Couto, estou certo que ele me aconselharia para as ocasiões difíceis uma reticência. Com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro, como a hipocrisia é a reticência na sociedade?
Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época, aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade.
Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo uma reticência, tremo! Se uma curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar por ali, não verá abrir-se em cada um desses pontinhos o abismo do desconhecido.
A minha história é imoral; portanto não admite reticências; mas tenho um desvanecimento, pouco modesto, confesso. Caso a senhora cometesse a indiscrição de ler estas páginas a alguma menina inocente, talvez chegassem ao fim sem uma única pergunta. A borboleta esvoaça sem pousar entre as flores venenosas, por mais brilhantes que sejam; e procura o pólen no cálice da violeta e de outras plantas humildes e rasteiras. O espírito da moça é a borboleta; o seu instinto a castidade.
Entretanto, se este manuscrito tivesse de sair à luz pública algum dia, e um editor escrupuloso quisesse dar ao pequeno livro passaporte para viajar das estantes empoeiradas aos toucadores perfumados e às elegantes banquinhas de costura, bastaria substituir certos trechos mais ousados por duas ordens de pontinhos.
A que se reduz por fim de contas a moral literária! Ao mesmo que a decência pública: a alguns pontos de mais ou de menos.
Lúcia fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria, e caíra no costumado abatimento e distração. Eu a contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava, quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaído:
— Não lhe disse que nos havíamos de divertir muito?
— Contudo preferia estar só contigo. Todo o prazer de tão amável companhia, todo o brilho de teu espírito, que como o diamante faísca mais vivo quanto mais vivos são os raios da luz que o fere, nada disto faz esquecer a manhã de ontem!
— Ora! Há tanta mulher bonita! Qualquer destas vale mais do que eu, acredite! Demais, quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado, saberá o senhor de quem são os lábios que toca? Qual? É uma mulher! Uma presa em que ceva o apetite! Que importa o nome? Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe preparam esta ceia? Conhece-os?... Nem por isso as iguarias lhe parecem menos saborosas.
Estas palavras, assim lidas friamente, nada são comparadas com a voz amarga e sibilante que as pronunciava. Soltavam-se de seus lábios, e caíam no meu espírito, tão impregnadas de ondas de sarcasmo, que deixavam passando uma impressão cáustica e dolorosa.
— Não fales assim, Lúcia. Podia responder-te com a tua mesma comparação. Estas gelatinas e massas delicadas sabem que paladar as tem de gozar? Nem por isso deixam de exalar os mesmos aromas e guardar igual sabor para o dono da casa, como para qualquer dos convidados.
— Ou para os criados a quem se atiram os sobejos da ceia?... Não cuide que me ofendo! Se o senhor não diz por que é delicado, pensa-o talvez!
— Mudemos de conversa. Este tom de ironia me incomoda. Deste-me uma hora de prazer, que não esquecerei nunca. Não apagues o perfume desta lembrança.
— Que mal faz? Comprará outras horas de igual prazer: custam-lhe tão pouco!
— Oh! não seria o mesmo, não!
— Já não teria o encanto da novidade?
— Não teria a doce ilusão que arrancarias do meu espírito.
— Mas o senhor não sabe então?... perguntou erguendo os grandes olhos límpidos e fulgurantes.
— Sei tudo, mas não o quero saber; e menos de tua boca! Não sou para ti mais do que os outros; não te mereço nada; porém deixa-me a venda sobre os olhos, eu te peço! Sinto-me feliz com ela.
— O que não o impediria de ver-me com indiferença passar dos seus braços aos de qualquer destes homens, daquele velho por exemplo.
— Serias capaz de fazer isso, Lúcia?
— O que tenho eu feito toda a minha vida? Logo ou alguns dias depois... Questão de tempo!
— Não falas seriamente! É impossível!
— Aborreço o fingimento: não gosto de passar pelo que não sou. É tão ridícula essa comédia do amor, que representam os velhos e os meninos!
O escárnio da repetição de palavras, que eu lhe dissera na véspera, esmagou-me.
— Estás tão calada agora, Lúcia! exclamou o Couto.
— Paulo está naturalmente fazendo-lhe a corte! replicou Sá rindo.
— E por isso Lúcifer desapareceu do horizonte!
— Lúcifer espera o reino das trevas! O Sr. Paulo fazendo-me a corte!... Seria soberanamente ridículo para nós ambos!
— É a segunda vez que repetes uma palavra dita por mim num momento de despeito! Se te ofendi, perdoa-me, murmurei à meia voz.
— Gostei da frase!
Estourava o champanha, fumegando nos cálices de cristal. Foi o sinal de um concerto infernal de saúdes, hurras e cantigas descabeladas, com o acompanhamento de uma orquestra de copos e pratos; no meio do rumor distinguia-se a voz de falsete do Couto, e a risada estridente de Lúcia, cujas volatas tinham o timbre metálico do canto da araponga entre os murmúrios da floresta. Apenas começaram as primeiras explosões produzidas pelos vapores do vinho aristocrático, os criados saíram batendo a porta do serviço, que fechou-se interiormente.
Estávamos sós; a pêndula marcava uma hora e quarenta minutos; pouco tardaria o momento solene que o dono da casa, novo Erasmo, destinara para a inauguração da loucura.
— Meus senhores, confesso que a minha vaidade de anfitrião, amador das artes, está um tanto humilhada! Ainda não disseram uma palavra a respeito dos meus quadros!
— De quem é a culpa? A magnificência da ceia e a amabilidade do hóspede não consentiram que levantássemos os olhos.
— Mas são realmente soberbas estas pinturas!... exclamou o Couto. Que posições admiráveis!... Ressuscitariam um morto. Apenas noto a ausência absoluta do sexo feio.
— Isso prova o bom gosto do pintor.
— E o mau gosto das filhas de Lesbos.
— Então acham essas mulheres admiráveis?
— Provocantes!
— Arrebatadoras!...
— E tu, Paulo, que dizes?
— Digo que vi ontem um quadro deste gênero, que eu não trocaria por todas as tuas pinturas! Era uma mulher; mas as formas palpitavam; a carne latejava sob os olhos que a devoravam; os lábios comiam de beijos a vítima que eles provocavam; e entre a cútis transparente corria o sangue, que se precipitava do coração espadanando em cascatas!
— Sublime! A descrição é digna do quadro... que eu não vi! disse o Rochinha.
— Onde descobriste essa maravilha?
— É meu segredo.
— Nem se pode saber o nome do artista, Sr. Silva?
— Não adivinharam ainda!
— Será Rafael?
— É um Ticiano póstumo!
— Ou algum gênio desconhecido?
— Enganaram-se: é um artista de todos os tempos e de todos os Países; é o artista divino que fez as flores, as estrelas e as mulheres!
— Ah! neste gênero de pintura tenho visto o melhor que é possível!
— Eu aposto, disse Lúcia, que o Sr. Silva, como os poetas, embelezou o seu quadro. Viu o que sentia; mas não o que era.
— Que importa! É outra ilusão minha que desejo guardar!
— Talvez não a guarde por muito tempo...
— Pois, meus senhores, continuou Sá, mostrando-lhes estas pinturas, preparei-lhes uma agradável surpresa.
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