Os Lusíadas

 

Fonte: CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Texto proveniente de: http://www.oslusiadas.com/ Acesso em 21 set. 2011.

 

Texto publicado originariamente em 1572.

 

Editoração eletrônica: Brasil ePub <www.brasilepub.com.br>. Este arquivo pode ser livremente distribuído, desde que citada a fonte da editoração eletrônica.

 

Luís Vaz de Camões nasceu, provavelmente, em Lisboa, em 1524, e faleceu em Lisboa, em 10 de junho de 1580.

 

Esta obra encontra-se, no Brasil, em domínio público, conforme art. 41 da Lei federal n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

 

 

 

 

 

Canto I

 

1

 

As armas e os barões assinalados,

Que da ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados,

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

 

2

 

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis, que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando;

E aqueles, que por obras valerosas

Se vão da lei da morte libertando;

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

 

3

 

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram:

Cesse tudo o que a Musa antígua canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

 

4

 

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mim um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mim vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloquo e corrente,

Porque de vossas águas, Febo ordene

Que não tenham inveja às de Hipoerene.

 

5

 

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

 

6

 

E vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antígua liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Para do mundo a Deus dar parte grande;

 

7

 

Vós, tenro e novo ramo florescente

De uma árvore de Cristo mais amada

Que nenhuma nascida no Ocidente,

Cesárea ou Cristianíssima chamada;

(Vede-o no vosso escudo, que presente

Vos amostra a vitória já passada,

Na qual vos deu por armas, e deixou

As que Ele para si na Cruz tomou)

 

8

 

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando desce o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco oriental, e do Gentio,

Que inda bebe o licor do santo rio;

 

9

 

Inclinai por um pouco a majestade,

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

 

10

 

Vereis amor da pátria, não movido

De prémio vil, mas alto e quase eterno:

Que não é prémio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno.

Ouvi: vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor superno,

E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de til gente.

 

11

 

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

As verdadeiras vossas são tamanhas,

Que excedem as sonhadas, fabulosas;

Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,

E Orlando, inda que fora verdadeiro,

 

12

 

Por estes vos darei um Nuno fero,

Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,

Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero

A cítara para eles só cobiço.

Pois pelos doze Pares dar-vos quero

Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço;

Dou-vos também aquele ilustre Gama,

Que para si de Eneias toma a fama.

 

13

 

Pois se a troco de Carlos, Rei de França,

Ou de César, quereis igual memória,

Vede o primeiro Afonso, cuja lança

Escura faz qualquer estranha glória;

E aquele que a seu Reino a segurança

Deixou com a grande e próspera vitória;

Outro Joane, invicto cavaleiro,

O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.

 

14

 

Nem deixarão meus versos esquecidos

Aqueles que nos Reinos lá da Aurora

Fizeram, só por armas tão subidos,

Vossa bandeira sempre vencedora:

Um Pacheco fortíssimo, e os temidos

Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;

Albuquerque terríbil, Castro forte,

E outros em quem poder não teve a morte.

 

15

 

E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,

Tomai as rédeas vós do Reino vosso:

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Comecem a sentir o peso grosso

(Que pelo mundo todo faça espanto)

De exércitos e feitos singulares,

De África as terras, e do Oriente os marços,

 

16

 

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

Tethys todo o cerúleo senhorio

Tem para vós por dote aparelhado;

Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,

Deseja de comprar-vos para genro.

 

17

 

Em vós se vêm da olímpica morada

Dos dois avós as almas cá famosas,

Uma na paz angélica dourada,

Outra pelas batalhas sanguinosas;

Em vós esperam ver-se renovada

Sua memória e obras valerosas;

E lá vos tem lugar, no fim da idade,

No templo da suprema Eternidade.

 

18

 

Mas enquanto este tempo passa lento

De regerdes os povos, que o desejam,

Dai vós favor ao novo atrevimento,

Para que estes meus versos vossos sejam;

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas, por que vejam

Que são vistos de vós no mar irado,

E costumai-vos já a ser invocado.

 

19

 

Já no largo Oceano navegavam,

As inquietas ondas apartando;

Os ventos brandamente respiravam,

Das naus as velas côncavas inchando;

Da branca escuma os mares se mostravam

Cobertos, onde as proas vão cortando

As marítimas águas consagradas,

Que do gado de Próteo são cortadas

 

20

 

Quando os Deuses no Olimpo luminoso,

Onde o governo está da humana gente,

Se ajuntam em concílio glorioso

Sobre as cousas futuras do Oriente.

Pisando o cristalino Céu formoso,

Vêm pela Via-Láctea juntamente,

Convocados da parte do Tonante,

Pelo neto gentil do velho Atlante.

 

21

 

Deixam dos sete Céus o regimento,

Que do poder mais alto lhe foi dado,

Alto poder, que só co'o pensamento

Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado.

Ali se acharam juntos num momento

Os que habitam o Arcturo congelado,

E os que o Austro tem, e as partes onde

A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.

 

22

 

Estava o Padre ali sublime e dino,

Que vibra os feros raios de Vulcano,

Num assento de estrelas cristalino,

Com gesto alto, severo e soberano.

Do rosto respirava um ar divino,

Que divino tornara um corpo humano;

Com uma coroa e ceptro rutilante,

 

23

 

Em luzentes assentos, marchetados

De ouro e de perlas, mais abaixo estavam

Os outros Deuses todos assentados,

Como a razão e a ordem concertavam:

Precedem os antíguos mais honrados;

Mais abaixo os menores se assentavam;

Quando Júpiter alto, assim dizendo,

C'um tom de voz começa, grave e horrendo:

 

24

 

"Eternos moradores do luzente

Estelífero pólo, e claro assento,

Se do grande valor da forte gente

De Luso não perdeis o pensamento,

Deveis de ter sabido claramente,

Como é dos fados grandes certo intento,

Que por ela se esqueçam os humanos

De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

 

25

 

"Já lhe foi (bem o vistes) concedido

C'um poder tão singelo e tão pequeno,

Tomar ao Mouro forte e guarnecido

Toda a terra, que rega o Tejo ameno:

Pois contra o Castelhano tão temido,

Sempre alcançou favor do Céu sereno.

Assim que sempre, enfim, com fama e glória,

Teve os troféus pendentes da vitória.

 

26

 

"Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,

Que coa gente de Rómulo alcançaram,

Quando com Viriato, na inimiga

Guerra romana tanto se afamaram;

Também deixo a memória, que os obriga

A grande nome, quando alevantaram

Um por seu capitão, que peregrino

Fingiu na cerva espírito divino.

 

27

 

"Agora vedes bem que, cometendo

O duvidoso mar num lenho leve,

Por vias nunca usadas, não temendo

De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve:

Que havendo tanto já que as partes vendo

Onde o dia é comprido e onde breve,

Inclinam seu propósito e porfia

A ver os berços onde nasce o dia.

 

28

 

"Prometido lhe está do Fado eterno,

Cuja alta Lei não pode ser quebrada,

Que tenham longos tempos o governo

Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.

Nas águas têm passado o duro inverno;

A gente vem perdida e trabalhada;

Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada a nova terra, que deseja.

 

29

 

"E porque, como vistes, têm passados

Na viagem tão ásperos perigos,

Tantos climas e céus experimentados,

Tanto furor de ventos inimigos,

Que sejam, determino, agasalhados

Nesta costa africana, como amigos.

E tendo guarnecida a lassa frota,

Tornarão a seguir sua longa rota."

 

30

 

Estas palavras Júpiter dizia,

Quando os Deuses por ordem respondendo,

Na sentença um do outro diferia,

Razões diversas dando e recebendo.

O padre Baco ali não consentia

No que Júpiter disse, conhecendo

Que esquecerão seus feitos no Oriente,

Se lá passar a Lusitana gente.

 

31

 

Ouvido tinha aos Fados que viria

Uma gente fortíssima de Espanha

Pelo mar alto, a qual sujeitaria

Da índia tudo quanto Dóris banha,

E com novas vitórias venceria

A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.

Altamente lhe dói perder a glória,

De que Nisa celebra inda a memória.

 

32

 

Vê que já teve o Indo sojugado,

E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso,

Por vencedor da Índia ser cantado

De quantos bebem a água de Parnaso.

Teme agora que seja sepultado

Seu tão célebre nome em negro vaso

D'água do esquecimento, se lá chegam

Os fortes Portugueses, que navegam.

 

33

 

Sustentava contra ele Vénus bela,

Afeiçoada à gente Lusitana,

Por quantas qualidades via nela

Da antiga tão amada sua Romana;

Nos fortes corações, na grande estrela,

Que mostraram na terra Tingitana,

E na língua, na qual quando imagina,

Com pouca corrupção crê que é a Latina.

 

34

 

Estas causas moviam Citereia,

E mais, porque das Parcas claro entende

Que há de ser celebrada a clara Deia,

Onde a gente belígera se estende.

Assim que, um pela infâmia, que arreceia,

E o outro pelas honras, que pretende,

Debatem, e na porfia permanecem;

A qualquer seus amigos favorecem.

 

35

 

Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura

De silvestre arvoredo abastecida,

Rompendo os ramos vão da mata escura,

Com ímpeto e braveza desmedida;

Brama toda a montanha, o som murmura,

Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:

Tal andava o tumulto levantado,

Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

 

36

 

Mas Marte, que da Deusa sustentava

Entre todos as partes em porfia,

Ou porque o amor antigo o obrigava,

Ou porque a gente forte o merecia,

De entre os Deuses em pé se levantava:

Merencório no gesto parecia;

O forte escudo ao colo pendurado

Deitando para trás, medonho e irado,

 

37

 

A viseira do elmo de diamante

Alevantando um pouco, mui seguro,

Por dar seu parecer, se pôs diante

De Júpiter, armado, forte e duro:

E dando uma pancada penetrante,

Com o conto do bastão no sólio puro,

O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,

Um pouco a luz perdeu, como enfiado.

 

38

 

E disse assim: "Ó Padre, a cujo império

Tudo aquilo obedece, que criaste,

Se esta gente, que busca outro hemisfério,

Cuja valia, e obras tanto amaste,

Não queres que padeçam vitupério,

Como há já tanto tempo que ordenaste,

Não onças mais, pois és juiz direito,

Razões de quem parece que é suspeito.

 

39

 

"Que, se aqui a razão se não mostrasse

Vencida do temor demasiado,

Bem fora que aqui Baco os sustentasse,

Pois que de Luso vem, seu tão privado;

Mas esta tenção sua agora passe,

Porque enfim vem de estâmago danado;

Que nunca tirará alheia inveja

O bem, que outrem merece, e o Céu deseja.

 

40

 

"E tu, Padre de grande fortaleza,

Da determinação, que tens tomada,

Não tornes por detrás, pois é fraqueza

Desistir-se da cousa começada.

Mercúrio, pois excede em ligeireza

Ao vento leve, e à seta bem talhada,

Lhe vá mostrar a terra, onde se informe

Da índia, e onde a gente se reforme."

 

41

 

Como isto disse, o Padre poderoso,

A cabeça inclinando, consentiu

No que disse Mavorte valeroso,

E néctar sobre todos esparziu.

Pelo caminho Lácteo glorioso

Logo cada um dos Deuses se partiu,

Fazendo seus reais acatamentos,

Para os determinados aposentos.

 

42

 

Enquanto isto se passa na formosa

Casa etérea do Olimpo onipotente,

Cortava o mar a gente belicosa,

Já lá da banda do Austro e do Oriente,

Entre a costa Etiópica e a famosa

Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente

Queimava então os Deuses, que Tifeu

Com o temor grande em peixes converteu.

 

 

43

 

Tão brandamente os ventos os levavam,

Como quem o céu tinha por amigo:

Sereno o ar, e os tempos se mostravam

Sem nuvens, sem receio de perigo.

O promontório Prasso já passavam,

Na costa de Etiópia, nome antigo,

Quando o mar descobrindo lhe mostrava

Novas ilhas, que em torno cerca e lava.

 

44

 

Vasco da Gama, o forte capitão,

Que a tamanhas empresas se oferece,

De soberbo e de altivo coração,

A quem Fortuna sempre favorece,

Para se aqui deter não vê razão,

Que inabitada a terra lhe parece:

Por diante passar determinava;

Mas não lhe sucedeu como cuidava.

 

45

 

Eis aparecem logo em companhia

Uns pequenos batéis, que vêm daquela

Que mais chegada à terra parecia,

Cortando o longo mar com larga vela.

A gente se alvoroça, e de alegria

Não sabe mais que olhar a causa dela.

Que gente será esta, em si diziam,

Que costumes, que Lei, que Rei teriam?

 

46

 

As embarcações eram, na maneira,

Mui veloces, estreitas e compridas:

As velas, com que, vêm, eram de esteira

Dumas folhas de palma, bem tecidas;

A gente da cor era verdadeira,

Que Faeton, nas terras acendidas,

Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:

O Pado o sabe, o Lampetusa o sente.

 

47

 

De panos de algodão vinham vestidos,

De várias cores, brancos e listrados:

Uns trazem derredor de si cingidos,

Outros em modo airoso sobraçados:

Da cinta para cima vêm despidos;

Por armas têm adargas o terçados;

Com toucas na cabeça; e navegando,

Anafis sonoros vão tocando.

 

48

 

Co'os panos e co'os braços acenavam

As gentes Lusitanas, que esperassem;

Mas já as proas ligeiras se inclinavam

Para que junto às ilhas amainassem.

A ,ente e marinheiros trabalhavam,

Como se aqui os trabalhos se acabassem;

Tomam velas; amaina-se a verga alta;

Da âncora, o mar ferido, em cima salta.

 

49

 

Não eram ancorados, quando a gente

Estranha pelas cordas já subia.

