Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapelinho, que cobria os cabelos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina; beijava-a outra vez, mas então nos cabelos e nos olhos, — os olhos, que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.

Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá. No colégio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. Esta era Iaiá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pai. Luís Garcia punha-a no chão, tornava a subi-la aos joelhos, até que consentia finalmente em separar-se dela por alguns instantes. Iaiá ia ter com o preto.

— Raimundo, o que é que você me guardou?

— Guardei uma coisa, respondia ele sorrindo. Iaiá não é capaz de adivinhar o que é.

— É uma fruta.

— Não é.

— Um passarinho?

— Não adivinhou.

— Um doce?

— Que doce é?

— Não sei; dá cá o doce.

Raimundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança guardada. Era às vezes um confeito, outras uma fruta, um inseto esquisito, um molho de flores. Iaiá festejava a lembrança do escravo, dando saltos de alegria e de agradecimento. Raimundo olhava para ela, bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos, como um jorro de água pura. Quando o presente era uma fruta ou um doce, a menina trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, a gesticular e a interromper-se de quando em quando:

— Muito bom! Raimundo é amigo de Iaiá... Viva Raimundo!

E seguia dali a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o jardim. No jardim achava o pai já sentado no banco do costume, com uma das pernas sobre a outra, e as mãos cruzadas sobre o joelho. Ia ter com ele, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atrás dos insetos. De noite, não havia trabalho para Luís Garcia; à noite, como o dia seguinte, era toda consagrada à criança. Iaiá referia ao pai as anedotas do colégio, as puerilidades que não valem mais nem menos que outras da idade madura, as intriguinhas de nada, as pirraças de coisa nenhuma. Luís Garcia escutava-a com igual atenção à que prestaria a uma grande narrativa histórica. Seu magro rosto austero perdia a frieza e a indiferença; inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as mãos da filha nas suas, considerava-se o mais venturoso dos homens. A narrativa da pequena era como costumam ser as da idade infantil: desigual e truncada, mas cheia de um colorido seu. Ele ouvia-a sem interromper; corrigia, sim, algum erro de prosódia ou alguma reflexão menos justa; fora disso, ouvia somente.

Pouco depois da madrugada todos três estavam de pé. O sol de Santa Teresa era o mesmo da Rua dos Arcos; Iaiá, porém, achava-lhe alguma coisa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro, através das persianas. Ia à janela que dava para uma parte do jardim. Via o pai bebendo a xícara de café, que aos domingos precedia o almoço. Às vezes ia ter com ele; outras vezes ele caminhava para a janela, e, com o peitoril de permeio, trocavam os ósculos da saudação. Durante o dia, Iaiá derramava pela casa todas as sobras de vida, que tinha em si. O rosto de Luís Garcia acendia-se de um reflexo de juventude, que lhe dissipava as sombras acumuladas pelo tempo. Raimundo vivia da alegria dos dois.