Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras vezes em caminho. Ao chegar a casa, já o preto Raimundo lhe havia preparado a mesa, — uma mesa de quatro a cinco palmos, — sobre a qual punha o jantar, parco em número, medíocre na espécie, mas farto e saboroso para um estômago sem aspirações nem saudades. Ia dali ver as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite caía. Então, sentava-se a trabalhar até às nove horas, que era a hora do chá.

Não somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas também a casa participava dela. Cada móvel, cada objeto, — ainda os ínfimos, — parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que se enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, à hora costumada; abriam-se as mesmas janelas e nunca outras. A regularidade era o estatuto comum. E se o homem amoldara as coisas a seu jeito, não admira que amoldasse também o homem. Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um preto de cinqüenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luís Garcia o herdou de seu pai, — não avultou mais o espólio, — deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu.

— És livre, disse Luís Garcia; viverás comigo até quando quiseres.

Raimundo foi dali em diante um como espírito externo de seu senhor; pensava por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas as suas ações, não menos silenciosas que pontuais. Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente. Raimundo, posto fosse o único servidor da casa, sobrava-lhe tempo, à tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a noite vinha caindo. Ali falavam de seu pequeno mundo, das raras ocorrências domésticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra circunstância exterior. Quando a noite caía de todo e a cidade abria os seus olhos de gás, recolhiam-se eles a casa, a passo lento, à ilharga um do outro.

— Raimundo hoje vai tocar, não é? dizia às vezes o preto.

— Quando quiseres, meu velho.

Raimundo acendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para o jardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de África, memórias desmaiadas da tribo em que nascera. O canto do preto não era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave pesarosa. Alegres eram, guerreiras, entusiastas; por fim calava-se. O pensamento, em vez de volver ao berço africano, galgava a janela da sala em que Luís Garcia trabalhava e pousava sobre ele como um feitiço protetor. Quaisquer que fossem as diferenças civis e naturais entre os dois, as relações domésticas os tinham feito amigos.

Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha.

Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo da semana. No sábado, à tarde, acabado o jantar, descia Raimundo até à Rua dos Arcos, a buscar a sinhá moça, que estava sendo educada em um colégio. Luís Garcia esperava por eles, sentado à porta ou encostado à janela, quando não era escondido em algum recanto da casa para fazer rir a pequena. Se a menina o não via à janela ou à porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde não era difícil dar com ele, porque os recantos eram poucos. Então caíam nos braços um do outro. Luís Garcia pegava dela e sentava-a nos joelhos.