Voltei nessa mesma noite e nos dias seguintes à sua casa, e achei sempre a porta fechada para mim; até que me recebeu para dizer-me com toda a macieza e doçura, que eu supunha ter comprado a chave de sua casa, e por isso ia-me restituir o preço de uma venda que ficara sem efeito. Saí para não voltar mais!

— Arrufos! Se não a procurasse, ela o mandaria chamar no outro dia. É sempre a sombra do provérbio chinês: segue quem a foge.

— São águas passadas. Estávamos falando da simplicidade de seu trajar. A razão é outra; é pura avareza.

— Como! Não disse que ela não se deixava levar pelo interesse? Não compreendo. Uma mulher que rejeita ofertas brilhantes e leva o seu escrúpulo a nunca pedir, nem mesmo uma coisa insignificante... Essa mulher não pode ser avarenta! O senhor conserva algum ressentimento, disse eu sorrindo.

— Ora! replicou ele encolhendo os ombros. Não faltam bonitas mulheres. Mas esse desinteresse de Lúcia é um cálculo, e um cálculo muito fino. Uma mulher que pede, marca o preço de sua gratidão ou do seu amor; a mulher que não pede é um abismo que nunca se enche! Tenho experiência destas coisas.

— Em todo o caso, ainda que ela fosse de uma mesquinhez sórdida, as jóias não se gastam com o uso.

— Se ela as vende!

— Não é possível!

Também eu duvidei por muito tempo, mas tive a prova. Há aqui um Sr. Jacinto que fez sociedade com ela; tudo que lhe dão, até roupas, é imediatamente reduzido a dinheiro. Lúcia deve ter por aí em casa do Gomes ou do Couto seus trinta a quarenta contos.

— Guarda para a velhice, se lá chegar.

A tecla que vibrara em nosso espírito ressoava tão melodiosamente, que o pano descera sobre o primeiro ato do Hernani, sem darmos por isso. O Cunha me parecia conservar vivas saudades de suas relações com essa moça, que ainda o interessava apesar de tudo. Quanto a mim, todas as excentricidades e defeitos que atribuíam a Lúcia, ao passo que a faziam descer na minha estima, davam-lhe um sainete de originalidade e um picante sabor que me excitava. O vício também tem sua beleza e sua atração, como a virtude; a diferença é que no âmago do fruto os lábios encontram terra e cinza em vez de polpa deliciosa.

Há de ter reparado em que me desse por desconhecido de Lúcia; é hábito meu, desde que entrei no mundo, não admitir os estranhos à intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha alma entre amigos.

Como já lhe disse, suspeitava que Lúcia devia assistir à ceia, para a qual Sá me convidara, na quinta-feira, jantando no Hotel da Europa. Naquela ocasião quis ter a certeza; e creia que subindo as escadas da segunda ordem desejava ter-me enganado.

Preciso dizer-lhe a razão?

Ela não estava só: uma multidão de adoradores invadira a porta de seu camarote. Cortejei-a e passei, esperando a ocasião em que lhe pudesse falar. Tudo quanto achei para mandar levar-lhe foi sorvetes, doces, algumas flores de baile que vendiam à porta, e o libreto da ópera. As mulheres, a senhora o sabe por experiência, agradecem mais essas pequenas atenções de que a cercam, do que os verdadeiros sacrifícios; e eu tinha resolvido fazer a conquista de Lúcia por oito ou quinze dias.

Estive com ela no intervalo seguinte.

— Não tinha nem uma moça bonita do seu conhecimento a quem dar estas flores tão lindas? disse apertando-me a mão e mostrando dois cactos que se estrelavam, um no seio e outro entre os seus cabelos.

— Sabes quem as mandou?

— Adivinhei pelo cheiro É tão suave!...

— Ficam-te muito bem; parecem ter nascido aí entre as rendas e os cabelos.

— Hei de enfeitar-me sempre assim.

— E com as flores que eu te mandarei todas as manhãs.

— Disse isto à toa. Não tenho paciência, nem gosto para estas coisas! Agora foi uma lembrança e já me está aborrecendo, replicou, batendo com a ponta dos dedos afilados nas pétalas da flor.

Notei no tom de Lúcia durante o resto desta conversa uma diferença extraordinária com o modo singelo e modesto que ela tinha em sua casa; agora era a frase ríspida, incisiva e levemente embebida na ironia que destilava de seus lábios, e cujas gotas a maior parte das vezes salpicavam a ela própria. A cortesã revelava-se a mim sem rebuços, depois que deixara cair na falda do leito o seu último véu. Não sei se estimei ou senti essa brusca transição; a franqueza me punha mais à vontade, é certo, porém desvanecia uma doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor.

Perguntei-lhe afinal se me permitia acompanhá-la depois do teatro.

— Esta noite não me pertence!...

— Não vais para casa?

— Não.

— Já sei! Estás convidada para uma ceia...

— Quem lhe disse?

— Em casa do Sá.

— Ah! Não me lembrava que ele é seu amigo! E o senhor, também vai?...

— Para ter o prazer de tua companhia.

— Ainda não estou inteiramente resolvida! murmurou com lentidão, e atalhou logo com certo estouvamento: porém não, vou! Por que deixaria de ir? Havemos de divertir-nos muito: o Sá tem gosto.

Acendeu-se nos seus olhos o fogo que já uma vez me tinha queimado as faces; só mais tarde devia ter a explicação desse olhar.

Quando tomei o meu lugar nas cadeiras, Lúcia tinha desaparecido.

CAPÍTULO VI

Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que caprichara em preparar.

Com trinta anos de idade, um caráter fleumático e uma imaginação ardente, o meu amigo tinha errado a sua vocação; a natureza o destinara para milionário, tal era o seu desprezo pelo dinheiro quando se tratava de realizar um de seus mil sonhos dourados. Gozando do conforto e mesmo da elegância que lhe permitia uma folgada abastança, as flores que ia colhendo pelo caminho estavam longe de satisfazer-lhe as fantasias orientais; por isso impunha a si mesmo o sacrifício de acumular algumas pequenas reservas, fruto das economias de muitos dias, para consumi-las em poucas horas, com um desapego selvagem.

A alma obcecada pelo trabalho, irritada pelas migalhas de prazer que bajulava aqui e ali, tinha de tempos a tempos necessidade de um banho russiano. Nesses dias Sá dava férias às ocupações graves, convidava alguns amigos, e oferecia à imaginação um pasto régio. Era o reinado efêmero da devassidão, naquela existência alegre, mas calma de ordinário.

A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente situada entre jardins, no centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se com o farfalhar do vento na espessa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali velasse a horas mortas.

Cheguei por volta de meia-noite.

Já estavam reunidos os convidados: Lúcia, três belas mulheres que eu conhecia de vista, e um senhor de cabelos e barbas brancas, vestido com esmero extremo, mas com alguma excentricidade inglesa; um desses velhos ainda verdes que se esforçam em reconstruir sobre os últimos rescaldos de fogos extintos, com o auxílio de um empertigamento cômico, uma atividade elástica e um fátuo repertório de anedotas galantes, a mocidade fictícia que só a eles próprios ilude. Sá mo apresentou com estas palavras:

— O Sr. Couto, capitalista.

O sexto convidado era um moço de 17 anos, o Sr.