No gesto ledos vêm, e humanamente

O Capitão sublime os recebia:

As mesas manda pôr em continente;

Do licor que Lieo prantado havia

Enchem vasos de vidro, e do que deitam,

Os de Faeton queimados nada enjeitam.

 

50

 

Comendo alegremente perguntavam,

Pela Arábica língua, donde vinham,

Quem eram, de que terra, que buscavam,

Ou que partes do mar corrido tinham?

Os fortes Lusitanos lhe tornavam

As discretas respostas, que convinham:

"Os Portugueses somos do Ocidente,

Imos buscando as terras do Oriente.

 

51

 

"Do mar temos corrido e navegado

Toda a parte do Antártico e Calisto,

Toda a costa Africana rodeado,

Diversos céus e terras temos visto;

Dum Rei potente somos, tão amado,

Tão querido de todos, e benquisto,

Que não no largo mar, com leda fronte,

Mas no lago entraremos de Aqueronte.

 

52

 

"E por mandado seu, buscando andamos

A terra Oriental que o Indo rega;

Por ele, o mar remoto navegamos,

Que só dos feios focas se navega.

Mas já razão parece que saibamos,

Se entre vós a verdade não se nega,

Quem sois, que terra é esta que habitais,

Ou se tendes da Índia alguns sinais?"

 

53

 

"Somos, um dos das ilhas lhe tornou,

Estrangeiros na terra, Lei e nação;

Que os próprios são aqueles, que criou

A natura sem Lei e sem razão.

Nós temos a Lei certa, que ensinou

O claro descendente de Abraão

Que agora tem do mundo o senhorio,

A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio.

Informações. A Ilha de Moçambique.

 

54

 

"Esta ilha pequena, que habitamos,

em toda esta terra certa escala

De todos os que as ondas navegamos

De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;

E, por ser necessária, procuramos,

Como próprios da terra, de habitá-la;

E por que tudo enfim vos notifique,

Chama-se a pequena ilha Moçambique.

 

55

 

"E já que de tão longe navegais,

Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,

Piloto aqui tereis, por quem sejais

Guiados pelas ondas sabiamente.

Também será bem feito que tenhais

Da terra algum refresco, e que o Regente

Que esta terra governa, que vos veja,

E do mais necessário vos proveja."

 

56

 

Isto dizendo, o Mouro se tornou

A seus batéis com toda a companhia;

Do Capitão e gente se apartou

Com mostras de devida cortesia.

Nisto Febo nas águas encerrou,

Co'o carro de cristal, o claro dia,

Dando cargo à irmã, que alumiasse

O largo mundo, enquanto repousasse.

 

57

 

A noite se passou na lassa frota

Com estranha alegria, e não cuidada,

Por acharem da terra tão remota

Nova de tanto tempo desejada.

Qualquer então consigo cuida e nota

Na gente e na maneira desusada,

E como os que na errada Seita creram,

Tanto por todo o mundo se estenderam,

 

58

 

Da Lua os claros raios rutilavam

Pelas argênteas ondas Neptuninas,

As estrelas os Céus acompanhavam,

Qual campo revestido de boninas;

Os furiosos ventos repousavam

Pelas covas escuras peregrinas;

Porém da armada a gente vigiava,

Como por longo tempo costumava.

 

59

 

Mas assim como a Aurora marchetada

Os formosos cabelos espalhou

No Céu sereno, abrindo a roxa entrada

Ao claro Hiperiónio, que acordou,

Começa a embandeirar-se toda a armada,

E de toldos alegres se adornou,

Por receber com festas e alegria

O Regedor das ilhas, que partia.

 

60

 

Partia alegremente navegando,

A ver as naus ligeiras Lusitanas,

Com refresco da terra, em si cuidando

Que são aquelas gentes inumanas,

Que, os aposentos cáspios habitando,

A conquistar as terras Asianas

Vieram; e por ordem do Destino,

O Império tomaram a Constantino.

 

61

 

Recebe o Capitão alegremente

O Mouro, e toda a sua companhia;

Dá-lhe de ricas peças um presente,

Que só para este efeito já trazia;

Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente

Não usado licor, que dá alegria.

Tudo o Mouro contente bem recebe;

E muito mais contente come e bebe.

 

62

 

Está a gente marítima de Luso

Subida pela enxárcia, de admirada,

Notando o estrangeiro modo e uso,

E a linguagem tão bárbara e enleada.

Também o Mouro astuto está confuso,

Olhando a cor, o trajo, e a forte armada;

E perguntando tudo, lhe dizia

"Se por ventura vinham de Turquia?"

 

63

 

E mais lhe diz também, que ver deseja

Os livros de sua Lei, preceito eu fé,

Para ver se conforme à sua seja,

Ou se são dos de Cristo, como Crê.

E porque tudo note e tudo veja,

Ao Capitão pedia que lhe dê

Mostra das fortes armas de que usavam,

Quando co'os inimigos pelejavam.

 

64

 

Responde o valeroso Capitão

Por um, que a língua escura bem sabia:

"Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação

De mim, da Lei, das armas que trazia.

Nem sou da terra, nem da geração

Das gentes enojosas de Turquia:

Mas sou da forte Europa belicosa,

Busco as terras da índia tão famosa.

 

65

 

A lei tenho daquele, a cujo império

Obedece o visíbil e ínvisíbil

Aquele que criou todo o Hemisfério,

Tudo o que sente, o todo o insensíbil;

Que padeceu desonra e vitupério,

Sofrendo morte injusta e insofríbil,

E que do Céu à Terra, enfim desceu,

Por subir os mortais da Terra ao Céu.

 

66

 

Deste Deus-Homem, alto e infinito,

Os livros, que tu pedes não trazia,

Que bem posso escusar trazer escrito

Em papel o que na alma andar devia.

Se as armas queres ver, como tens dito,

Cumprido esse desejo te seria;

Como amigo as verás; porque eu me obrigo,

Que nunca as queiras ver como inimigo."

 

67

 

Isto dizendo, manda os diligentes

Ministros amostrar as armaduras:

Vêm arneses, e peitos reluzentes,

Malhas finas, e lâminas seguras,

Escudos de pinturas diferentes,

Pelouros, espingardas de aço puras,

Arcos, e sagitíferas aljavas,

Partazanas agudas, chuças bravas:

 

68

 

As bombas vêm de fogo, e juntamente

As panelas sulfúreas, tão danosas;

Porém aos de Vulcano não consente

Que dêem fogo às bombardas temerosas;

Porque o generoso ânimo e valente,

Entre gentes tão poucas e medrosas,

Não mostra quanto pode, e com razão,

Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.

 

69

 

Porém disto, que o Mouro aqui notou,

E de tudo o que viu com olho atento

Um ódio certo na alma lhe ficou,

Uma vontade má de pensamento.

Nas mostras e no gesto o não mostrou;

Mas com risonho e ledo fingimento

Tratá-los brandamente determina,

Até que mostrar possa o que imagina.

 

70

 

Pilotos lhe pedia o Capitão,

Por quem pudesse à Índia ser levado;

Diz-lhe que o largo prémio levarão

Do trabalho que nisso for tomado.

Promete-lhos o Mouro, com tenção

De peito venenoso, e tão danado,

Que a morte, se pudesse, neste dia,

Em lugar de pilotos lhe daria.

 

 

71

 

Tamanho o ódio foi, e a má vontade,

Que aos estrangeiros súbito tomou,

Sabendo ser sequazes da verdade,

Que o Filho de David nos ensinou.

ó segredos daquela Eternidade,

A quem juízo algum nunca alcançou!

Que nunca falte um pérfido inimigo

Aqueles de quem foste tanto amigo!

 

72

 

Partiu-se Disto enfim coa companhia,

Das naus o falso Mouro despedido,

Com enganosa e grande cortesia,

Com gesto ledo a todos, e fingido.

Cortaram os batéis a curta via

Das águas de Neptuno, e recebido

Na terra do obsequente ajuntamento

Se foi o Mouro ao cógnito aposento.

 

73

 

Do claro assento etóreo o grão Tebano,

Que da paternal coxa foi nascido,

Olhando o ajuntamento Lusitano

Ao Mouro ser molesto e avorrecido,

No pensamento cuida um falso engano,

Com que seja de todo destruído.

E enquanto isto só na alma imaginava,

Consigo estas palavras praticava:

 

74

 

"Está do fado já determinado,

Que tamanhas vitórias, tão famosas,

Hajam os Portugueses alcançado

Das Indianas gentes belicosas.

E eu só, filho do Padre sublimado,

Com tantas qualidades generosas,

Hei de sofrer que o fado favoreça

Outrem, por quem meu nome se escureça?

 

75

 

"Já quiseram os Deuses que tivesse

O filho de Filipo nesta parte

Tanto poder, que tudo submetesse

Debaixo de seu jugo o fero Marte.

Mas há-se de sofrer que o fado desse

A tão poucos tamanho esforço e arte,

Que eu co'o grão Macedónio, e o Romano,

Demos lugar ao nome Lusitano?

 

76

 

"Não será assim, porque antes que chegado

Seja este Capitão, astutamente

Lhe será tanto engano fabricados

Que nunca veja as partes do Oriente.

Eu descerei à Terra, e o indignado

Peito revolverei da Maura gente;

Porque sempre por via irá direita

Quem do oportuno tempo se aproveita."

 

77

 

Isto dizendo, irado e quase insano,

Sobre a terra africana descendeu,

Onde vestindo a forma e gesto humano,

Para o Prasso sabido se moveu.

E por melhor tecer o astuto engano,

No gesto natural se converteu

Dum Mouro, em Moçambique conhecido

Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.

 

78

 

E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas

A sua falsidade acomodadas,

Lhe diz como eram gentes roubadoras,

Estas que ora de novo são chegadas;

Que das nações na costa moradoras

Correndo a fama veio que roubadas

Foram por estes homens que passavam,

Que com pactos de paz sempre ancoravam.

 

79

 

E sabe mais, lhe diz, como entendido

Tenho destes cristãos sanguinolentos,

Que quase todo o mar têm destruído

Com roubos, com incêndios violentos;

E trazem já de longe engano urdido

Contra nós; e que todos seus intentos

São para nos matarem e roubarem,

E mulheres e filhos cativarem.

 

80

 

"E também sei que tem determinado

De vir por água a terra muito cedo

O Capitão dos seus acompanhado,

Que da tensão danada nasce o medo.

Tu deves de ir também co'os teus armado

Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;

Porque, saindo a gente descuidada,

Cairão facilmente na cilada.

 

81

 

"E se inda não ficarem deste jeito

Destruídos, ou mortos totalmente

Eu tenho imaginado no conceito

Outra manha e ardil, que te contente:

Manda-lhe dar piloto, que de jeito

Seja astuto no engano, e tão prudente,

Que os leve aonde sejam destruídos,

Desbaratados, mortos, ou perdidos."

 

82

 

Tanto que estas palavras acabou,

O Mouro, nos tais casos sábio e velho,

Os braços pelo colo lhe lançou,

Agradecendo muito o tal conselho;

E logo nesse instante concertou

Para a guerra o belígero aparelho,

Para que ao Português se lhe tornasse

Em roxo sangue a água, que buscasse.

 

83

 

E busca mais, para o cuidado engano,

Mouro, que por piloto à nau lhe mande,

Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano,

De quem fiar-se possa um feito grande.

Diz-lhe que acompanhando o Lusitano,

Por tais costas e mares com ele ande,

Que, se daqui escapar, que lá diante

Vá cair onde nunca se alevante.

 

84

 

Já o raio Apolíneo visitava

Os montes Nabatêos acendido,

Quando o Gama, colos seus determinava

De vir por água a terra apercebido.

A gente nos batéis se concertava,

Como se fosse o engano já sabido:

Mas pode suspeitar-se facilmente,

Que o coração pressago nunca mente.

 

85

 

E mais também mandado tinha a terra,

De antes, pelo piloto necessário,

E foi-lhe respondido em som de guerra,

Caso do que cuidava mui contrário;

Por isto, e porque sabe quanto erra

Quem se crê de seu pérfido adversário,

Apercebido vai como podia,

Em três batéis somente que trazia.

 

86

 

Mas os Mouros que andavam pela praia,

Por lhe defender a água desejada,

Um de escudo embraçado e de azagaia,

Outro de arco encurvado e seta ervada,

Esperam que a guerreira gente saia,

Outros muitos já postos em cilada.

E, porque o caso leve se lhe faça,

Põem uns poucos diante por negaça,

 

87

 

Andam pela ribeira alva, arenosa,

Os belicosos Mouros acenando

Com a adarga e co'a hástia perigosa,

Os fortes Portugueses incitando.

Não sofre muito a gente generosa

Andar-lhe os cães os dentes amostrando.

Qualquer em terra salta tão ligeiro,

Que nenhum dizer pode que é primeiro.

 

88

 

Qual no corro sanguino o ledo amante,

Vendo a formosa dama desejada,

O touro busca, e pondo-se diante,

Salta, corre, sibila, acena, e brada,

Mas o animal atroce, nesse instante,

Com a fronte cornígera inclinada,

Bramando duro corre, e os olhos cerra,

Derriba, fere e mata, e põe por terra:

 

89

 

Eis nos batéis o fogo se levanta

Na furiosa e dura artilharia,

A plúmbea péla mata, o brado espanta,

Ferido o ar retumba e assovia:

O coração dos Mouros se quebranta,

O temor grande o sangue lhe resfria.

Já foge o escondido de medroso,

E morre o descoberto aventuroso.

 

90

 

Não se contenta a gente Portuguesa,

Mas seguindo a vitória estrui e mata;

A povoação, sem muro e sem defesa,

Esbombardeia, acende e desbarata.

Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,

Que bem cuidou comprá-la mais barata;

Já blasfema da guerra, e maldizia,

O velho inerte, e a mãe que o filho cria.

 

91

 

Fugindo, a seta o Mouro vai tirando

Sem força, de covarde e de apressado,

A pedra, o pau, e o canto arremessando;

Dá-lhe armas o furor desatinado.

Já a ilha e todo o mais desemparando,

A terra firme foge amedrontado;

Passa e corta do mar o estreito braço,

Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço

 

92

 

Uns vão nas almadias carregadas,

Um corta o mar a nado diligente,

Quem se afoga nas ondas encurvadas,

Quem bebe o mar, e o deita juntamente.

Arrombam as miúdas bombardadas

Os pangaios subtis da bruta gente:

Desta arte o Português enfim castiga

A vil malícia, pérfida, inimiga.

 

93

 

Tornam vitoriosos para a armada,

Co'o despojo da guerra e rica presa,

E vão a seu prazer fazer aguada,

Sem achar resistência, nem defesa.

Ficava a Maura gente magoada,

No ódio antigo mais que nunca acesa;

E vendo sem vingança tanto dano,

Somente estriba no segundo engano.

 

94

 

Pazes cometer manda arrependido

O Regedor daquela iníqua terra,

Sem ser dos Lusitanos entendido,

Que em figura de paz lhe manda guerra;

Porque o piloto falso prometido,

Que toda a má tenção no peito encerra,

Para os guiar à morte lhe mandava,

Como em sinal das pazes que tratava.

 

95

 

O Capitão, que já lhe então convinha

Tornar a seu caminho acostumado,

Que tempo concertado e ventos tinha

Para ir buscar o Indo desejado,

Recebendo o piloto, que lhe vinha,

Foi dele alegremente agasalhado;

E respondendo ao mensageiro a tento,

As velas manda dar ao largo vento.

 

96

 

Desta arte despedida a forte armada,

As ondas de Anfitrite dividia,

Das filhas de Nereu acompanhada,

Fiel, alegre e doce companhia.

O Capitão, que não caía em nada

Do enganoso ardil, que o Mouro urdia,

Dele mui largamente se informava

Da Índia toda, e costas que passava.

 

97

 

Mas o Mouro, instruído nos enganos

Que o malévolo Baco lhe ensinara,

De morte ou cativeiro novos danos,

Antes que à Índia chegue, lhe prepara:

Dando razões dos portos Indianos,

Também tudo o que pede lhe declara,

Que, havendo por verdade o que dizia,

De nada a forte gente se temia.

 

98

 

E diz-lhe mais, com o falso pensamento

Com que Sinon os Frígios enganou:

Que perto está uma ilha, cujo assento

Povo antigo cristão sempre habitou.

O Capitão, que a tudo estava a tento,

Tanto com estas novas se alegrou,

Que com dádivas grandes lhe rogava,

Que o leve à terra onde esta gente estava.

 

99

 

O mesmo o falso Mouro determina,

Que o seguro Cristão lhe manda e pede;

Que a ilha é possuída da malina

Gente que segue o torpe Mahamede.

Aqui o engano e morte lhe imagina,

Porque em poder e forças muito excede

A Moçambique esta ilha, que se chama

Quíloa, mui conhecida pela fama.

 

100

 

Para lá se inclinava a leda frota;

Mas a Deusa em Citere celebrada,

Vendo como deixava a certa rota

Por ir buscar a morte não cuidada,

Não consente que em terra tão remota

Se perca a gente dela tanto amada.

E com ventos contrários a desvia

Donde o piloto falso a leva e guia.

 

101

 

Mas o malvado Mouro, não podendo

Tal determinação levar avante,

Outra maldade iníqua cometendo,

Ainda em seu propósito constante,

Lhe diz que, pois as águas discorrendo

Os levaram por força por diante,

Que outra ilha tem perto, cuja gente

Eram Cristãos com Mouros juntamente.

 

102

 

Também nestas palavras lhe mentia,

Como por regimento enfim levava,

Que aqui gente de Cristo não havia,

Mas a que a Mahamede celebrava.

O Capitão, que em tudo o Mouro cria,

Virando as velas, a ilha demandava;

Mas, não querendo a Deusa guardadora,

Não entra pela barra, e surge fora.

 

103

 

Estava a ilha à terra tão chegada,

Que um estreito pequeno a dividia;

Uma cidade nela situada,

Que na fronte do mar aparecia,

De nobres edifícios fabricada,

Como por fora ao longe descobria,

Regida por um Rei de antiga idade:

Mombaça é o nome da ilha e da cidade.

 

104

 

E sendo a ela o Capitão chegado,

Estranhamente ledo, porque espera

De poder ver o povo batizado,

Como o falso piloto lhe dissera,

Eis vêm batéis da terra com recado

Do Rei, que já sabia a gente que era:

Que Baco muito de antes o avisara,

Na forma doutro Mouro, que tomara.

 

105

 

O recado que trazem é de amigos,

Mas debaixo o veneno vem coberto;

Que os pensamentos eram de inimigos,

Segundo foi o engano descoberto.

Ó grandes e gravíssimos perigos!

Ó caminho de vida nunca certo:

Que aonde a gente põe sua esperança,

Tenha a vida tão pouca segurança!

 

106

 

No mar tanta tormenta, e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme, e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

 

Canto II

 

1

 

Já neste tempo o lúcido Planeta,

Que as horas vai do dia distinguindo,

Chegava à desejada e lenta meta,

A luz celeste às gentes encobrindo,

E da casa marítima secreta

Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,

Quando as infidas gentes se chegaram

As naus, que pouco havia que ancoraram.

 

2

 

Dentre eles um, que traz encomendado

O mortífero engano, assim dizia:

"Capitão valeroso, que cortado

Tens de Neptuno o reino e salsa via,

O Rei que manda esta ilha, alvoroçado

Da vinda tua, tem tanta alegria,

Que não deseja mais que agasalhar-te,

Ver-te, e do necessário reformar-te.

 

3

 

"E porque está em extremo desejoso

De te ver, como cousa nomeada,

Te roga que, de nada receoso,

Entres a barra, tu com toda armada:

E porque do caminho trabalhoso

Trarás a gente débil e cansada,

Diz que na terra podes reformá-la,

Que a natureza obriga a desejá-la.

 

4

 

"E se buscando vás mercadoria

Que produze o aurífero Levante,

Canela, cravo, ardente especiaria,

Ou droga salutífera e prestante;

Ou se queres luzente pedraria,

O rubi fino, o rígido diamante,

Daqui levarás tudo tão sobejo

Com que faças o fim a teu desejo."

 

5

 

Ao mensageiro o Capitão responde

As palavras do Rei agradecendo:

E diz que, porque o Sol no mar se esconde,

Não entra para dentro, obedecendo;

Porém que, como a luz mostrar por onde

Vá sem perigo a frota, não temendo,

Cumprirá sem receio seu mandado,

Que a mais por tal senhor está obrigado.

 

6

 

Pergunta-lhe depois, se estão na terra

Cristãos, como o piloto lhe dizia;

O mensageiro astuto, que não erra,

Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.

Desta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita e cauta fantasia;

Por onde o Capitão seguramente

Se fia da infiel e falsa gente.

 

7

 

E de alguns que trazia condenados

Por culpas e por feitos vergonhosos,

Por que pudessem ser aventurados

Em casos desta sorte duvidosos,

Manda dous mais sagazes, ensaiados,

Por que notem dos Mouros enganosos

A cidade e poder, e por que vejam

Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

 

8

 

E por estes ao Rei presentes manda,

Por que a boa vontade, que mostrava,

Tenha firme, segura, limpa e branda;

A qual bem ao contrário em tudo estava.

Já a companhia pérfida e nefanda

Das naus se despedia e o mar cortava:

Foram com gestos ledos e fingidos,

Os dous da frota em terra recebidos.

 

9

 

E depois que ao Rei apresentaram,

Co'o recado, os presentes que traziam,

A cidade correram, e notaram

Muito menos daquilo que queriam;

Que os Mouros cautelosos se guardaras

De lhes mostrarem tudo o que pediam:

Que onde reina a malícia, está o receio,

Que a faz imaginar no peito alheio.

 

10

 

Mas aquele que sempre a mocidade

Tem no rosto perpétua, e foi nascido

De duas mães, que urdia a falsidade

Por ver o navegante destruído,

Estava numa casa da cidade,

Com rosto humano e hábito fingido,

Mostrando-se Cristão, e fabricava

Um altar sumptuoso, que adorava.

 

11

 

Ali tinha em retrato afigurada

Do alto e Santo Espírito a pintura:

A cândida pombinha debuxada

Sobre a única Fénix, Virgem pura;

A companhia santa está pintada

Dos doze, tão torvados na figura,

Como os que, só das línguas que caíram,

De fogo, várias línguas referiram.

 

12

 

Aqui os dous companheiros conduzidos

Onde com este engano Baco estava,

Põem em terra os giolhos, e os sentidos

Naquele Deus que o mundo governava.

Os cheiros excelentes, produzidos

Na Pancaia odorífera, queimava

O Tioneu, e assim por derradeiro

O falso Deus adora o verdadeiro.

 

13

 

Aqui foram de noite agasalhados,

Com todo o bom e honesto tratamento,

Os dous Cristãos, não vendo que enganados

Os tinha o falso e santo fingimento.

Mas assim como os raios espalhados

Do Sol foram no mundo, e num momento

Apareceu no rúbido horizonte

Da moça de Titão a roxa fronte,

 

14

 

Tornam da terra os Mouros co'o recado

Do Rei, para que entrassem, e consigo

Os dous que o Capitão tinha mandado,

A quem se o Rei mostrou sincero amigo;

E sendo o Português certificado

De não haver receio de perigo,

E que gente de Cristo em terra havia,

Dentro no salso rio entrar queria.

 

15

 

Dizem-lhe os que mandou, que em terra

Sacras aras e sacerdote sinto; viram

Que ali se agasalharam o dormiram,

Enquanto a luz cobriu o escuro manto;

E que no Rei e gentes não sentiram

Senão contentamento e gosto tanto,

Que não podia certo haver suspeita

Numa mostra tão clara e tão perfeita.

 

16

 

Com isto o nobre Gama recebia

Alegremente os Mouros que subiam;

Que levemente um ânimo se fia

De mostras, que tão certas pareciam.

A nau da gente pérfida se enchia,

Deixando a bordo os barcos que traziam.

Alegres vinham todos, porque crêm

Que a presa desejada certa têm.

 

17

 

Na terra, cautamente aparelhavam

Armas e munições que, como vissem

Que no rio os navios ancoravam,

Neles ousadamente se subissem;

E, nesta treição determinavam

Que os de Luso de todo destruíssem,

E que incautos pagassem deste jeito

O mal que em Moçambique tinham feito.

 

18

 

As âncoras tenaces vão levando

Com a náutica grita costumada;

Da proa as velas sós ao vento dando

Inclinam para a barra abalizada.

Mas a linda Ericina, que guardando

Andava sempre a gente assinalada,

Vendo a cilada grande, e tão secreta,

Voa do Céu ao mar como uma seta.

 

19

 

Convoca as alvas filhas de Nereu,

Com toda a mais cerúlea companhia,

Que, porque no salgado mar nasceu,

Das águas o poder lhe obedecia.

E propondo-lhe a causa a que desceu,

Com todas juntamente se partia,

Para estorvar que a armada não chegasse

 

20

 

Já na água erguendo vão, com grande pressa,

Com as argênteas caudas branca escuma;

Cloto eo'o peito corta e atravessa

Com mais furor o mar do que costuma.

Salta Nise, Nerine se arremessa

Por cima da água crespa, em força suma.

Abrem caminho as ondas encurvadas

De temor das Nereidas apressadas.

 

21

 

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,

Vai a linda Dione furiosa;

Não sente quem a leva o doce peso,

De soberbo com carga tão formosa.

Já chegam perto donde o vento teso

Enche as velas da frota belicosa;

Repartem-se e rodeiam nesse instante

As naus ligeiras, que iam por diante.

 

22

 

Põe-se a Deusa com outras em direito

Da proa capitaina, e ali fechando

O caminho da barra, estão de jeito,

Que em vão assopra o vento, a vela inchando.

Põem no madeiro duro o brando peito,

Para detrás a forte nau forçando;

Outras em derredor levando-a estavam,

E da barra inimiga a desviavam.

 

23

 

Quais para a cova as próvidas formigas,

Levando o peso grande acomodado,

As forças exercitam, de inimigas

Do inimigo inverno congelado;

Ali são seus trabalhos e fadigas,

Ali mostram vigor nunca esperado:

Tais andavam as Ninfas estorvando

A gente Portuguesa o fim nefando.

 

24

 

Torna para detrás a nau forçada,

Apesar dos que leva, que gritando

Mareiam velas; ferve a gente irada,

O leme a um bordo e a outro atravessando;

O mestre astuto em vão da popa brada,

Vendo como diante ameaçando

Os estava um marítimo penedo,

Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

 

25

 

A celeuma medonha se alevanta

No rudo marinheiro que trabalha;

O grande estrondo a Maura gente espanta,

Como se vissem hórrida batalha;

Não sabem a razão de fúria tanta,

Não sabem nesta pressa quem lhe valha;

Cuidam que seus enganos são sabidos,

E que hão de ser por isso aqui punidos.

 

26

 

Ei-los subitamente se lançavam

A seus batéis velozes que traziam;

Outros em cima o mar alevantavam,

Saltando n'água, a nado se acolhiam;

De um bordo e doutro súbito saltavam,

Que o medo os compelia do que viam;

Que antes querem ao mar aventurar-se

Que nas mãos inimigas entregar-se.

