou-se de um salto no meio deles e exclamou:
– Venho viver para cá!
– Bravo! – exclamou Tommy do alto do muro em que estava escarranchado.
– Vamos jogar à bola – propôs Nan.
– Agora, não; além disso o nosso grupo ganha todos os jogos sem o teu auxílio.
– Pois então desafio-vos todos a fazer uma corrida.
– Ela corre muito? – perguntou Nat a Jack.
– Bastante, tendo em conta que é uma menina.
– Corremos ou não? – insistiu Nan, desejosa de mostrar as suas faculdades.
– Está muito calor – advertiu Tommy.
– O que tem o "Traga-Bolos"? – perguntou Nan.
– Magoou-se numa mão ao jogar à bola; este bebé queixa-se de tudo – respondeu Jack com certo desdém.
– Eu nunca me queixo de nada – afirmou orgulhosamente Nan.
– Pois sim! Sempre gostava de ver isso! – disse "Traga-Bolos" um tanto picado. – Aposto que sou capaz de te fazer gritar antes de dois minutos.
– Ora vamos lá ver!
– És capaz de arrancar aquelas urtigas? – perguntou " Traga-Bolos".
Nan, instantaneamente, arrancou a raiz da planta e brandiu-a sem se queixar das picadas cruéis que sofria.
– Bravo! Bravo – exclamaram os rapazes, sempre prontos a apreciar a coragem ainda que no sexo fraco.
– Como tens as mãos calejadas não tem valor algum o que fizeste – disse "Traga-Bolos". – O que tu não fazes, sem chorar, é dar uma cabeçada contra a parede do celeiro.
– Não faças caso! – murmurou Nat, que era inimigo de toda a crueldade.
Sem fazer caso da advertência, Nan desatou a correr e investiu contra o muro, dando uma cabeçada que ressoou como um tiro de canhão. Tão grande foi a pancada que a pequena cambaleou e disse:
– Bem vês que me dói, mas não me queixo.
– Atreve-te a dar outra cabeçada – rugiu "Traga-Bolos", encolerizado.
Nan dispunha-se já a repetir a proeza quando Nat a conteve; Tommy atirou-se sobre "Traga-Bolos" e, sacudindo-o, disse-lhe:
– Cala-te ou parto-te a cabeça contra o muro!
– Pois então que se não faça fanfarrona.
– É uma coisa muito feia fazer mal a uma menina! – disse em ar de censura "Meio-Brooke".
– Não me venhas com sermões, meu "Diácono"; já sabemos que ralhas à tua irmã todos os dias – observou o "Almirante".
– Mas nunca lhe faço mal, não é verdade, Daisy? – perguntou "Meio-Brooke", encarando a irmã, que estava tratando das mãos a Nan e recomendando-lhe que pusesse água no "galo".
– Tu és o melhor menino do mundo e, se algumas vezes me fazes mal é sem querer.
– Bom – ordenou imperativamente Emil –, a bordo deste navio não consinto rixas nem barbaridades.
– Como estás? – perguntou o papá Bhaer a Nan à hora do jantar. – Mostra-me a tua mão direita e acalma-te um pouco. Mas porque me dás a esquerda?
– Porque a outra dói-me.
– Mostra-a cá. Que fizeste tu para que se formassem estas bolhas? Quem foi que te fez mal?
Antes que Nan pudesse desculpar-se, Daisy referiu tudo quanto ocorrera. "Traga-Bolos", durante a descrição, procurou esconder a cara por detrás da caneca do leite. Quando Daisy concluiu, o papá Bhaer, maliciosamente, disse à esposa:
– Este caso é da tua competência, cai dentro da tua jurisdição; assim, pois, abstenho-me de intervir.
Na manhã seguinte, Nan, logo que acordou, perguntou:
– Já trouxeram as minhas coisas?
Ao saber que a bagagem só chegaria mais tarde, fez uma careta de aborrecimento e, encolerizada, deu um grande açoite na boneca, com grande mágoa de Daisy.
Mal ou bem, esteve entretida até às cinco horas; depois desapareceu e, crendo-se que tinha ido com Tommy e com "Meio-Brooke", ninguém deu por falta dela até à hora de comer.
– Terá fugido de casa? – perguntou inquieta a mamã Bhaer.
– Talvez tenha ido à estação buscar a bagagem – disse Franz.
– Impossível! – observou a tia Jo. – Não sabe o caminho, nem podia vir de tão longe carregada com uma mala enorme.
– Vou certificar-me – disse o papá Bhaer, pegando no chapéu e dispondo-se a sair.
Naquele instante, Jack, que tinha assomado à janela, lançou uma exclamação de júbilo, que fez com que todos, apressadamente, viessem à porta da rua.
Pela estrada, a pouca distância, vinha Nan arrastando uma mala grande, dentro dum saco. A pequena vinha afogueadíssima, coberta de pó e ao que parecia muito cansada, mas de cabeça erguida. Resfolegando, chegou até à escada, largou a mala e, exalando um profundo suspiro de satisfação, sentou-se em cima dela, cruzou os braços e exclamou:
– Não tive paciência para esperar e fui à procura da minha bagagem.
– Mas se não sabias o caminho! – exclamou Tommy, enquanto os outros rapazes contemplavam com admiração a heroína.
– Dei com ele. Eu nunca me perco.
– Fica a mais de meia légua, como pudeste ir tão longe?
– Sabia que era muito distante, mas sentei-me a descansar.
– Pesava muito a mala?
– Devido ao tamanho não consegui trazê-la muito bem.
– Mas como é que o chefe da estação te deixou levantá-la? – perguntou Tommy.
– Não lhe disse nada; ele estava na bilheteira, fui ao cais e peguei na minha bagagem sem que ninguém desse por isso.
– Franz, vai imediatamente contar o que se passou ao senhor Dodd, porque senão o pobre velho vai julgar que o roubaram – observou o Sr. Bhaer, fazendo coro com as gargalhadas dos rapazes.
– Já te tinha dito que, se a não trouxessem, mandaríamos então buscá-la. Devias esperar, para te não meteres nalgum compromisso grave. Promete-me não fazeres travessuras outra vez ou, de contrário, não deixarei que te voltes a afastar de mim – exclamou a tia Jo, limpando o pó da carinha afogueada de Nan.
– Prometo; mas fique sabendo que o papá ensinou-me a não deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.
– Mas interpretaste mal o conselho de teu pai – disse o mestre. E acrescentou, dirigindo-se à esposa: – O melhor será que Nan coma agora e logo lhe dês uma liçãozinha.
Os rapazes estavam divertidíssimos e assim se entretiveram, durante o jantar, ouvindo a descrição das aventuras de Nan, pois um cão saíra-lhe ao caminho ladrando-lhe, um homem rira-se dela, uma mulher dera-lhe nozes e o chapéu caíra-lhe ao ribeiro quando se dispunha a beber água.
– Calculo – disse o papá Bhaer a sua esposa meia hora depois –, que para tratares de Nan e de Tommy vais estar muito ocupada.
– Certamente necessitarei de algum tempo para refrear a pequena; mas tem tão nobres sentimentos e é tão generosa que lhe quero e querer-lhe-ia ainda que fosse muito mais traquina do que é disse Jo, apontando para a pequenita, que estava a distribuir prodigamente pelos rapazes quase todos os brinquedos que a mala continha.
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