Muitas de suas passagens mais ambiciosamente estilísticas, eivadas da mania da metáfora inflada e da afirmação hiperbólica, ensejam crítica e são difíceis de traduzir. No referente a esta tradução, nota-se que, na primeira edição de A comédia humana (de 1842 em diante), ele suprimiu as divisões de capítulo originais. Aqui foram restauradas. Por vezes, os parágrafos são excessivamente longos e falta transição de uma ordem de ideias para outra. Por isso tomei a liberdade de redividi-los. Tampouco me pareceu aconselhável aderir docilmente ao seu sistema de pontuação.
Ilusões perdidas: naturalmente, este é o leitmotiv do conjunto do livro. Na parte i, Lucien não tarda a descobrir que a aptidão poética não dá passaporte para o sucesso social com a elite de Angoulême. Ao chegar a Paris, ele e sua protetora logo constatam que sua admiração mútua não tem fundamento. No capítulo 9 da parte ii, Étienne Lousteau desilude Lucien quanto à probabilidade de o verdadeiro talento ter sucesso no mundo literário. A experiência de Lucien com os editores enfatiza essa verdade. Ele é obrigado a enfrentar o fato brutal de que, aonde quer que vá, só o dinheiro e a intriga é que contam. Na parte iii, vemos como Eve, David e a sra. Chardon se desfazem das ilusões com seu grand homme de province. No entanto, Lucien, apesar de todos os desastres que o acabrunham, demora a se desvencilhar das ilusões acerca de si próprio. Ainda se tem em ótimo conceito quando, esfarrapado e abatido, retorna à propriedade da família: “Eu sou heroico!”. E, depois de outros desastres, eis que “Carlos Herrera” vem restaurar seu moral baixo. Em 1869, Gustave Flaubert retomaria o tema “ilusões perdidas” em Educação sentimental. Vale a pena comparar os dois romances.
Ao senhor Victor Hugo
Vós, que pelo privilégio dos Rafael e dos Pitt já éreis grande poeta na idade em que os homens ainda são tão pequenos, lutastes, como Chateaubriand, como todos os verdadeiros talentos, contra os invejosos emboscados atrás das colunas, ou escondidos nos subterrâneos do Jornal.1 Assim, desejo que vosso nome vitorioso ajude à vitória desta obra que vos dedico, e que, segundo certas pessoas, seria um ato de coragem tanto quanto uma história plena de verdade. Acaso os jornalistas não teriam pertencido, como os marqueses, os financistas, os médicos e os procuradores, a Molière e a seu Teatro? Por que então A comédia humana, que castigat ridendo mores, iria excetuar uma potência, quando a Imprensa parisiense não excetua nenhuma?
Sinto-me feliz, Senhor, de poder me dizer assim
Vosso sincero admirador e amigo,
de balzac.
1 Esta edição respeita as maiúsculas com que Balzac inicia certos substantivos, peculiaridade de seus textos mencionada por ele mesmo a seus editores. (n. t.)
parte 1
Os dois poetas
1
uma tipografia de província
Na época em que começa esta história, a prensa de Stanhope e os rolos de tintagem ainda não funcionavam nas pequenas tipografias de província. Apesar da especialidade que a leva ser comparada com a tipografia parisiense, a cidade de Angoulême1 ainda usava as prensas de madeira, às quais o idioma deve a expressão “fazer a prensa gemer”, agora sem aplicação. A tipografia atrasada ainda empregava as almofadas de couro esfregadas na tinta, que um dos impressores batia nos caracteres tipográficos. A plataforma móvel em que se dispõe a fôrma cheia de letras, sobre a qual se aplica a folha de papel, ainda era de pedra e justificava seu nome de mármore. As devoradoras prensas mecânicas de hoje de tal modo jogaram no esquecimento esse mecanismo, ao qual devemos, apesar de suas imperfeições, os belos livros dos Elzevier, dos Plantin, dos Alde e dos Didot, que convém mencionar os velhos instrumentos a que Jérôme-Nicolas Séchard dedicava supersticiosa afeição; pois eles desempenham um papel nesta grande pequena história.
Este Séchard era um antigo oficial prensador, que no jargão tipográfico os operários encarregados de juntar as letras chamam de Urso. O movimento em vaivém, que muito se assemelha ao de um urso na jaula, e que leva os impressores do tinteiro à prensa e da prensa ao tinteiro, lhes valera talvez esse apelido. Como vingança, os Ursos chamavam os tipógrafos de Macacos, por causa do exercício contínuo que fazem para apanhar as letras nos cento e cinquenta e dois caixotins nos quais elas ficam. No desastroso período de 1793, Séchard, que andava perto dos cinquenta anos, se casou. Sua idade e seu casamento o fizeram escapar da grande convocação que levou quase todos os operários às Forças Armadas. O velho impressor ficou sozinho na tipografia, cujo dono, ou seja, o Patrão, acabava de morrer deixando uma viúva sem filhos.
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