 

27

 

Assim como em selvática alagoa

As rãs, no tempo antigo Lícia gente,

Se sentem por ventura vir pessoa,

Estando fora da água incautamente,

Daqui e dali saltando, o charco soa,

Por fugir do perigo que se sente,

E acolhendo-se ao couto que conhecem,

Sós as cabeças na água lhe aparecem:

 

28

 

Assim fogem os Mouros; e o piloto,

Que ao perigo grande as naus guiara,

Crendo que seu engano estava noto,

Também foge, saltando na água amara.

Mas, por não darem no penedo imoto,

Onde percam a vida doce e cara,

A âncora solta logo a capitaina,

Qualquer das outras junto dela amaina.

 

29

 

Vendo o Gama, atentado, a estranheza

Dos Mouros, não cuidada, e juntamente

O piloto fugir-lhe com presteza,

Entende o que ordenava a bruta gente;

E vendo, sem contraste e sem braveza

Dos ventos, ou das águas sem corrente,

Que a nau passar avante não podia,

Havendo-o por milagre, assim dizia:

 

30

 

"Ó caso grande, estranho e não cuidado,

Ó milagre claríssimo e evidente,

Ó descoberto engano inopinado,

Ó pérfida, inimiga e falsa gente!

Quem poderá do mal aparelhado

Livrar-se sem perigo sabiamente,

Se lá de cima a Guarda soberana

Não acudir à fraca força humana?

 

31

 

"Bem nos mostra a divina Providência

Destes portos a pouca segurança;

Bem claro temos visto na aparência,

Que era enganada a nossa confiança.

Mas pois saber humano nem prudência

Enganos tão fingidos não alcança,

Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado

De quem sem ti não pode ser guardado!

 

32

 

"E se te move tanto a piedade

Desta mísera gente peregrina,

Que só por tua altíssima bondade,

Da gente a salvas pérfida e malina,

Nalgum porto seguro de verdade

Conduzir-nos já agora determina,

Ou nos amostra a terra que buscamos,

Pois só por teu serviço navegamos."

 

33

 

Ouviu-lhe essas palavras piedosas

A formosa Dione, e comovida,

Dentre as Ninfas se vai, que saudosas

Ficaram desta súbita partida.

Já penetra as Estrelas luminosas,

Já na terceira Esfera recebida

Avante passa, e lá no sexto Céu,

Para onde estava o Padre, se moveu.

 

34

 

E como ia afrontada do caminho,

Tão formosa no gesto se mostrava,

Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho,

E tudo quanto a via namorava.

Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,

Uns espíritos vivos inspirava,

Com que os Pólos gelados acendia,

E tornava do Fogo a esfera fria.

 

35

 

E por mais namorar o soberano

Padre, de quem foi sempre amada e eriça,

Se lhe apresenta assim como ao Troiano,

Na selva Idea, já se apresentara.

Se a vira o caçador, que o vulto humano

Perdeu, vendo Diana na água clara,

Nunca os famintos galgos o mataram,

Que primeiro desejos o acabaram.

 

36

 

Os crespos fios d'ouro se esparziam

Pelo colo, que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem Amor brincava, e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Menino as almas acendia;

Pelas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

 

37

 

C'um delgado sendal as partes cobre,

De quem vergonha é natural reparo,

Porém nem tudo esconde, nem descobre,

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, para que o desejo acenda o dobre,

Lhe põe diante aquele objeto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

 

38

 

E mostrando no angélico semblante

Co'o riso uma tristeza misturada,

Como dama que foi do incauto amante

Em brincos amorosos mal tratada,

Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,

E se torna entre alegre magoada,

Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,

Mais mimosa que triste ao Padre fala:

 

39

 

"Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

Que, para as cousas que eu do peito amasse,

Te achasse brando, afábil e amoroso,

Posto que a algum contrário lhe pesasse;

Mas, pois que contra mim te vejo iroso,

Sem que to merecesse, nem te errasse,

Faça-se como Baco determina;

Assentarei enfim que fui mofina.

 

40

 

"Este povo que é meu, por quem derramo

As lágrimas que em vão caídas vejo,

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,

Sendo tu tanto contra meu desejo!

Por ele a ti rogando choro e bramo,

E contra minha dita enfim pelejo.

Ora pois, porque o amo é mal tratado,

Quero-lhe querer mal, será guardado.

 

41

 

"Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,

Que pois eu fui..." E nisto, de mimosa,

O rosto banha em lágrimas ardentes,

Como co'o orvalho fica a fresca rosa.

Calada um pouco, como se entre os dentes

Se lhe impedira a fala piedosa,

Torna a segui-la; e indo por diante,

Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

 

42

 

E destas brandas mostras comovido,

Que moveram de um tigre o peito duro,

Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,

Torna sereno e claro o ar escuro,

As lágrimas lhe alimpa, e acendido

Na face a beija, e abraça o colo puro;

De modo que dali, se só se achara,

Outro novo Cupido se gerara.

 

43

 

E co'o seu apertando o rosto amado,

Que os soluços e lágrimas aumenta,

Como menino da ama castigado,

Que quem no afaga o choro lhe acrescente,

Por lhe pôr em sossego o peito irado,

Muitos casos futuros lhe apresenta.

Dos fados as entranhas revolvendo,

Desta maneira enfim lhe está dizendo:

 

44

 

"Formosa filha minha, não temais

Perigo algum nos vossos Lusitanos,

Nem que ninguém comigo possa mais,

Que esses chorosos olhos soberanos;

Que eu vos prometo, filha, que vejais

Esquecerem-se Gregos e Romanos,

Pelos ilustres feitos que esta gente

Há-de fazer nas partes do Oriente.

 

45

 

"Que se o facundo Ulisses escapou

De ser na Ogígia ilha eterno escravo,

E se Antenor os seios penetrou

Ilíricos e a fonte de Timavo;

E se o piedoso Eneias navegou

De Cila e de Caríbdis o mar bravo,

Os vossos, mores cousas atentando,

Novos mundos ao mundo irão mostrando.

 

46

 

"Fortalezas, cidades e altos muros,

Por eles vereis, filha, edificados;

Os Turcos belacíssimos e duros,

Deles sempre vereis desbaratados.

Os Reis da índia, livres e seguros,

Vereis ao Rei potente sojugados;

E por eles, de tudo enfim senhores,

Serão dadas na terra leis melhores.

 

47

 

"Vereis este, que agora pressuroso

Por tantos medos o Indo vai buscando,

Tremer dele Neptuno, de medroso

Sem vento suas águas encrespando.

Ó caso nunca visto e milagroso,

Que trema e ferva o mar, em calma estando!

Ó gente forte e de altos pensamentos,

Que também dela hão medo os Elementos!

 

48

 

"Vereis a terra, que a água lhe tolhia,

Que inda há-de ser um porto mui decente,

Em que vão descansar da longa via

As naus que navegarem do Ocidente.

Toda esta costa enfim, que agora urdia

O mortífero engano, obediente

Lhe pagará tributos, conhecendo

Não poder resistir ao Luso horrendo.

 

49

 

"E vereis o mar Roxo, tão famoso,

Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;

Vereis de Ormuz o Reino poderoso

Duas vezes tomado e sojugado.

Ali vereis o Mouro furioso

De suas mesmas setas traspassado:

Que quem vai contra os vossos, claro veja

Que, se resiste, contra si peleja.

 

50

 

"Vereis a inexpugnábil Dio forte,

Que dous cercos terá, dos vossos sendo.

Ali se mostrará seu preço e sorte,

Feitos de armas grandíssimos fazendo.

Invejoso vereis o grão Mavorte

Do peito Lusitano fero e horrendo:

Do Mouro ali verão que a voz extrema

Do falso Mahamede ao Céu blasfema.

 

51

 

"Goa vereis aos Mouros ser tomada,

A qual virá depois a ser senhora

De todo o Oriente, e sublimada

Co'os triunfos da gente vencedora.

Ali soberba, altiva, e exalçada,

Ao Gentio, que os ídolos adora,

Duro freio porá, e a toda a terra

Que cuidar de fazer aos vossos guerra.

 

52

 

"Vereis a fortaleza sustentar-se

De Cananor, com pouca força e gente;

E vereis Calecu desbaratar-se,

Cidade populosa e tão potente:

E vereis em Cochim assinalar-se

Tanto um peito soberbo e insolente,

Que cítara jamais cantou vitória,

Que assim mereça eterno nome e glória.

 

53

 

"Nunca com Marte instructo e furioso,

Se viu ferver Leucate, quando Augusto

Nas civis Actias guerras animoso,

O Capitão venceu Romano injusto,

Que dos povos da Aurora, e do famoso

Nilo, e do Bactra Cítico e robusto

A vitória trazia, e presa rica,

Preso na Egípcia linda e nego pudica.

 

54

 

Como vereis o mar fervendo aceso

Colos incêndios dos vossos pelejando,

Levando o Idololatra, e o Mouro preso,

De nações diferentes triunfando.

E sujeita a rica Áurea Quersoneso,

Até ao longínquo China navegando,

E as ilhas mais remotas do Oriente,

Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

 

55

 

"De modo, filha minha, que de jeito

Amostrarão esforço mais que humano,

Que nunca se verá tão forte peito,

Do Gangético mar ao Gaditano,

Nem das Boreais ondas ao Estreito,

Que mostrou o agravado Lusitano,

Posto que em todo o mundo, de afrontados,

Ressuscitassem todos os passados."

 

56

 

Como isto disse, manda o consagrado

Filho de Maia à Terra, por que tenha

Um pacífico porto o sossegado,

Para onde sem receio a frota venha;

F, para que em Mombaça, aventurado,

O forte Capitão se não detenha,

Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostra

A terra, onde quieto repousasse.

 

57

 

Já pelo ar o Cileneu voava;

Com as asas nos pés à Terra desce;

Sua vara fatal na mão levava,

Com que os olhos cansados adormece:

Com esta, as tristes almas revocava

Do Inferno, e o vento lhe obedece.

Na cabeça o galero costumado.

E desta arte a Melinde foi chegado.

 

58

 

Consigo a Fama leva, por que diga

Do Lusitano o preço grande e raro,

Que o nome ilustre a um certo amor obriga

E faz, a quem o tem, amado e caro.

Desta arte vai fazendo a gente amiga,

Co rumor famosíssimo, e perclaro.

Já Melinde em desejos arde todo

De ver da gente forte o gesto e modo.

 

59

 

Dali para Mombaça logo parte,

Aonde as naus estavam temerosas,

Para que à gente mande que se aparte

Da barra amiga e terras suspeitosas:

Porque mui pouco val esforço e arte,

Contra infernais vontades enganosas;

Pouco val coração, astúcia e siso,

Se lá dos Céus não vem celeste aviso.

 

60

 

No feio caminho a noite tinha anelado,

E, as estrelas no Céu, coa luz alhea,

Tinham o largo Mundo alumiado;

E só co'o sono a gente se recreia.

O Capitão ilustre, já cansado

De vigiar a noite que arreceia,

Breve repouso então aos olhos dava,

A outra gente a quartos vigiava;

 

61

 

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,

Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano,

Da cilada que o Rei malvado tece,

Por te trazer ao fim, e extremo dano;

Fuge, que o vento, e o Céu te favorece;

Sereno o tempo tens e o Oceano,

E outro Rei mais amigo, noutra parte,

Onde podes seguro agasalhar-te.

 

62

 

"Não tens aqui senão aparelhado

O hospício que o cru Diomedes dava,

Fazendo ser manjar acostumado

De cavalos a gente que hospedava;

As aras de Busíris infamado,

Onde os hóspedes tristes imolava,

Terás certas aqui, se muito esperas.

Fuge das gentes pérfidas e feras.

 

63

 

"Vai-te ao longo da costa discorrendo,

E outra terra acharás de mais verdade,

Lá quase junto donde o Sol ardendo

Iguala o dia e noite em quantidade;

Ali tua frota alegre recebendo

Um Rei, com muitas obras de amizade,,

Gasalhado seguro te daria,

E, para a índia, certa e sábia guia."

 

64

 

Isto Mercúrio disse, e o sono leva

Ao Capitão, que com mui grande espanto

Acorda, e vê ferida a escura treva

De uma súbita luz e raio santo.

E vendo claro quanto lhe releva

Não se deter na terra iníqua tanto,

Com novo espírito ao mestre seu mandava

Que as velas desse ao vento que assopravam.

 

65

 

"Dai velas, disse, dai ao largo vento,

Que o Céu nos favorece e Deus o manda;

Que um mensageiro vi do claro assento

Que só em favor de nossos passos anda."

Alevanta-se nisto o movimento

Dos marinheiros, de uma e de outra banda;

Levam gritando as âncoras acima,

Mostrando a ruda força, que se estima.

 

66

 

Neste tempo, que as âncoras levavam,

Na sombra escura os Mouros escondidos

Mansamente as amarras lhe cortavam,

Por serem, dando à costa, destruídos;

Mas com vista de linces vigiavam

Os Portugueses, sempre apercebidos.

Eles, como acordados os sentiram,

Voando, e não remando, lhe fugiram.

 

67

 

Mas já as agudas proas apartando

Iam as vias húmidas de argento;

Assopra-lhe galerno o vento, e brando,

Com suave e seguro movimento.

Nos perigos passados vão falando,

Que mal se perderão do pensamento

Os casos grandes, donde em tanto aperto

A vida em salvo escapa por acerto.

 

68

 

Tinha uma volta dado o Sol ardente

E noutro começava, quando viram

Ao longe deus navios, brandamente

Co'os ventos navegando, que respiram:

Porque haviam de ser da Maura gente,

Para eles arribando, as velas viram:

Um, de temor do mal que arreceava,

Por se salvar a gente à costa dava.

