Promete?
Jorge prometeu tudo, com o fim de o tranqüilizar, porque Luís Garcia parecia excessivamente aflito com a idéia daquela eterna separação. O pedido afigurou-se-lhe singular; atribuiu-o à exaltação febril do doente. Soube depois que a vida de Luís Garcia dependia da primeira crise que fizesse a enfermidade, segundo havia declarado o médico.
Eram quase quatro horas quando Jorge de lá saiu. Voltou às nove e achou o médico. A crise era esperada na tarde desse dia, e só então se poderia dizer se a vida do enfermo estava perdida ou salva. Foi o que o médico lhe repetiu, à porta do jardim, aonde Jorge o foi acompanhar.
— Não obstante, concluiu o médico, ele tem outra doença que o deve matar dentro de alguns meses, um ano ou ano e meio.
— Coração?
— Justamente.
Esta notícia impressionou o moço.
— Não será ilusão da medicina? perguntou ele.
O médico abanou a cabeça, e saiu. Jorge encaminhou-se para casa, mas teria dado apenas três passos, quando viu Estela que vinha ao seu encontro. A moça parou diante dele.
— Que lhe disse o médico? perguntou.
— Tem esperanças; logo de tarde poderá afiançar mais alguma coisa.
— Só isso?
— Só.
— Não o desenganou?
— Não.
Estela refletiu um instante.
— Dê-me sua palavra, disse ela.
Jorge estendeu-lhe a mão, sobre a qual Estela deixou cair a sua, não menos fria que pálida.
— Sou amigo de seu marido, disse Jorge depois de alguns instantes; creia que ele pode contar com toda a minha dedicação.
Estela pareceu acordar do momentâneo torpor; atentou no moço, retirou a mão e respondeu com um simples gesto de assentimento. A alma subjugada tornara à natural atitude. Jorge viu-a entrar em casa e ficou só alguns minutos, a recordar a revelação do médico, e a sentir que, ao pé da tristeza que o pungia, havia alguma coisa semelhante a um sentimento egoísta e cruel.
Entre a esperança e receio gotejaram algumas horas longas, até que a crise veio e passou, sem levar consigo a vida ameaçada. Na manhã seguinte a alegria foi tamanha em redor do enfermo, que ele viu claramente o perigo e a salvação. Nem a filha nem a mulher pareciam alquebradas do trabalho e da vigília; estavam frescas, risonhas, ágeis, partindo entre si o pão da alegria, como haviam partido irmãmente o pão da angústia.
Durante a moléstia e a convalescença, Jorge visitou-os uma vez por dia; e força é dizer que, se por um instante houve em seu coração um impulso egoísta, tal impulso não se lhe repetiu depois; serviu ao doente com desinteresse e lealdade. A família deste mostrou-se agradecida. Luís Garcia recordou ao moço o pedido que lhe fizera na noite em que o mandara chamar, e recordou-lho, não só para lhe agradecer a aquiescência como para explicá-lo. Mas a explicação era difícil, porque ele cedera principalmente à aversão que lhe inspirava o sogro, em quem não tinha a mínima confiança; não obstante as meias palavras de que usou, Jorge entendeu tudo.
A freqüência trouxe a necessidade. Levado pelas circunstâncias, Jorge acostumou-se às visitas, e amiudou-as. No mês de setembro, a pretexto de calor, que ainda não fazia, transferiu a residência para a casa que tinha em Santa Teresa, e que não ficava a longa distância da de Luís Garcia. Não havia que reparar no caso; sua mãe tinha o costume de passar ali três a quatro meses no ano. Demais, nas últimas semanas ele começara a fazer-se menos visto e menos freqüentado. Podia facilmente passar a outra vida mais reclusa.
Entretanto, como essa mudança antecipada para Santa Teresa podia não ter em si mesma toda a explicação razoável, Jorge buscou enganar-se a si próprio reunindo os elementos e lançando ao papel as primeiras linhas de um trabalho, que jamais devia acabar, mas que, em todo caso, legitimava a necessidade de repouso. Nos intervalos deste é que visitava a casa de Luís Garcia, uma ou duas vezes por semana. Aos domingos, tinha sempre a jantar o Sr. Antunes, com quem jogava uma partida de bilhar. Tentou ensinar-lhe o xadrez, mas desanimou ao fim de cinco lições.
— Ah! Mas nem todos têm o seu talento! exclamou triunfalmente o pai de Estela.
Luís Garcia jogava o xadrez. Era o recreio usual entre ele e Jorge; outras vezes saíam a passeio até curta distância. Luís Garcia aceitava de boa sombra essas distrações, que não eram turbulentas nem cansativas, mas brandas e pausadas, como ele. Demais nem sempre eram distrações sem fruto. Jorge apreciava agora melhor as conversações que não eram puros nadas, e os dois trocavam idéias e observações. Luís Garcia era homem de escassa cultura, sobretudo irregular; mas tinha os dons naturais e a longa solidão dera-lhe o hábito de refletir. Também ele ia à casa de Jorge, cujos livros lia de empréstimo.
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