10

 

"Também vem lá do Reino de Toledo,

Cidade nobre e antiga, a quem cercando

O Tejo em torno vai suave e ledo

Que das serras de Conca vem manando.

A vós outros também não tolhe o medo,

Ó sórdidos Galegos, duro bando,

Que para resistirdes vos armastes,

Aqueles, cujos golpes já provasses.

 

11

 

"Também movem da guerra as negras fúrias

A gente Biscainha, que carece

De polidas razões, e que as injúrias

Muito mal dos estranhos compadece.

A terra de Guipúscua e das Astúrias,

Que com minas de ferro se enobrece,

Armou dele os soberbos moradores,

Para ajudar na guerra a seus senhores.

 

12

 

"Joane, a quem do peito o esforço cresce,

Como a Sansão Hebréio da guedelha,

Posto que tudo pouco lhe parece,

Co'os poucos de seu Reino se aparelha;

E não porque conselho lhe falece,

Co'os principais senhores se aconselha,

Mas só por ver das gentes as sentenças:

Que sempre houve entre muitos diferenças.

 

13

 

"Não falta com razões quem desconcerte

Da opinião de todos, na vontade,

Em quem o esforço antigo se converte

Em desusada e má deslealdade;

Podendo o temor mais, gelado, inerte,

Que a própria e natural fidelidade:

Negam o Rei e a pátria, e, se convém,

Negarão (como Pedro) o Deus que têm.

 

14

 

"Mas nunca foi que este erro se sentisse

No forte Dom Nuno Alvares; mas antes,

Posto que em seus irmãos tão claro o visse,

Reprovando as vontades inconstantes,

Aquelas duvidosas gentes disse,

Com palavras mais duras que elegantes,

A mão na espada, irado, e não facundo,

Ameaçando a terra, o mar e o mundo:

 

15

 

- "Como!Da gente ilustre Portuguesa

Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?,

Como!Desta província, que princesa

Foi das gentes na guerra em toda a parte,

Há-de sair quem negue ter defesa?

Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte

De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sujeito?

 

16

 

- "Como!Não seis vós inda os descendentes

Daqueles, que debaixo da bandeira

Do grande Henriques, feros e valentes,

Vencestes esta gente tão guerreira?

Quando tantas bandeiras, tantas gentes

Puseram em fugida, de maneira

Que sete ilustres Condes lhe trouxeram

Presos, afora a presa que tiveram?

 

17

 

- "Com quem foram contino sopeados

Estes, de quem o estais agora vós,

Por Dinis e seu filho, sublimados,

Senão co'os vossos fortes pais, e avôs?

Pois se com seus descuidos, ou pecados,

Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,

Torne-vos vossas forças o Rei novo:

Se é certo que co'o Rei se muda o povo.

 

18

 

- "Rei tendes tal, que se o valor tiverdes

Igual ao Rei que agora alevantastes,

Desbaratareis tudo o que quiserdes,

Quanto mais a quem já desbaratasses.

E se com isto enfim vos não moverdes

Do penetrante medo que tomastes,

Atai as mãos a vosso vão receio,

Que eu só resistirei ao jugo alheio.

 

19

 

- "Eu só com meus vassalos, e com esta

(E dizendo isto arranca meia espada)

Defenderei da força dura e infesta

A terra nunca de outrem sojugada.

Em virtude do Rei, da pátria mesta,

Da lealdade já por vós negada,

Vencerei (não só estes adversários)

Mas quantos a meu Rei forem contrários."-

 

20

 

Bem como entre os mancebos recolhidos

Em Canúsio, relíquias sós de Canas,

Já para se entregar quase movidos

A fortuna das forças Africanas,

Cornélio moço os faz que, compelidos

Da sua espada, jurem que as Romanas

Armas não deixarão, enquanto a vida

Os não deixar, ou nelas for perdida:

 

21

 

"Destarte a gente força e esforça Nuno,

Que, com lhe ouvir as últimas razões,

Removem o temor frio, importuno,

Que gelados lhe tinha os corações.

Nos animais cavalgam de Neptuno,

Brandindo e volteando arremessões;

Vão correndo e gritando a boca aberta:

- "Viva o famoso Rei que nos liberta!"-

 

22

 

"Das gentes populares, uns aprovam

A guerra com que a pátria se sustinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha;

Capacetes estofam, peitos provam,

Arma-se cada um como convinha;

Outros fazem vestidos de mil cores,

Com letras e tenções de seus amores.