 

69

 

Não é o outro que fica tão manhoso;

Mas nas mãos vai cair do Lusitano,

Sem o rigor de Marte furioso,

E sem a fúria horrenda de Vulcano;

Que como fosse débil e medroso

Da pouca gente o fraco peito humano,

Não teve resistência; e se a tivera,

Mais dano resistindo recebera.

 

70

 

E como o Gama muito desejasse

Piloto para a Índia que buscava,

Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;

Mas não lhe sucedeu como cuidava,

Que nenhum deles há que lhe ensinasse

A que parte dos céus a Índia estava;

Porém dizem-lhe todos, que tem perto

Melinde, onde achará piloto certo.

 

71

 

Louvam do Rei os Mouros a bondade,

Condição liberal, sincero peito,

Magnificência grande e humanidade,

Com partes de grandíssimo respeito.

O Capitão o assela por verdade,

Porque já lhe dissera, deste jeito,

Cileneu em sonhos; e partia

Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

 

72

 

Era no tempo alegre, quando entrava

No roubador de Europa a luz Febeia,

Quando um e outro corno lhe aquentava,

E Flora derramava o de Amalteia:

A memória do dia renovava

O pressuroso Sol, que o Céu rodeia,

Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,

O selo pôs a quanto tinha feito;

 

73

 

Quando chegava a frota àquela parte,

Onde o Reino Melinde já se via,

De toldos adornada, e leda de arte

Que bem mostra estimar o santo dia.

Treme a bandeira, voa o estandarte,

A cor purpúrea ao longe aparecia;

Soam os atambores o pandeiros,

E assim entravam ledos e guerreiros.

 

74

 

Enche-se toda a praia Melindana

Da gente que vem ver a leda armada,

Gente mais verdadeira, e mais humana,

Que toda a doutra terra atrás deixada.

Surge diante a frota Lusitana,

Pega no fundo a âncora pesada;

Mandam fora um dos Mouros que tomaram,

Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

 

75

 

O Rei, que já sabia da nobreza

Que tanto os Portugueses engrandece,

Tomarem o seu porto tanto preza,

Quanto a gente fortíssima merece:

E com verdadeiro ânimo e pureza,

Que os peitos generosos enobrece,

Lhe manda rogar muito que saíssem,

Para que de seus reinos se servissem.

 

76

 

São oferecimentos verdadeiros,

E palavras sinceras, não dobradas,

As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,

Que tanto mar e terras tem passadas.

Manda-lhe mais lanígeros carneiros,

E galinhas domésticas cevadas,

Com as frutas, que então na terra havia;

E a vontade à dádiva excedia.

 

77

 

Recebe o Capitão alegremente

O mensageiro ledo e seu recado;

E logo manda ao Rei outro presente,

Que de longe trazia aparelhado:

Escarlata purpúrea, cor ardente,

O ramoso coral, fino e prezado,

Que debaixo das águas mole cresce,

E como é fora delas se endurece.

 

78

 

Manda mais um, na prática elegante,

Que co'o Rei nobre as pazes concertasse,

E que de não sair naquele instante

De suas naus em terra o desculpasse.

Partido assim o embaixador prestante,

Como na terra ao Rei se apresentasse,

Com estilo que Palas lhe ensinava,

Estas palavras tais falando orava:

 

79

 

"Sublime Rei, a quem do Olimpo puro

Foi da suma Justiça concedido

Refrear o soberbo povo duro,

Não menos dele amado, que temido:

Como porto mui forte e mui seguro,

De todo o Oriente conhecido,

Te vimos a buscar, para que achemos

Em ti o remédio certo que queremos.

 

80

 

"Não somos roubadores, que passando

Pelas fracas cidades descuidadas,

A ferro e a fogo as gentes vão matando,

Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;

Mas da soberba Europa navegando,

Imos buscando as terras apartadas

Da Índia grande e rica, por mandado

De um Rei que temos, alto e sublimado.

 

81

 

"Que geração tão dura há hi de gente,

Que bárbaro costume e usança feia,

Que não vedem os portos tão somente,

Mas inda o hospício da deserta areia?

Que má tenção, que peito em nós se sente,

Que de tão pouca gente se arreceia?

Que com laços armados, tão fingidos,

Nos ordenassem ver-nos destruídos?

 

82

 

"Mas tu, e quem mui certo confiamos

Achar-se mais verdade, ó Rei benigno,

E aquela certa ajuda em ti esperamos,

Que teve o perdido Ítaco em Alcino,

A teu porto seguro navegamos,

Conduzidos do intérprete divino;

Que, pois a ti nos manda, está mui claro,

Que és de peito sincero, humano e raro.

 

83

 

"E não cuides, ó Rei, que não saísse

O nosso Capitão esclarecido

A ver-te, ou a servir-te, porque visse

Ou suspeitasse em ti peito fingido:

Mas saberás que o fez, porque cumprisse

O regimento, em tudo obedecido,

De seu Rei, que lhe manda que não saia,

Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

 

84

 

"E porque é, de vassalos o exercício,

Que os membros tem regidos da cabeça,

Não quererás, pois tens de Rei o ofício,

Que ninguém a seu Rei desobedeça;

Mas as mercês e o grande benefício,

Que ora acha em ti, promete que conheça

Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,

Enquanto os rios para o mar correrem."

 

85

 

Assim dizia; e todos juntamente,

Uns com outros em prática falando,

Louvavam muito o estâmago da gente,

Que tantos céus e mares vai passando.

E o Rei ilustre, o peito obediente

Dos Portugueses na alma imaginando,

Tinha por valor grande e mui subido

O do Rei que é tão longe obedecido.

 

86

 

E com risonha vista e ledo aspeito,

Responde ao embaixador, que tanto estima:

"Toda a suspeita má tirai do peito,

Nenhum frio temor em vós se imprima;

Que vosso preço e obras são de jeito

Para vos ter o mundo em muita estima;

E quem vos fez molesto tratamento,

Não pode ter subido pensamento.

 

87

 

"De não sair em terra toda a gente,

Por observar a usada preminência,

Ainda que me pese estranhamente,

Em muito tenho a muita obediência;

Mas, se lho o regimento não consente,

Nem eu consentirei que a excelência

De peitos tão leais em si desfaça,

Só porque a meu desejo satisfaça.

 

88

 

"Porém, como a luz crástina chegada

Ao mundo for, em minhas almadias

Eu irei visitar a forte armada,

Que ver tanto desejo, há tantos dias;

E se vier do mar desbaratada,

Do furioso vento e longas vias,

Aqui terá, de limpos pensamentos,

Piloto, munições e mantimentos."

 

89

 

Isto disse; e nas águas se escondia

O filho de Latona; e o mensageiro

Coa embaixada alegre se partia

Para a frota, no seu batel ligeiro.

Enchem-se os peitos todos de alegria.

Por terem o remédio verdadeiro

Para acharem a terra que buscavam;

E assim ledos a noite festejavam.

 

90

 

Não faltam ali os raios de artifício,

Os trêmulos cometas imitando;

Fazem os bombardeiros seu ofício,

O céu, a terra e as ondas atroando.

Mostra-se dos Ciclopas o exercício

Nas bombas que de fogo estão queimando;

Outros com vozes, com que o céu feriam,

Instrumentos altíssonos tangiam.

 

91

 

Respondem-lhe da terra juntamente,

Co'o raio volteando, com zunido;

Anda em giros no ar a roda ardente,

Estoura o pó sulfúreo escondido.

A grita se alevanta ao céu, da gente;

O mar se via em fogos acendido,

E não menos a terra; e assim festeja

Um ao outro, a maneira de peleja.

 

92

 

Mas já o Céu inquieto revolvendo,

As gentes incitava a seu trabalho,

E já a mãe de Menon a luz trazendo,

Ao sono longo punha certo atalho;

Iam-se as sombras lentas desfazendo,

Sobre as flores da terra em frio orvalho,

Quando o Rei Melindano se embarcava

A ver a frota, que no mar estava.

 

93

 

Viam-se em derredor ferver as praias

Da gente, que a ver só concorre leda;

Luzem da fina púrpura as cabaias,

Lustram os panos da tecida seda;

Em lugar das guerreiras azagaias

E do arco, que os cornos arremeda

Da Lua, trazem ramos de palmeira,

Dos que vencem, coroa verdadeira.

 

94

 

Um batel grande e largo, que toldado

Vinha de sedas de diversas cores,

Traz o Rei de Melinde, acompanhado

De nobres e seu Reino e de senhores:

Vem de ricos vestidos adornado,

Segundo seus costumes e primores;

Na cabeça uma fota guarnecida

De ouro, e de seda e de algodão tecida.

 

95

 

Cabaia de Damasco rico e dino,

Da Tíria cor, entre eles estimada,

Um colar ao pescoço, de ouro fino,

Onde a matéria da obra é superada,

C'um resplendor reluze adamantino;

Na cinta, a rica bem lavrada;

Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,

Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.

 

96

 

Com um redondo emparo alto de seda,

Numa alta e dourada hástia enxerido,

Um ministro à solar quentura veda.

Que não ofenda e queime o Rei subido.

Música traz na proa, estranha e leda,

De áspero som, horríssono ao ouvido,

De trombetas arcadas em redondo,

Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.

 

97

 

Não menos guarnecido o Lusitano

Nos seus batéis, da frota se partia

A receber no mar o Melindano,

Com lustrosa e lograda companhia.

Vestido o Gama vem ao modo Hispano,

Mas Francesa era a roupa que vestia,

De cetim da Adriática Veneza

Carmesi, cor que a gente tanto preza:

 

98

 

De botões douro as mangas vêm tomadas,

Onde o Sol reluzindo a vista cega;

As calças soldadescas recamadas

Do metal, que Fortuna a tantos nega,

E com pontas do mesmo delicadas

Os golpes do gibão ajunta e achega;

Ao Itálico modo a áurea espada;

Pluma na gorra, um pouco declinada.

 

99

 

Nos de sua companhia se mostrava

Da tinta, que dá o múrice excelente,

A vária cor, que os olhos alegrava,

E a maneira do trajo diferente.

Tal o formoso esmalte se notava

Dos vestidos, olhados juntamente,

Qual aparece o arco rutilante

Da bela Ninfa, filha de Taumante.

 

100

 

Sonorosas trombetas incitavam

Os ânimos alegres, ressoando;

Dos Mouros os batéis, o mar coalhavam,

Os toldos pelas águas arrojando;

As bombardas horríssonas bramavam,

Com as nuvens de fumo o Sol tomando;

Amiúdam-se os brados acendidos,

Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.

 

101

 

Já no batel entrou do Capitão

O Rei, que nos seus braços o levava;

Ele coa cortesia, que a razão

(Por ser Rei) requeria, lhe falava.

C'umas mostras de espanto e admiração,

O Mouro o gesto e o modo lhe notava,

Como quem em mui grande estima tinha

Gente que de tão longe à índia vinha.

 

102

 

E com grandes palavras lhe oferece

Tudo o que de seus Reinos lhe cumprisse,

E que, se mantimento lhe falece,

Como se próprio fosse, lho pedisse.

Diz-lhe mais, que por fama bem conhece

A gente Lusitana, sem que a visse;

Que já ouviu dizer, que noutra terra

Com gente de sua Lei tivesse guerra.

 

103

 

E como por toda África se soa,

Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,

Quando nela ganharam a coroa

Do Reino, onde as Hespéridas viveram;

E com muitas palavras apregoa

O menos que os de Luso mereceram,

E o mais que pela fama o Rei sabia.

Mas desta sorte o Gama respondia:

 

104

 

"Ó tu, que só tiveste piedade,

Rei benigno, da gente Lusitana,

Que com tanta miséria e adversidade

Dos mares experimenta a fúria insana;

Aquela alta e divina Eternidade,

Que o Céu revolve e rege a gente humana,

Pois que de ti tais obras recebemos,

Te pague o que nós outros não podemos.

 

105

 

"Tu só, de todos quantos queima Apolo,

Nos recebes em paz, cio mar profundo;

Em ti dos ventos hórridos de Eolo

Refúgio achamos bom, fido e jocundo.

Enquanto apascentar o largo Pólo

As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,

Onde quer que eu viver, com fama e glória

Viverão teus louvores em memória."

 

106

 

Isto dizendo, os barcos vão remando

Para a frota, que o Mouro ver deseja;

Vão as naus uma e uma rodeando,

Porque de todas tudo note e veja.

Mas para o céu Vulcano fuzilando,

A frota coas bombardas o festeja,

E as trombetas canoras lhe tangiam;

Co'os anafis os Mouros respondiam.

 

107

 

Mas depois de ser tudo já notado

Do generoso Mouro, que pasmava

Ouvindo o instrumento inusitado,

Que tamanho terror em si mostrava,

Mandava estar quieto e ancorado

N'água o batel ligeiro que os levava,

Por falar de vagar co'o forte Gama,

Nas cousas de que tem notícia e faina.

 

108

 

Em práticas o Mouro diferentes

Se deleitava, perguntando agora

Pelas guerras famosas e excelentes

Co'o povo havidas, que a Mafoma adora;

Agora lhe pergunta pelas gentes

De toda a Hespéria última, onde mora;

Agora pelos povos seus vizinhos,

Agora pelos úmidos caminhos.

 

109

 

"Mas antes, valeroso Capitão,

Nos conta, lhe dizia, diligente,

Da terra tua o clima, e região

Do mundo onde morais distintamente;

E assim de vossa antiga geração,

E o princípio do Reino tão potente,

Co'os sucessos das guerras do começo,

Que, sem sabê-las, sei que são de preço.

 

110

 

"E assim também nos conta dos rodeios

Longos, em que te traz o mar irado,

Vendo os costumes bárbaros alheios.

Que a nossa África ruda tem criado.

