Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar."
* * *
75.
"Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente -
perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e despersonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos."
* * *
79.
"Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto.
Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.
Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava
intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.
Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações
supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!"
* * *
80.
INTERVALO DOLOROSO
"Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel
rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a
vida, eu não posso lhe tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria
abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem!
qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me
esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e actos.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de
angústia.
Mesmo eu , o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge.
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