 

23

 

"Com toda esta lustrosa companhia

Joane forte sai da fresca Abrantes,

Abrantes, que também da fonte fria

Do Tejo logra as águas abundantes.

Os primeiros armígeros regia

Quem para reger era os mui possantes

Orientais exércitos, sem conto,

Com que passava Xerxes o Helesponto.

 

24

 

"Dom Nuno Alvares digo, verdadeiro

Açoute de soberbos Castelhanos

Como já o fero Huno o foi primeiro

Para Franceses, para Italianos.

Outro também famoso cavaleiro,

Que a ala direita tem dos Lusitanos,

Apto para mandá-los, e regê-los,

Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.

 

25

 

"E da outra ala, que a esta corresponde,

Antão Vasques de Almada é capitão,

Que depois foi de Abranches nobre Conde,

Das gentes vai regendo a sestra mão.

Logo na retaguarda não se esconde

Das quinas e castelos o pendão,

Com Joane, Rei forte em toda parte,

Que escurecendo o preço vai de Alarte.

 

26

 

"Estavam pelos muros, temerosas,

E de um alegre medo quase frias,

Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,

Prometendo jejuns e romarias.

Já chegam as esquadras belicosas

Defronte das amigas companhias,

Que com grita grandíssima os recebem,

E todas grande dúvida concebem.

 

27

 

"Respondem as trombetas mensageiras,

Pífaros sibilantes e atambores;

Alférezes volteam as bandeiras,

Que variadas são de muitas cores.

Era no seco tempo, que nas eiras

Ceres o fruto deixa aos lavradores,

Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto,

Baco das uvas tira o doce mosto.

 

28

 

"Deu sinal a trombeta Castelhana,

Horrendo, fero, ingente e temeroso;

Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana

Atrás tornou as ondas de medroso;

Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;

Correu ao mar o Tejo duvidoso;

E as mães, que o som terríbil escutaram,

Aos peitos os filhinhos apertaram.

 

29

 

"Quantos rostos ali se vêem sem cor,

Que ao coração acode o sangue amigo!

Que, nos perigos grandes, o temor

É maior muitas vezes que o perigo;

E se o não é, parece-o; que o furor

De ofender ou vencer o duro amigo

Faz não sentir que é perda grande e rara,

Dos membros corporais, da vida cara.

 

30

 

"Começa-se a travar a incerta guerra;

De ambas partes se move a primeira ala;

Uns leva a defensão da própria terra,

Outros as esperanças de ganhá-la;

Logo o grande Pereira, em quem se encerra

Todo o valor, primeiro se assinala:

Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia

Dos que a tanto desejam, sendo alheia.

 

31

 

"Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas e vários tiros voam;

Debaixo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam;

Espedaçam-se as lanças; e as frequentes

Quedas coas duras armas, tudo atroam;

Recrescem os amigos sobre a pouca

Gente do fero Nuno, que os apouca.

 

32

 

"Eis ali seus irmãos contra ele vão,

(Caso feio e cruel!) mas não se espanta,

Que menos é querer matar o irmão,

Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta:

Destes arrenegados muitos são

No primeiro esquadrão, que se adianta

Contra irmãos e parentes (caso estranho!)

Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.

 

33

 

"Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,

Catilina, e vós outros dos antigos,

Que contra vossas pátrias, com profano

Coração, vos fizestes inimigos,

Se lá no reino escuro de Sumano

Receberdes gravíssimos castigos,

Dizei-lhe que também dos Portugueses

Alguns tredores houve algumas vezes.

 

34

 

"Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,

Tantos dos inimigos a eles vão!

Está ali Nuno, qual pelos outeiros

De Ceita está o fortíssimo leão,

Que cercado se vê dos cavaleiros

Que os campos vão correr de Tetuão:

Perseguem-no com as lanças, e ele iroso,

Torvado um pouco está, mas não medroso.

 

35

 

"Com torva vista os vê, mas a natura

Ferina e a ira não lhe compadecem

Que as costas dê, mas antes na espessura

Das lanças se arremessa, que recrescem.

Tal está o cavaleiro, que a verdura

Tinge co'o sangue alheio; ali perecem

Alguns dos seus, que o ânimo valente

Perde a virtude contra tanta gente.