Conta: que agora vêm co'os áureos freios

Os cavalos que o carro marchetado

Do novo Sol, da fria Aurora trazem,

O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

 

111

 

"E não menos co'o tempo se parece

O desejo de ouvir-te o que contares;

Que quem há, que por fama não conhece

As obras Portuguesas singulares?

Não tanto desviado resplandece

De nós o claro Sol, para julgares

Que os Melindanos têm tão rudo peito,

Que não estimem muito um grande feito.

 

112

 

"Cometeram soberbos os Gigantes,

Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;

Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes,

O Reino de Plutão horrendo e escuro.

Se houve feitos no mundo tão possantes,

Não menos é trabalho ilustre e duro,

Quanto foi cometer Inferno o Céu,

Que outrem cometa a fúria de Nereu.

 

113

 

"Queimou o sagrado templo de Diana,

Do subtil Tesifónio fabricado,

Heróstrato, por ser da gente humana

Conhecido no mundo e nomeado:

Se também com tais obras nos engana

O desejo de um nome avantajado,

Mais razão há que queira eterna glória

Quem faz obras tão dignas de memória."

Canto III

 

1

 

Já neste tempo o lúcido Planeta,

Que as horas vai do dia distinguindo,

Chegava à desejada e lenta meta,

A luz celeste às gentes encobrindo,

E da casa marítima secreta

Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,

Quando as infidas gentes se chegaram

As naus, que pouco havia que ancoraram.

 

2

 

Dentre eles um, que traz encomendado

O mortífero engano, assim dizia:

"Capitão valeroso, que cortado

Tens de Neptuno o reino e salsa via,

O Rei que manda esta ilha, alvoroçado

Da vinda tua, tem tanta alegria,

Que não deseja mais que agasalhar-te,

Ver-te, e do necessário reformar-te.

 

3

 

"E porque está em extremo desejoso

De te ver, como cousa nomeada,

Te roga que, de nada receoso,

Entres a barra, tu com toda armada:

E porque do caminho trabalhoso

Trarás a gente débil e cansada,

Diz que na terra podes reformá-la,

Que a natureza obriga a desejá-la.

 

4

 

"E se buscando vás mercadoria

Que produze o aurífero Levante,

Canela, cravo, ardente especiaria,

Ou droga salutífera e prestante;

Ou se queres luzente pedraria,

O rubi fino, o rígido diamante,

Daqui levarás tudo tão sobejo

Com que faças o fim a teu desejo."

 

5

 

Ao mensageiro o Capitão responde

As palavras do Rei agradecendo:

E diz que, porque o Sol no mar se esconde,

Não entra para dentro, obedecendo;

Porém que, como a luz mostrar por onde

Vá sem perigo a frota, não temendo,

Cumprirá sem receio seu mandado,

Que a mais por tal senhor está obrigado.

 

6

 

Pergunta-lhe depois, se estão na terra

Cristãos, como o piloto lhe dizia;

O mensageiro astuto, que não erra,

Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.

Desta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita e cauta fantasia;

Por onde o Capitão seguramente

Se fia da infiel e falsa gente.

 

7

 

E de alguns que trazia condenados

Por culpas e por feitos vergonhosos,

Por que pudessem ser aventurados

Em casos desta sorte duvidosos,

Manda dous mais sagazes, ensaiados,

Por que notem dos Mouros enganosos

A cidade e poder, e por que vejam

Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

 

8

 

E por estes ao Rei presentes manda,

Por que a boa vontade, que mostrava,

Tenha firme, segura, limpa e branda;

A qual bem ao contrário em tudo estava.

Já a companhia pérfida e nefanda

Das naus se despedia e o mar cortava:

Foram com gestos ledos e fingidos,

Os dous da frota em terra recebidos.

 

9

 

E depois que ao Rei apresentaram,

Co'o recado, os presentes que traziam,

A cidade correram, e notaram

Muito menos daquilo que queriam;

Que os Mouros cautelosos se guardaras

De lhes mostrarem tudo o que pediam:

Que onde reina a malícia, está o receio,

Que a faz imaginar no peito alheio.

 

10

 

Mas aquele que sempre a mocidade

Tem no rosto perpétua, e foi nascido

De duas mães, que urdia a falsidade

Por ver o navegante destruído,

Estava numa casa da cidade,

Com rosto humano e hábito fingido,

Mostrando-se Cristão, e fabricava

Um altar sumptuoso, que adorava.

 

11

 

Ali tinha em retrato afigurada

Do alto e Santo Espírito a pintura:

A cândida pombinha debuxada

Sobre a única Fénix, Virgem pura;

A companhia santa está pintada

Dos doze, tão torvados na figura,

Como os que, só das línguas que caíram,

De fogo, várias línguas referiram.

 

12

 

Aqui os dous companheiros conduzidos

Onde com este engano Baco estava,

Põem em terra os giolhos, e os sentidos

Naquele Deus que o mundo governava.

Os cheiros excelentes, produzidos

Na Pancaia odorífera, queimava

O Tioneu, e assim por derradeiro

O falso Deus adora o verdadeiro.

 

13

 

Aqui foram de noite agasalhados,

Com todo o bom e honesto tratamento,

Os dous Cristãos, não vendo que enganados

Os tinha o falso e santo fingimento.

Mas assim como os raios espalhados

Do Sol foram no mundo, e num momento

Apareceu no rúbido horizonte

Da moça de Titão a roxa fronte,

 

14

 

Tornam da terra os Mouros co'o recado

Do Rei, para que entrassem, e consigo

Os dous que o Capitão tinha mandado,

A quem se o Rei mostrou sincero amigo;

E sendo o Português certificado

De não haver receio de perigo,

E que gente de Cristo em terra havia,

Dentro no salso rio entrar queria.

 

15

 

Dizem-lhe os que mandou, que em terra

Sacras aras e sacerdote sinto; viram

Que ali se agasalharam o dormiram,

Enquanto a luz cobriu o escuro manto;

E que no Rei e gentes não sentiram

Senão contentamento e gosto tanto,

Que não podia certo haver suspeita

Numa mostra tão clara e tão perfeita.

 

16

 

Com isto o nobre Gama recebia

Alegremente os Mouros que subiam;

Que levemente um ânimo se fia

De mostras, que tão certas pareciam.

A nau da gente pérfida se enchia,

Deixando a bordo os barcos que traziam.

Alegres vinham todos, porque crêm

Que a presa desejada certa têm.

 

17

 

Na terra, cautamente aparelhavam

Armas e munições que, como vissem

Que no rio os navios ancoravam,

Neles ousadamente se subissem;

E, nesta treição determinavam

Que os de Luso de todo destruíssem,

E que incautos pagassem deste jeito

O mal que em Moçambique tinham feito.

 

18

 

As âncoras tenaces vão levando

Com a náutica grita costumada;

Da proa as velas sós ao vento dando

Inclinam para a barra abalizada.

Mas a linda Ericina, que guardando

Andava sempre a gente assinalada,

Vendo a cilada grande, e tão secreta,

Voa do Céu ao mar como uma seta.

 

19

 

Convoca as alvas filhas de Nereu,

Com toda a mais cerúlea companhia,

Que, porque no salgado mar nasceu,

Das águas o poder lhe obedecia.

E propondo-lhe a causa a que desceu,

Com todas juntamente se partia,

Para estorvar que a armada não chegasse

 

20

 

Já na água erguendo vão, com grande pressa,

Com as argênteas caudas branca escuma;

Cloto eo'o peito corta e atravessa

Com mais furor o mar do que costuma.

Salta Nise, Nerine se arremessa

Por cima da água crespa, em força suma.

Abrem caminho as ondas encurvadas

De temor das Nereidas apressadas.

 

21

 

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,

Vai a linda Dione furiosa;

Não sente quem a leva o doce peso,

De soberbo com carga tão formosa.

Já chegam perto donde o vento teso

Enche as velas da frota belicosa;

Repartem-se e rodeiam nesse instante

As naus ligeiras, que iam por diante.

 

22

 

Põe-se a Deusa com outras em direito

Da proa capitaina, e ali fechando

O caminho da barra, estão de jeito,

Que em vão assopra o vento, a vela inchando.

Põem no madeiro duro o brando peito,

Para detrás a forte nau forçando;

Outras em derredor levando-a estavam,

E da barra inimiga a desviavam.

 

23

 

Quais para a cova as próvidas formigas,

Levando o peso grande acomodado,

As forças exercitam, de inimigas

Do inimigo inverno congelado;

Ali são seus trabalhos e fadigas,

Ali mostram vigor nunca esperado:

Tais andavam as Ninfas estorvando

A gente Portuguesa o fim nefando.

 

24

 

Torna para detrás a nau forçada,

Apesar dos que leva, que gritando

Mareiam velas; ferve a gente irada,

O leme a um bordo e a outro atravessando;

O mestre astuto em vão da popa brada,

Vendo como diante ameaçando

Os estava um marítimo penedo,

Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

 

25

 

A celeuma medonha se alevanta

No rudo marinheiro que trabalha;

O grande estrondo a Maura gente espanta,

Como se vissem hórrida batalha;

Não sabem a razão de fúria tanta,

Não sabem nesta pressa quem lhe valha;

Cuidam que seus enganos são sabidos,

E que hão de ser por isso aqui punidos.

 

26

 

Ei-los subitamente se lançavam

A seus batéis velozes que traziam;

Outros em cima o mar alevantavam,

Saltando n'água, a nado se acolhiam;

De um bordo e doutro súbito saltavam,

Que o medo os compelia do que viam;

Que antes querem ao mar aventurar-se

Que nas mãos inimigas entregar-se.

 

27

 

Assim como em selvática alagoa

As rãs, no tempo antigo Lícia gente,

Se sentem por ventura vir pessoa,

Estando fora da água incautamente,

Daqui e dali saltando, o charco soa,

Por fugir do perigo que se sente,

E acolhendo-se ao couto que conhecem,

Sós as cabeças na água lhe aparecem:

 

28

 

Assim fogem os Mouros; e o piloto,

Que ao perigo grande as naus guiara,

Crendo que seu engano estava noto,

Também foge, saltando na água amara.

Mas, por não darem no penedo imoto,

Onde percam a vida doce e cara,

A âncora solta logo a capitaina,

Qualquer das outras junto dela amaina.

 

29

 

Vendo o Gama, atentado, a estranheza

Dos Mouros, não cuidada, e juntamente

O piloto fugir-lhe com presteza,

Entende o que ordenava a bruta gente;

E vendo, sem contraste e sem braveza

Dos ventos, ou das águas sem corrente,

Que a nau passar avante não podia,

Havendo-o por milagre, assim dizia:

 

30

 

"Ó caso grande, estranho e não cuidado,

Ó milagre claríssimo e evidente,

Ó descoberto engano inopinado,

Ó pérfida, inimiga e falsa gente!

Quem poderá do mal aparelhado

Livrar-se sem perigo sabiamente,

Se lá de cima a Guarda soberana

Não acudir à fraca força humana?

 

31

 

"Bem nos mostra a divina Providência

Destes portos a pouca segurança;

Bem claro temos visto na aparência,

Que era enganada a nossa confiança.

Mas pois saber humano nem prudência

Enganos tão fingidos não alcança,

Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado

De quem sem ti não pode ser guardado!

 

32

 

"E se te move tanto a piedade

Desta mísera gente peregrina,

Que só por tua altíssima bondade,

Da gente a salvas pérfida e malina,

Nalgum porto seguro de verdade

Conduzir-nos já agora determina,

Ou nos amostra a terra que buscamos,

Pois só por teu serviço navegamos."

 

33

 

Ouviu-lhe essas palavras piedosas

A formosa Dione, e comovida,

Dentre as Ninfas se vai, que saudosas

Ficaram desta súbita partida.

Já penetra as Estrelas luminosas,

Já na terceira Esfera recebida

Avante passa, e lá no sexto Céu,

Para onde estava o Padre, se moveu.

 

34

 

E como ia afrontada do caminho,

Tão formosa no gesto se mostrava,

Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho,

E tudo quanto a via namorava.

Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,

Uns espíritos vivos inspirava,

Com que os Pólos gelados acendia,

E tornava do Fogo a esfera fria.

 

35

 

E por mais namorar o soberano

Padre, de quem foi sempre amada e eriça,

Se lhe apresenta assim como ao Troiano,

Na selva Idea, já se apresentara.

Se a vira o caçador, que o vulto humano

Perdeu, vendo Diana na água clara,

Nunca os famintos galgos o mataram,

Que primeiro desejos o acabaram.

 

36

 

Os crespos fios d'ouro se esparziam

Pelo colo, que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem Amor brincava, e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Menino as almas acendia;

Pelas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

 

37

 

C'um delgado sendal as partes cobre,

De quem vergonha é natural reparo,

Porém nem tudo esconde, nem descobre,

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, para que o desejo acenda o dobre,

Lhe põe diante aquele objeto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

 

38

 

E mostrando no angélico semblante

Co'o riso uma tristeza misturada,

Como dama que foi do incauto amante

Em brincos amorosos mal tratada,

Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,

E se torna entre alegre magoada,

Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,

Mais mimosa que triste ao Padre fala:

 

39

 

"Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

Que, para as cousas que eu do peito amasse,

Te achasse brando, afábil e amoroso,

Posto que a algum contrário lhe pesasse;

Mas, pois que contra mim te vejo iroso,

Sem que to merecesse, nem te errasse,

Faça-se como Baco determina;

Assentarei enfim que fui mofina.

 

40

 

"Este povo que é meu, por quem derramo

As lágrimas que em vão caídas vejo,

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,

Sendo tu tanto contra meu desejo!

Por ele a ti rogando choro e bramo,

E contra minha dita enfim pelejo.

Ora pois, porque o amo é mal tratado,

Quero-lhe querer mal, será guardado.

