O velho Pajé, para quem são estas dádivas, as recebe com desdém.

Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupã ordena o silêncio com um gesto, e três vezes clamando o nome terrível, enche-se do deus, que o habita:

– Tupã!... Tupã!... Tupã!...

De grota em grota o eco ao longe repercutiu.

Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro, e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara.

Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm de encontro às suas flechas para se traspassarem nelas; fatigado por fim de ferir, cava na terra o bucã,III e assa tamanha quantidade de caça que mil guerreiros em um ano não acabariam.

Outro, fogoso em amores, sonha que as mais belas virgens tabajaras deixam a cabana de seus pais e o seguem cativas de seu querer. Nunca a rede de chefe algum embalou mais voluptuosas carícias, que ele frui naquele êxtase.

O herói sonha tremendas lutas e horríveis combates, de que sai vencedor, cheio de glória e fama. O velho renasce na prole numerosa, e como o seco tronco donde rebenta nova e robusta sebe, ainda cobre-se de flores.

Todos sentem a felicidade tão viva e contínua, que no espaço da noite cuidam viver muitas luas. As bocas murmuram; o gesto fala; e o Pajé, que tudo escuta e vê, colhe o segredo no íntimo d’alma.

Iracema, depois que ofereceu aos chefes o licor de Tupã, saiu do bosque. Não permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse falar os sonhos.

Foi dali direito à cabana, onde a esperava Martim:

– Toma tuas armas, guerreiro branco. É tempo de partir.

– Leva-me aonde está Poti, meu irmão.

A virgem caminhou para o vale; o cristão a seguiu. Chegaram à falda do rochedo, que ia morrer à beira do tanque, em um maciço de verdura.

– Chama teu irmão!

Soltou Martim o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta caiu; e o vulto do guerreiro Poti apareceu na sombra.

Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.

– Poti está contente porque vê seu irmão, que o mau espírito da floresta arrebatou de seus olhos.

– Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poti; todos os guerreiros o invejarão.

Iracema suspirou, pensando que a afeição do pitiguara bastava à felicidade do estrangeiro.

– Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araquém vai guiar os estrangeiros.

Seguiu a virgem adiante; os dois guerreiros após. Quando tinham andado o espaço que transpõe a garça de um vôo, o chefe pitiguara tornou-se inquieto e murmurou ao ouvido do cristão:

– Manda à filha do Pajé que volte à cabana de seu pai. Ela demora a marcha dos guerreiros.

Martim estremeceu; mas a voz da prudência e da amizade penetrou em seu coração. Avançou para Iracema, e tirou do seio a voz mais terna para acalentar a saudade da virgem:

– Quanto mais afunda a raiz da planta na terra, mais custa arrancá- -la. Cada passo de Iracema no caminho da partida é uma raiz que lança no coração de seu hóspede.

– Iracema quer te acompanhar até onde acabam os campos dos tabajaras, para voltar com o sossego em seu coração.

Martim não respondeu. Continuaram a caminhar, e com eles caminhava a noite; as estrelas desmaiaram, e a frescura da alvorada alegrou a floresta. As roupas da manhã, alvas como o algodão, apareceram no céu.

Poti olhou a mata e parou. Martim compreendeu e disse a Iracema:

– Teu hóspede já não pisa os campos dos tabajaras. É o instante de separar-te dele.

XVII

Iracema pousou a mão no peito do guerreiro branco:

– A filha dos tabajaras já deixou os campos de seus pais; agora pode falar.

– Que segredo guardas em teu seio, virgem formosa do sertão?

– Iracema não pode mais separar-se do estrangeiro.

– Assim é preciso, filha de Araquém. Torna à cabana de teu velho pai, que te espera.

– Araquém já não tem filha.

Martim tornou com um gesto rudo e severo:

– Um guerreiro da minha raça jamais deixou a cabana do hóspede viúva de sua alegria. Araquém abraçará sua filha, para não amaldiçoar o estrangeiro ingrato.

Curvou a virgem a fronte; velando-se com as longas tranças negras que se espargiam pelo colo, cruzando ao grêmio os lindos braços, recolheu em seu pudor. Assim o róseo cacto, que já desabrochou em linda flor, cerra em botão o seio perfumado.

– Iracema te acompanhará, guerreiro branco, porque ela já é tua esposa.

Martim estremeceu.

– Os maus espíritos da noite turbaram o espírito de Iracema.

– O guerreiro branco sonhava, quando Tupã abandonou sua virgem. A filha do Pajé traiu o segredo da jurema.

O cristão escondeu as faces à luz.

– Deus!... clamou seu lábio trêmulo.

Permaneceram ambos mudos e quedos.

Afinal disse Poti:

– Os guerreiros tabajaras despertam.

O coração da virgem, como o do estrangeiro, ficou surdo à voz da prudência. O sol levantou-se no horizonte; e o seu olhar majestoso desceu dos montes à floresta. Poti, de pé, mudo e quedo, como um tronco decepado, esperou que seu irmão quisesse partir.

Foi Iracema quem primeiro falou:

– Vem: enquanto não pisares as praias dos pitiguaras, tua vida corre perigo.

Martim seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as árvores como a selvagem cutia. A tristeza lhe confrangia o coração; mas a onda de perfumes que deixava na brisa a passagem da formosa tabajara, açulava o amor no seio do guerreiro. Seu passo era tardo, o peito lhe ofegava.

Poti cismava. Em sua cabeça de mancebo morava o espírito de um abaeté.I O chefe pitiguara pensava que o amor é como o cauim, o qual bebido com moderação, fortalece o guerreiro, e tomado em excesso, abate a coragem do herói.