Caso alguém reclame, prorroga-se o tempo.

— A não ser o Sr. Couto! murmurou a companheira deste.

— Aprovado sem discussão, retrucou o velho. Com os diabos, Nina! Comer é uma das boas coisas deste mundo; porém não é a melhor.

— Demais, a mesa ai fica; e ninguém erra a boca mesmo no escuro! acudiu Laura rindo.

Creio que o Sr. Couto corou; em todo o caso remexeu-se, como se estivesse sobre alfinetes.

— Ora! Isso sucedeu uma vez; e foi para te meter febre.

— Não se trata dos sessenta anos do Sr. Couto...

— Quarenta e cinco, minha jóia! E por fazer!...

— Passemos à ordem do dia! exclamava uma francesa já abrasileirada, que tinha privado com um orador da câmara.

— Bem! continuou Sá: a hora seguinte bebe-se. É bastante?

— É demais! Em menos tempo dou conta de uma cesta de champanha! gritou Nina.

— Não admira! Uma burra r vale mais do que uma cesta; e tu eras capaz de esvaziá-la num minuto!

— Então, adotada a meia hora? perguntou Sá interrompendo o Couto.

— Para mim é indiferente, respondeu o Rochinha acordando. Já se foi o tempo em que me embriagava com essas limonadas de espuma e esses vinagres do Reno. Sou uma velha esponja, meu caro: fui curtido a kirsch e rum.

— Manda-se preparar para ti uma gengibrada.

— Que bicho é esse?

— É uma infusão de gengibre fervida em aguardente de trinta e seis graus, com uma garrafa de marasquino.

— Deliciosa bebida! disse Lúcia. Não leva também algumas gotas de chumbo derretido?

— Finalmente, meus senhores, as duas horas em ponto, imola-se a razão no fundo das garrafas.

— Bravo! gritaram as mulheres em coro.

— Aceito por unanimidade!

— Posso imolar a minha desde já, gritou o Couto.

— Não admito! Requeiro que se respeitem as cãs...

— E a inocência dos criados.

— A vista das considerações devidas ao sexo, cedo!

— É melhor; mesmo porque seria difícil imolar o que não existe.

— Procedamos em regra. As duas horas portanto pára-se a pêndula. Abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração solene do reinado das trevas e da loucura. Até lá liberdade completa dentro dos limites da decência; tudo quanto possa alegrar, como o gracejo, a cantiga, o brinde ou o discurso, é permitido; salvo o direito ao respeitável público feminino e masculino de patear as sensaborias.

— Nota do taquígrafo. Numerosos apoiados; o orador é cumprimentado.

E o Couto para realizar o seu dito propôs a saúde de Sum, e acompanhou-a com um discurso recheado de disparates, interrompido a cada palavra pela algazarra dos estouros báquicos.

Não tomei nem uma parte nesse primeiro tiroteio; Lúcia apenas dissera uma palavra. Ela estava visivelmente contrariada; por momentos caia em profunda distração, de que eu a tirava a custo; depois tomava-se de um estouvamento e sofreguidão que não era natural. Uma vez levantado o cálice, a contração muscular foi tão violenta que o cristal espedaçou-se entre as falanges delicadas. Tinha-se ferido, e para estancar o sangue, mergulhou o dedo no meu copo cheio de Sauterne: o áureo licor enrubesceu; e eu esgotei-o até a última gota num assomo de galanteio romântico.

Lúcia acompanhou o meu movimento com um olhar tão cheio do que olhava, como se eu lhe bebera a própria vida nessas gotas tintas de seu sangue.

— Se o bebesse todo!... balbuciou.

— Tu morrias, Lúcia! respondi sorrindo.

— Eu... viveria; e o resto seria pasto dos vermes,, como foi pasto dos homens.

Semelhante à mosca importuna que se afoga no vinho, a palavra lúgubre afogou-se no entusiasmo que começava a brilhar em todas as frontes.

Lúcia apanhou no ar o primeiro dito que passava para fazê-lo ressaltar com uma das réplicas vivaces, titilantes de sarcasmo e ironia, que em certos momentos fervilhavam de seus lábios. Era impossível segui-la nesse brilhante rasto de seu espírito.

CAPÍTULO VII

Sr. Couto, dizia Sá, recomendo-lhe estas perdizes! Estão saturadas de trutas e castanhas.

— Obrigado; é muito forte para mim. Daqui a dez anos, não digo que não.

— Passa-me as perdizes! exclamou o Rochinha piscando os olhos com certa malícia.

— Por favor, Sr. Couto, disse Lúcia rindo, empreste ao Sr. Rocha os seus cabelos brancos! Por esta noite ao menos...

— Oh! já não são poucos os que eu tenho.

— Mas não são bastantes, Rochinha, atalhou Sá. Lúcia tem razão.

Esta continuou:

Vou fazer uma proposta.

Muito bem; atenção em ambas as colunas, gritou o velho Couto abrindo os braços.

— Proponho...

— A minha saúde?

— Um coro com acompanhamento de pratos?

— Não! não! Se continuam, subo à rampa!

Silêncio!

— Proponho que esta noite o Sr. Couto seja tratado por Coutozinho, que é mais terno; e o Sr. Rochinha sem o embirrante diminutivo, que lhe dá uns ares de menino de colégio!...

Houve explosão de gritos e aplausos.

— Acrescenta, disse o Sá, que Nina chamará o Sr. Couto – nhonhô, e Laura o Rochinha – papai.

— Não admito! O incesto é contra a moral, gritou Lúcia.

— Como trata-se de nomes, eu também proponho uma mudança, bocejou o Rochinha. Em lugar de Lúcia – diga-se Lúcifer.

— É velho! Não valia a pena acordar para isto. Quem não sabe que eu sou anjo de luz, que desci do céu ao inferno?

A guerrilha de facécias e ditos mais ou menos chistosos continuou tão viva, que renuncio à idéia de reproduzi-la.

Não pensava, quando comecei a escrever estas páginas que lhe destino, lutar com tamanhas dificuldades; uma coisa é sentir a impressão que se recebeu de certos acontecimentos, outra comunicar e transmitir fielmente essa impressão. Para o conseguir, cumpre que nada se omita; e ai justamente está o meu embaraço, porque há episódios daquela noite, que eu desejava bem poder deixar nos refolhos de minha memória ou no fundo do meu tinteiro.

Se tivesse agora ao meu lado o Sr.