 

41

 

"Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,

Que pois eu fui..." E nisto, de mimosa,

O rosto banha em lágrimas ardentes,

Como co'o orvalho fica a fresca rosa.

Calada um pouco, como se entre os dentes

Se lhe impedira a fala piedosa,

Torna a segui-la; e indo por diante,

Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

 

42

 

E destas brandas mostras comovido,

Que moveram de um tigre o peito duro,

Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,

Torna sereno e claro o ar escuro,

As lágrimas lhe alimpa, e acendido

Na face a beija, e abraça o colo puro;

De modo que dali, se só se achara,

Outro novo Cupido se gerara.

 

43

 

E co'o seu apertando o rosto amado,

Que os soluços e lágrimas aumenta,

Como menino da ama castigado,

Que quem no afaga o choro lhe acrescente,

Por lhe pôr em sossego o peito irado,

Muitos casos futuros lhe apresenta.

Dos fados as entranhas revolvendo,

Desta maneira enfim lhe está dizendo:

 

44

 

"Formosa filha minha, não temais

Perigo algum nos vossos Lusitanos,

Nem que ninguém comigo possa mais,

Que esses chorosos olhos soberanos;

Que eu vos prometo, filha, que vejais

Esquecerem-se Gregos e Romanos,

Pelos ilustres feitos que esta gente

Há-de fazer nas partes do Oriente.

 

45

 

"Que se o facundo Ulisses escapou

De ser na Ogígia ilha eterno escravo,

E se Antenor os seios penetrou

Ilíricos e a fonte de Timavo;

E se o piedoso Eneias navegou

De Cila e de Caríbdis o mar bravo,

Os vossos, mores cousas atentando,

Novos mundos ao mundo irão mostrando.

 

46

 

"Fortalezas, cidades e altos muros,

Por eles vereis, filha, edificados;

Os Turcos belacíssimos e duros,

Deles sempre vereis desbaratados.

Os Reis da índia, livres e seguros,

Vereis ao Rei potente sojugados;

E por eles, de tudo enfim senhores,

Serão dadas na terra leis melhores.

 

47

 

"Vereis este, que agora pressuroso

Por tantos medos o Indo vai buscando,

Tremer dele Neptuno, de medroso

Sem vento suas águas encrespando.

Ó caso nunca visto e milagroso,

Que trema e ferva o mar, em calma estando!

Ó gente forte e de altos pensamentos,

Que também dela hão medo os Elementos!

 

48

 

"Vereis a terra, que a água lhe tolhia,

Que inda há-de ser um porto mui decente,

Em que vão descansar da longa via

As naus que navegarem do Ocidente.

Toda esta costa enfim, que agora urdia

O mortífero engano, obediente

Lhe pagará tributos, conhecendo

Não poder resistir ao Luso horrendo.

 

49

 

"E vereis o mar Roxo, tão famoso,

Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;

Vereis de Ormuz o Reino poderoso

Duas vezes tomado e sojugado.

Ali vereis o Mouro furioso

De suas mesmas setas traspassado:

Que quem vai contra os vossos, claro veja

Que, se resiste, contra si peleja.

 

50

 

"Vereis a inexpugnábil Dio forte,

Que dous cercos terá, dos vossos sendo.

Ali se mostrará seu preço e sorte,

Feitos de armas grandíssimos fazendo.

Invejoso vereis o grão Mavorte

Do peito Lusitano fero e horrendo:

Do Mouro ali verão que a voz extrema

Do falso Mahamede ao Céu blasfema.

 

51

 

"Goa vereis aos Mouros ser tomada,

A qual virá depois a ser senhora

De todo o Oriente, e sublimada

Co'os triunfos da gente vencedora.

Ali soberba, altiva, e exalçada,

Ao Gentio, que os ídolos adora,

Duro freio porá, e a toda a terra

Que cuidar de fazer aos vossos guerra.

 

52

 

"Vereis a fortaleza sustentar-se

De Cananor, com pouca força e gente;

E vereis Calecu desbaratar-se,

Cidade populosa e tão potente:

E vereis em Cochim assinalar-se

Tanto um peito soberbo e insolente,

Que cítara jamais cantou vitória,

Que assim mereça eterno nome e glória.

 

53

 

"Nunca com Marte instructo e furioso,

Se viu ferver Leucate, quando Augusto

Nas civis Actias guerras animoso,

O Capitão venceu Romano injusto,

Que dos povos da Aurora, e do famoso

Nilo, e do Bactra Cítico e robusto

A vitória trazia, e presa rica,

Preso na Egípcia linda e nego pudica.

 

54

 

Como vereis o mar fervendo aceso

Colos incêndios dos vossos pelejando,

Levando o Idololatra, e o Mouro preso,

De nações diferentes triunfando.

E sujeita a rica Áurea Quersoneso,

Até ao longínquo China navegando,

E as ilhas mais remotas do Oriente,

Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

 

55

 

"De modo, filha minha, que de jeito

Amostrarão esforço mais que humano,

Que nunca se verá tão forte peito,

Do Gangético mar ao Gaditano,

Nem das Boreais ondas ao Estreito,

Que mostrou o agravado Lusitano,

Posto que em todo o mundo, de afrontados,

Ressuscitassem todos os passados."

 

56

 

Como isto disse, manda o consagrado

Filho de Maia à Terra, por que tenha

Um pacífico porto o sossegado,

Para onde sem receio a frota venha;

F, para que em Mombaça, aventurado,

O forte Capitão se não detenha,

Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostra

A terra, onde quieto repousasse.

 

57

 

Já pelo ar o Cileneu voava;

Com as asas nos pés à Terra desce;

Sua vara fatal na mão levava,

Com que os olhos cansados adormece:

Com esta, as tristes almas revocava

Do Inferno, e o vento lhe obedece.

Na cabeça o galero costumado.

E desta arte a Melinde foi chegado.

 

58

 

Consigo a Fama leva, por que diga

Do Lusitano o preço grande e raro,

Que o nome ilustre a um certo amor obriga

E faz, a quem o tem, amado e caro.

Desta arte vai fazendo a gente amiga,

Co rumor famosíssimo, e perclaro.

Já Melinde em desejos arde todo

De ver da gente forte o gesto e modo.

 

59

 

Dali para Mombaça logo parte,

Aonde as naus estavam temerosas,

Para que à gente mande que se aparte

Da barra amiga e terras suspeitosas:

Porque mui pouco val esforço e arte,

Contra infernais vontades enganosas;

Pouco val coração, astúcia e siso,

Se lá dos Céus não vem celeste aviso.

 

60

 

No feio caminho a noite tinha anelado,

E, as estrelas no Céu, coa luz alhea,

Tinham o largo Mundo alumiado;

E só co'o sono a gente se recreia.

O Capitão ilustre, já cansado

De vigiar a noite que arreceia,

Breve repouso então aos olhos dava,

A outra gente a quartos vigiava;

 

61

 

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,

Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano,

Da cilada que o Rei malvado tece,

Por te trazer ao fim, e extremo dano;

Fuge, que o vento, e o Céu te favorece;

Sereno o tempo tens e o Oceano,

E outro Rei mais amigo, noutra parte,

Onde podes seguro agasalhar-te.

 

62

 

"Não tens aqui senão aparelhado

O hospício que o cru Diomedes dava,

Fazendo ser manjar acostumado

De cavalos a gente que hospedava;

As aras de Busíris infamado,

Onde os hóspedes tristes imolava,

Terás certas aqui, se muito esperas.

Fuge das gentes pérfidas e feras.

 

63

 

"Vai-te ao longo da costa discorrendo,

E outra terra acharás de mais verdade,

Lá quase junto donde o Sol ardendo

Iguala o dia e noite em quantidade;

Ali tua frota alegre recebendo

Um Rei, com muitas obras de amizade,,

Gasalhado seguro te daria,

E, para a índia, certa e sábia guia."

 

64

 

Isto Mercúrio disse, e o sono leva

Ao Capitão, que com mui grande espanto

Acorda, e vê ferida a escura treva

De uma súbita luz e raio santo.

E vendo claro quanto lhe releva

Não se deter na terra iníqua tanto,

Com novo espírito ao mestre seu mandava

Que as velas desse ao vento que assopravam.

 

65

 

"Dai velas, disse, dai ao largo vento,

Que o Céu nos favorece e Deus o manda;

Que um mensageiro vi do claro assento

Que só em favor de nossos passos anda."

Alevanta-se nisto o movimento

Dos marinheiros, de uma e de outra banda;

Levam gritando as âncoras acima,

Mostrando a ruda força, que se estima.

 

66

 

Neste tempo, que as âncoras levavam,

Na sombra escura os Mouros escondidos

Mansamente as amarras lhe cortavam,

Por serem, dando à costa, destruídos;

Mas com vista de linces vigiavam

Os Portugueses, sempre apercebidos.

Eles, como acordados os sentiram,

Voando, e não remando, lhe fugiram.

 

67

 

Mas já as agudas proas apartando

Iam as vias húmidas de argento;

Assopra-lhe galerno o vento, e brando,

Com suave e seguro movimento.

Nos perigos passados vão falando,

Que mal se perderão do pensamento

Os casos grandes, donde em tanto aperto

A vida em salvo escapa por acerto.

 

68

 

Tinha uma volta dado o Sol ardente

E noutro começava, quando viram

Ao longe deus navios, brandamente

Co'os ventos navegando, que respiram:

Porque haviam de ser da Maura gente,

Para eles arribando, as velas viram:

Um, de temor do mal que arreceava,

Por se salvar a gente à costa dava.

 

69

 

Não é o outro que fica tão manhoso;

Mas nas mãos vai cair do Lusitano,

Sem o rigor de Marte furioso,

E sem a fúria horrenda de Vulcano;

Que como fosse débil e medroso

Da pouca gente o fraco peito humano,

Não teve resistência; e se a tivera,

Mais dano resistindo recebera.

 

70

 

E como o Gama muito desejasse

Piloto para a Índia que buscava,

Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;

Mas não lhe sucedeu como cuidava,

Que nenhum deles há que lhe ensinasse

A que parte dos céus a Índia estava;

Porém dizem-lhe todos, que tem perto

Melinde, onde achará piloto certo.

 

71

 

Louvam do Rei os Mouros a bondade,

Condição liberal, sincero peito,

Magnificência grande e humanidade,

Com partes de grandíssimo respeito.

O Capitão o assela por verdade,

Porque já lhe dissera, deste jeito,

Cileneu em sonhos; e partia

Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

 

72

 

Era no tempo alegre, quando entrava

No roubador de Europa a luz Febeia,

Quando um e outro corno lhe aquentava,

E Flora derramava o de Amalteia:

A memória do dia renovava

O pressuroso Sol, que o Céu rodeia,

Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,

O selo pôs a quanto tinha feito;

 

73

 

Quando chegava a frota àquela parte,

Onde o Reino Melinde já se via,

De toldos adornada, e leda de arte

Que bem mostra estimar o santo dia.

Treme a bandeira, voa o estandarte,

A cor purpúrea ao longe aparecia;

Soam os atambores o pandeiros,

E assim entravam ledos e guerreiros.

 

74

 

Enche-se toda a praia Melindana

Da gente que vem ver a leda armada,

Gente mais verdadeira, e mais humana,

Que toda a doutra terra atrás deixada.

Surge diante a frota Lusitana,

Pega no fundo a âncora pesada;

Mandam fora um dos Mouros que tomaram,

Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

 

75

 

O Rei, que já sabia da nobreza

Que tanto os Portugueses engrandece,

Tomarem o seu porto tanto preza,

Quanto a gente fortíssima merece:

E com verdadeiro ânimo e pureza,

Que os peitos generosos enobrece,

Lhe manda rogar muito que saíssem,

Para que de seus reinos se servissem.

 

76

 

São oferecimentos verdadeiros,

E palavras sinceras, não dobradas,

As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,

Que tanto mar e terras tem passadas.

Manda-lhe mais lanígeros carneiros,

E galinhas domésticas cevadas,

Com as frutas, que então na terra havia;

E a vontade à dádiva excedia.

 

77

 

Recebe o Capitão alegremente

O mensageiro ledo e seu recado;

E logo manda ao Rei outro presente,

Que de longe trazia aparelhado:

Escarlata purpúrea, cor ardente,

O ramoso coral, fino e prezado,

Que debaixo das águas mole cresce,

E como é fora delas se endurece.

 

78

 

Manda mais um, na prática elegante,

Que co'o Rei nobre as pazes concertasse,

E que de não sair naquele instante

De suas naus em terra o desculpasse.

Partido assim o embaixador prestante,

Como na terra ao Rei se apresentasse,

Com estilo que Palas lhe ensinava,

Estas palavras tais falando orava:

 

79

 

"Sublime Rei, a quem do Olimpo puro

Foi da suma Justiça concedido

Refrear o soberbo povo duro,

Não menos dele amado, que temido:

Como porto mui forte e mui seguro,

De todo o Oriente conhecido,

Te vimos a buscar, para que achemos

Em ti o remédio certo que queremos.

 

80

 

"Não somos roubadores, que passando

Pelas fracas cidades descuidadas,

A ferro e a fogo as gentes vão matando,

Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;

Mas da soberba Europa navegando,

Imos buscando as terras apartadas

Da Índia grande e rica, por mandado

De um Rei que temos, alto e sublimado.

 

81

 

"Que geração tão dura há hi de gente,

Que bárbaro costume e usança feia,

Que não vedem os portos tão somente,

Mas inda o hospício da deserta areia?

Que má tenção, que peito em nós se sente,

Que de tão pouca gente se arreceia?

Que com laços armados, tão fingidos,

Nos ordenassem ver-nos destruídos?

