75
"Assim que, ó Rei, se minha grã verdade
Tens por qual é, sincera e não dobrada,
Ajunta-me ao despacho brevidade,
Não me impeças o gosto da tornada.
E, se ainda te parece falsidade,
Cuida bem na razão que está provada,
Que com claro juízo pode ver-se,
Que fácil é a verdade de entender-se."
76
A tento estava o Rei na segurança
Com que provava o Gama o que dizia;
Concebe dele certa confiança,
Crédito firme em quanto proferia.
Pondera das palavras a abastança,
Julga na autoridade grão valia,
Começa de julgar por enganados
Os Catuais corruptos, mal julgados.
77
Juntamente a cobiça do proveito,
Que espera do contrato Lusitano,
O faz obedecer e ter respeito
Com o Capitão, e não com o Mauro engano.
Enfim ao Gama manda que direito
As naus se vá, e, seguro de algum dano,
Possa a terra mandar qualquer fazenda,
Que pela especiaria troque e venda.
78
Que mande da fazenda, enfim, lhe manda,
Que nos Reinos Gangéticos faleça;
Se alguma traz idónea lá da banda
Donde a terra se acaba e o mar começa.
Já da real presença veneranda
Se parte o Capitão, para onde peça
Ao Catual, que dele tinha cargo,
Embarcação, que a sua está de largo.
79
Embarcação que o leve às naus lhe pede;
Mas o mau Regedor, que novos laços
Lhe maquinava, nada lhe concede,
Interpondo tardanças e embaraços.
Com ele parte ao cais, por que o arrede
Longe quanto puder dos régios paços,
Onde, sem que seu Rei tenha notícia,
Faça o que lhe ensinar sua malícia.
80
Lá bem longe lhe diz que lhe daria
Embarcação bastante em que partisse,
Ou que para a luz crástina do dia
Futuro sua partida diferisse.
Já com tantas tardanças entendia
O Gama, que o Gentio consentisse
Na má tenção dos Mouros, torpe e fera,
O que dele atéli não entendera.
81
Era este Catual um dos que estavam
Corruptos pela Maumetana gente,
O principal por quem se governavam
As cidades do Samorim potente.
Dele somente os Mouros esperavam
Efeito a seus enganos torpemente.
Ele, que no conceito vil conspira,
De suas esperanças não delira.
82
O Gama com instância lhe requere
Que o mande pôr nas naus, e não lhe vai;
E que assim lhe mandara, lhe refere,
O nobre sucessor de Perimal.
Por que razão lhe impede e lhe difere
A fazenda trazer de Portugal?
Pois aquilo que os Reis já têm mandado
Não pode ser por outrem derrogado.
83
Pouco obedece o Catual corrupto
A tais palavras; antes revolvendo
Na fantasia algum subtil e astuto
Engano diabólico e estupendo,
Ou como banhar possa o ferro bruto
No sangue avorrecido, estava vendo;
Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,
Por que nenhuma à pátria mais tornasse.
84
Que nenhum torne à pátria só pretende
O conselho infernal dos Maumetanos,
Por que não saiba nunca onde se estende
A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.
Não parte o Gama enfim, que lho defende
O Regedor dos bárbaros profanos;
Nem sem licença sua ir-se podia,
Que as almadias todas lhe tolhia.
85
Aos brados o razões do Capitão
Responde o Idolatra que mandasse —
Chegar à terra as naus, que longo estão,
Por que melhor dali fosse e tornasse.
"Sinal é de inimigo e de ladrão,
Que lá tão longe a frota se alargasse,
Lhe diz, porque do certo e fido amigo
É não temer do seu nenhum perigo."
86
Nestas palavras o discreto Gama
Enxerga bem que as naus deseja perto
O Catual, por que com f erro e flama,
Lhas assalte, por ódio descoberto.
Em vários pensamentos se derrama;
Fantasiando está remédio certo,
Que desse a quanto mal se lhe ordenava;
Tudo temia, tudo enfim cuidava.
87
Qual o reflexo lume do polido
Espelho de aço, ou de cristal formoso,
Que, do raio solar sendo ferido,
Vai ferir noutra parte luminoso,
E, sendo da ociosa mão movido
Pela casa do moço curioso,
Anda pelas paredes é telhado
Trêmulo, aqui e ali, e dessossegado:
88
Tal o vago juízo flutuava
Do Gama preso, quando lhe lembrara
Coelho, se por caso o esperava
Na praia com os batéis, como ordenara.
Logo secretamente lhe mandava,
"Que se tornasse à frota, que deixara;
Não fosse salteado dos enganos,
Que esperava dos feros Maumetanos."
89
Tal há de ser quem quer, com o dom de Marte,
Imitar os ilustres e igualá-los:
Voar com o pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos, e evitá-los:
Com militar engenho e subtil arte
Entender os inimigos, e enganá-los;
Crer tudo, enfim, que nunca louvarei
O Capitão que diga: "Não cuidei".
90
Insiste o Malabar em tê-lo preso,
Se não manda chegar a terra a armada;
Ele constante, e de ira nobre aceso,
Os ameaços seus não teme nada;
Que antes quer sobre si tomar o peso
De quanto mal a vil malícia ousada
Lhe andar armando, que pôr em ventura
A frota de seu Rei, que tem segura.
91
Aquela noite esteve ali detido,
E parte do outro dia, quando ordena
De se tornar ao Rei; mas impedido
Foi da guarda que tinha, não pequena.
Comete-lhe o Gentio outro partido,
Temendo de seu Rei castigo ou pena,
Se sabe esta malícia, a qual asinha
Saberá, se mais tempo ali o detinha.
92
Diz-lhe "que mande vir toda a fazenda
Vendível, que trazia, para a terra,
Para que de vagar se troque e venda:
Que quem não quer comércio, busca guerra.
Posto que os maus propósitos entenda
O Gama, que o danado peito encerra,
Consente, porque sabe por verdade,
Que compra com a fazenda a liberdade.
93
Concertam-se que o negro mande dar
Embarcações idóneas com que venha;
Que os seus batéis não quer aventurar
Onde lhos tome o inimigo, ou lhos detenha.
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