Ele sabia quanto era veloz o pé do tabajara; e esperava o momento de morrer defendendo o amigo.
Quando as sombras da tarde entristeciam o dia, o cristão parou no meio da mata. Poti acendeu o fogo da hospitalidade. A virgem desdobrou a alva rede de algodão franjada de penas de tucano, e suspendeu-a aos ramos da árvore.
– Esposo de Iracema, tua rede te espera.
A filha de Araquém foi sentar-se longe, na raiz de uma árvore, como a cerva solitária, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco. O guerreiro pitiguara desapareceu na espessura da folhagem.
Martim ficou mudo e triste, semelhante ao tronco d’árvore a que o vento arrancou o lindo cipó que o entrelaçava. A brisa perpassando levou um murmúrio:
– Iracema!
Era o balido do companheiro; a cerva, arrufando-se, ganhou o doce aprisco.
A floresta destilava suave fragrância e exalava arpejos harmoniosos; os suspiros do coração se difundiram nos múrmuros do deserto. Foi a festa do amor e o canto do himeneu.
Já a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora de Poti repercutiu no sussurro da mata:
– O povo tabajara caminha na floresta!
Iracema arrancou-se dos braços que a cingiam e do lábio que a tinha cativa; saltando da rede como a rápida zabelê, travou das armas do esposo e levou-o através da mata.
De espaço a espaço, o prudente Poti escutava as entranhas da terra; sua cabeça movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem que se balança no cocuruto do rochedo, aos vários lufos da próxima borrasca.
– O que escuta o ouvido do guerreiro Poti?
– Escuta o passo veloz do povo tabajara. Ele vem como tapir rompendo a floresta.
– O guerreiro pitiguara é a ema que voa sobre a terra; nós o seguiremos como suas asas: disse Iracema.
O chefe sacudiu de novo a fronte:
– Enquanto o guerreiro do mar dormia, o inimigo correu. Os que primeiro partiram já avançam além com as pontas do arco.
A vergonha mordeu o coração de Martim:
– Fuja o chefe Poti e salve Iracema. Só deve morrer o guerreiro mau, que não escutou a voz de seu irmão e o pedido de sua esposa.
Martim arrepiou o passo.
– Não foi a alma do guerreiro do mar, que falou. Poti e seu irmão só têm uma vida.
O lábio de Iracema não falou; sorriu.
XVIII
Treme a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara.
O grande Irapuã, primeiro, assoma entre as árvores. Seu olhar rúbido viu o guerreiro branco entre nuvens de sangue; o ronco bravio do tigre rompe de seu peito cavernoso.
O chefe tabajara e seu povo iam precipitar-se sobre os fugitivos, como a vaga encapelada que arrebenta no Mocoripe.
Eis que late o cão selvagem.
O amigo de Martim solta o grito da alegria:
– O cão de Poti guia os guerreiros de sua taba em socorro teu.
O rouco búzio dos pitiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna,I senhor das praias do mar, chegava do rio das garças com seus melhores guerreiros.
Os pitiguaras recebem o primeiro ímpeto do inimigo nas pontas irriçadas de suas flechas, que eles despedem do arco aos molhos, como o cuanduII os espinhos do seu corpo. Logo após soa a pocema, estreita-se o espaço, e a luta se trava face a face.
Jacaúna atacou Irapuã. Prossegue o horrível combate que bastara a dez bravos, e não esgotou ainda a força dos grandes chefes. Quando os dois tacapes se encontram, a batalha toda estremece como um só guerreiro, até as entranhas.
O irmão de Iracema veio direito ao estrangeiro, que arrancara a filha de Araquém à cabana hospitaleira; o faro da vingança o guia; a vista da irmã assanha a raiva em seu peito. O guerreiro Caubi assalta com furor o inimigo.
Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e falou assim:
– Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta mão, não pela tua.
Martim pôs no rosto da virgem olhos de horror:
– Iracema matará seu irmão?
– Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua; porque os olhos de Iracema veem a ti, e a ela não.
Travam a luta os guerreiros. Caubi combate com furor; o cristão defende-se apenas; mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro contra os botes do inimigo.
Poti já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seu válido tacape. Martim lhe abandona o filho de Araquém, e corre sobre Irapuã:
– Jacaúna é um grande chefe, seu colar de guerraIII dá três voltas ao peito. O tabajara pertence ao guerreiro branco.
– A vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna preza o amigo de Poti.
O grande chefe pitiguara levou além o formidável tacape. Renhiu-se o combate entre Irapuã e Martim. A espada do cristão batendo na clava do selvagem fez-se em pedaços. O chefe tabajara avançou contra o peito inerte do adversário.
Iracema silvou como a boicininga; e arrojou-se contra a fúria do guerreiro tabajara. A arma rígida tremeu na destra possante do chefe e o braço caiu-lhe desfalecido.
Soava a pocema da vitória. Os guerreiros pitiguaras conduzidos por Jacaúna e Poti varriam a floresta. Fugindo, os tabajaras arrebataram seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater, como a jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe o cerne.
Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem negra de pó. Aquele sangue que enrubescia a terra era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha.
O pranto orvalhou seu lindo semblante.
Martim afastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema.
XIX
Poti voltou de perseguir o inimigo. Seus olhos se encheram de alegria, vendo salvo o guerreiro branco.
O cão fiel o seguia de perto, lambendo ainda nos pelos do focinho a marugem do sangue tabajara, de que se fartara; o senhor o acariciava satisfeito de sua coragem e dedicação. Fora ele quem salvara Martim, trazendo ali com tanta diligência os guerreiros de Jacaúna.
– Os maus espíritos da floresta podem separar outra vez o guerreiro branco de seu irmão pitiguara.
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