 

82

 

"Mas tu, e quem mui certo confiamos

Achar-se mais verdade, ó Rei benigno,

E aquela certa ajuda em ti esperamos,

Que teve o perdido Ítaco em Alcino,

A teu porto seguro navegamos,

Conduzidos do intérprete divino;

Que, pois a ti nos manda, está mui claro,

Que és de peito sincero, humano e raro.

 

83

 

"E não cuides, ó Rei, que não saísse

O nosso Capitão esclarecido

A ver-te, ou a servir-te, porque visse

Ou suspeitasse em ti peito fingido:

Mas saberás que o fez, porque cumprisse

O regimento, em tudo obedecido,

De seu Rei, que lhe manda que não saia,

Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

 

84

 

"E porque é, de vassalos o exercício,

Que os membros tem regidos da cabeça,

Não quererás, pois tens de Rei o ofício,

Que ninguém a seu Rei desobedeça;

Mas as mercês e o grande benefício,

Que ora acha em ti, promete que conheça

Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,

Enquanto os rios para o mar correrem."

 

85

 

Assim dizia; e todos juntamente,

Uns com outros em prática falando,

Louvavam muito o estâmago da gente,

Que tantos céus e mares vai passando.

E o Rei ilustre, o peito obediente

Dos Portugueses na alma imaginando,

Tinha por valor grande e mui subido

O do Rei que é tão longe obedecido.

 

86

 

E com risonha vista e ledo aspeito,

Responde ao embaixador, que tanto estima:

"Toda a suspeita má tirai do peito,

Nenhum frio temor em vós se imprima;

Que vosso preço e obras são de jeito

Para vos ter o mundo em muita estima;

E quem vos fez molesto tratamento,

Não pode ter subido pensamento.

 

87

 

"De não sair em terra toda a gente,

Por observar a usada preminência,

Ainda que me pese estranhamente,

Em muito tenho a muita obediência;

Mas, se lho o regimento não consente,

Nem eu consentirei que a excelência

De peitos tão leais em si desfaça,

Só porque a meu desejo satisfaça.

 

88

 

"Porém, como a luz crástina chegada

Ao mundo for, em minhas almadias

Eu irei visitar a forte armada,

Que ver tanto desejo, há tantos dias;

E se vier do mar desbaratada,

Do furioso vento e longas vias,

Aqui terá, de limpos pensamentos,

Piloto, munições e mantimentos."

 

89

 

Isto disse; e nas águas se escondia

O filho de Latona; e o mensageiro

Coa embaixada alegre se partia

Para a frota, no seu batel ligeiro.

Enchem-se os peitos todos de alegria.

Por terem o remédio verdadeiro

Para acharem a terra que buscavam;

E assim ledos a noite festejavam.

 

90

 

Não faltam ali os raios de artifício,

Os trêmulos cometas imitando;

Fazem os bombardeiros seu ofício,

O céu, a terra e as ondas atroando.

Mostra-se dos Ciclopas o exercício

Nas bombas que de fogo estão queimando;

Outros com vozes, com que o céu feriam,

Instrumentos altíssonos tangiam.

 

91

 

Respondem-lhe da terra juntamente,

Co'o raio volteando, com zunido;

Anda em giros no ar a roda ardente,

Estoura o pó sulfúreo escondido.

A grita se alevanta ao céu, da gente;

O mar se via em fogos acendido,

E não menos a terra; e assim festeja

Um ao outro, a maneira de peleja.

 

92

 

Mas já o Céu inquieto revolvendo,

As gentes incitava a seu trabalho,

E já a mãe de Menon a luz trazendo,

Ao sono longo punha certo atalho;

Iam-se as sombras lentas desfazendo,

Sobre as flores da terra em frio orvalho,

Quando o Rei Melindano se embarcava

A ver a frota, que no mar estava.

 

93

 

Viam-se em derredor ferver as praias

Da gente, que a ver só concorre leda;

Luzem da fina púrpura as cabaias,

Lustram os panos da tecida seda;

Em lugar das guerreiras azagaias

E do arco, que os cornos arremeda

Da Lua, trazem ramos de palmeira,

Dos que vencem, coroa verdadeira.

 

94

 

Um batel grande e largo, que toldado

Vinha de sedas de diversas cores,

Traz o Rei de Melinde, acompanhado

De nobres e seu Reino e de senhores:

Vem de ricos vestidos adornado,

Segundo seus costumes e primores;

Na cabeça uma fota guarnecida

De ouro, e de seda e de algodão tecida.

 

95

 

Cabaia de Damasco rico e dino,

Da Tíria cor, entre eles estimada,

Um colar ao pescoço, de ouro fino,

Onde a matéria da obra é superada,

C'um resplendor reluze adamantino;

Na cinta, a rica bem lavrada;

Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,

Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.

 

96

 

Com um redondo emparo alto de seda,

Numa alta e dourada hástia enxerido,

Um ministro à solar quentura veda.

Que não ofenda e queime o Rei subido.

Música traz na proa, estranha e leda,

De áspero som, horríssono ao ouvido,

De trombetas arcadas em redondo,

Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.

 

97

 

Não menos guarnecido o Lusitano

Nos seus batéis, da frota se partia

A receber no mar o Melindano,

Com lustrosa e lograda companhia.

Vestido o Gama vem ao modo Hispano,

Mas Francesa era a roupa que vestia,

De cetim da Adriática Veneza

Carmesi, cor que a gente tanto preza:

 

98

 

De botões douro as mangas vêm tomadas,

Onde o Sol reluzindo a vista cega;

As calças soldadescas recamadas

Do metal, que Fortuna a tantos nega,

E com pontas do mesmo delicadas

Os golpes do gibão ajunta e achega;

Ao Itálico modo a áurea espada;

Pluma na gorra, um pouco declinada.

 

99

 

Nos de sua companhia se mostrava

Da tinta, que dá o múrice excelente,

A vária cor, que os olhos alegrava,

E a maneira do trajo diferente.

Tal o formoso esmalte se notava

Dos vestidos, olhados juntamente,

Qual aparece o arco rutilante

Da bela Ninfa, filha de Taumante.

 

100

 

Sonorosas trombetas incitavam

Os ânimos alegres, ressoando;

Dos Mouros os batéis, o mar coalhavam,

Os toldos pelas águas arrojando;

As bombardas horríssonas bramavam,

Com as nuvens de fumo o Sol tomando;

Amiúdam-se os brados acendidos,

Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.

 

101

 

Já no batel entrou do Capitão

O Rei, que nos seus braços o levava;

Ele coa cortesia, que a razão

(Por ser Rei) requeria, lhe falava.

C'umas mostras de espanto e admiração,

O Mouro o gesto e o modo lhe notava,

Como quem em mui grande estima tinha

Gente que de tão longe à índia vinha.

 

102

 

E com grandes palavras lhe oferece

Tudo o que de seus Reinos lhe cumprisse,

E que, se mantimento lhe falece,

Como se próprio fosse, lho pedisse.

Diz-lhe mais, que por fama bem conhece

A gente Lusitana, sem que a visse;

Que já ouviu dizer, que noutra terra

Com gente de sua Lei tivesse guerra.

 

103

 

E como por toda África se soa,

Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,

Quando nela ganharam a coroa

Do Reino, onde as Hespéridas viveram;

E com muitas palavras apregoa

O menos que os de Luso mereceram,

E o mais que pela fama o Rei sabia.

Mas desta sorte o Gama respondia:

 

104

 

"Ó tu, que só tiveste piedade,

Rei benigno, da gente Lusitana,

Que com tanta miséria e adversidade

Dos mares experimenta a fúria insana;

Aquela alta e divina Eternidade,

Que o Céu revolve e rege a gente humana,

Pois que de ti tais obras recebemos,

Te pague o que nós outros não podemos.

 

105

 

"Tu só, de todos quantos queima Apolo,

Nos recebes em paz, cio mar profundo;

Em ti dos ventos hórridos de Eolo

Refúgio achamos bom, fido e jocundo.

Enquanto apascentar o largo Pólo

As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,

Onde quer que eu viver, com fama e glória

Viverão teus louvores em memória."

 

106

 

Isto dizendo, os barcos vão remando

Para a frota, que o Mouro ver deseja;

Vão as naus uma e uma rodeando,

Porque de todas tudo note e veja.

Mas para o céu Vulcano fuzilando,

A frota coas bombardas o festeja,

E as trombetas canoras lhe tangiam;

Co'os anafis os Mouros respondiam.

 

107

 

Mas depois de ser tudo já notado

Do generoso Mouro, que pasmava

Ouvindo o instrumento inusitado,

Que tamanho terror em si mostrava,

Mandava estar quieto e ancorado

N'água o batel ligeiro que os levava,

Por falar de vagar co'o forte Gama,

Nas cousas de que tem notícia e faina.

 

108

 

Em práticas o Mouro diferentes

Se deleitava, perguntando agora

Pelas guerras famosas e excelentes

Co'o povo havidas, que a Mafoma adora;

Agora lhe pergunta pelas gentes

De toda a Hespéria última, onde mora;

Agora pelos povos seus vizinhos,

Agora pelos úmidos caminhos.

 

109

 

"Mas antes, valeroso Capitão,

Nos conta, lhe dizia, diligente,

Da terra tua o clima, e região

Do mundo onde morais distintamente;

E assim de vossa antiga geração,

E o princípio do Reino tão potente,

Co'os sucessos das guerras do começo,

Que, sem sabê-las, sei que são de preço.

 

110

 

"E assim também nos conta dos rodeios

Longos, em que te traz o mar irado,

Vendo os costumes bárbaros alheios.

Que a nossa África ruda tem criado.

Conta: que agora vêm co'os áureos freios

Os cavalos que o carro marchetado

Do novo Sol, da fria Aurora trazem,

O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

 

111

 

"E não menos co'o tempo se parece

O desejo de ouvir-te o que contares;

Que quem há, que por fama não conhece

As obras Portuguesas singulares?

Não tanto desviado resplandece

De nós o claro Sol, para julgares

Que os Melindanos têm tão rudo peito,

Que não estimem muito um grande feito.

 

112

 

"Cometeram soberbos os Gigantes,

Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;

Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes,

O Reino de Plutão horrendo e escuro.

Se houve feitos no mundo tão possantes,

Não menos é trabalho ilustre e duro,

Quanto foi cometer Inferno o Céu,

Que outrem cometa a fúria de Nereu.

 

113

 

"Queimou o sagrado templo de Diana,

Do subtil Tesifónio fabricado,

Heróstrato, por ser da gente humana

Conhecido no mundo e nomeado:

Se também com tais obras nos engana

O desejo de um nome avantajado,

Mais razão há que queira eterna glória

Quem faz obras tão dignas de memória."

Canto IV

 

1

 

"Depois de procelosa tempestade,

Noturna sombra e sibilante vento,

Traz a manhã serena claridade,

Esperança de porto e salvamento;

Aparta o sol a negra escuridade,

Removendo o temor do pensamento:

Assim no Reino forte aconteceu,

Depois que o Rei Fernando faleceu.

 

2

 

"Porque, se muito os nossos desejaram

Quem os danos e ofensas vá vingando

Naqueles que tão bem se aproveitaram

Do descuido remisso de Fernando,

Depois de pouco tempo o alcançaram,

Joane, sempre ilustre, alevantando

Por Rei, como de Pedro único herdeiro,

(Ainda que bastardo) verdadeiro.

 

3

 

"Ser isto ordenação dos céus divina,

Por sinais muito claros se mostrou,

Quando em Évora a voz de uma menina,

Ante tempo falando o nomeou;

E como cousa enfim que o Céu destina,

No berço o corpo e a voz alevantou:

- "Portugal! Portugal!" alçando a mão

Disse "pelo Rei novo, Dom João." -

 

4

 

"Alteradas então do Reino as gentes

Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha,

Absolutas cruezas e evidentes

Faz do povo o furor por onde vinha;

Matando vão amigos e parentes

Do adúltero Conde e da Rainha,

Com quem sua incontinência desonesta

Mais (depois de viúva) manifesta.

 

5

 

"Mas ele enfim, com causa desonrado,

Diante dela a ferro frio morre,

De outros muitos na morte acompanhado,

Que tudo o fogo erguido queima e corre:

Quem, como Astianás, precipitado,

(Sem lhe valerem ordens) de alta torre,

A quem ordens, nem aras, nem respeito;

Quem nu por ruas, e em pedaços feito.

 

6

 

"Podem-se pôr em longo esquecimento

As cruezas mortais que Roma viu

Feitas do feroz Mário e do cruento

Sila, quando o contrário lhe fugiu.

Por isso Lianor, que o sentimento

Do morto Conde ao mundo descobriu,

Faz contra Lusitânia vir Castela,

Dizendo ser sua filha herdeira dela.

 

7

 

"Beatriz era a filha, que casada

Co'o Castelhano está, que o Reino pede,

Por filha de Fernando reputada,

Se a corrompida fama lhe concede.

Com esta voz Castela alevantada,

Dizendo que esta filha ao pai sucede,

Suas forças ajunta para as guerras

De várias regiões e várias terras.

 

8

 

Vem de toda a província que de um Brigo

(Se foi) já teve o nome derivado;

Das terras que Fernando e que Rodrigo

Ganharam do tirano e Mauro estado.

Não estimam das armas o perigo

Os que cortando vão co'o duro arado

Os campos Lioneses, cuja gente

C'os Mouros foi nas armas excelente.

 

9

 

"Os Vândalos, na antiga valentia

Ainda confiados, se ajuntavam

Da cabeça de toda Andaluzia,

Que do Guadalquibir as águas lavam.

A nobre Ilha também se apercebia,

Que antigamente os Tírios habitavam,

Trazendo por insígnias verdadeiras

As Hercúleas colunas nas bandeiras.