49

 

Torna Baco, dizendo: "Não conheces

O grã legislador que a teus passados

Tem mostrado o preceito a que obedeces,

Sem o qual fôreis muitos batizados?

Eu por ti, rudo, velo; e tu adormeces!

Pois saberás que aqueles, que chegados

De novo são, serão muito grande dano

Da lei que eu dei ao néscio povo humano.

 

50

 

"Enquanto é fraca a força desta gente,

Ordena como em tudo se resista,

Porque, quando o Sol sai, facilmente

Se pode nele pôr a aguda vista;

Porém, depois que sobe claro e ardente,

Se agudeza dos olhos o conquista,

Tão cega fica, quanto ficareis,

Se raízes criar lhe não tolheis."

 

51

 

Isto dito, ele e o sono se despede.

Tremendo fica o atónito Agareno:

Salta da cama, lume ao servos pede,

Lavrando nele o fervido veneno.

Tanto que a nova luz que ao Sol precede

Mostrara rosto angélico e sereno,

Convoca os principais da torpe seita,

Aos quais do que sonhou dá conta estreita.

 

52

 

Diversos pareceres e contrários

Ali se dão , segundo o que entendiam;

Astutas traições, enganos vários,

Perfídias inventavam e teciam.

Mas, deixando conselhos temerários,

Destruição da gente pretendiam,

Por manhas mais subtis e ardis melhores,

Com peitas adquirindo os regedores;

 

53

 

Com peitas, ouro, e dádivas secretas

Conciliam da terra os principais,

E com razões notáveis e discretas

Mostram ser perdição dos naturais,

Dizendo que são gentes inquietas,

Que, os mares discorrendo ocidentais,

Vivem só de piráticas rapinas,

Sem Rei, sem leis humanas ou divinas

 

54

 

Ó quanto deve o Rei que bem governa,

De olhar que os conselheiros, ou privados,

De consciência e de virtude interna

E de sincero amor sejam dotados!

Porque, como este posto na suprema

Cadeira, pode mal dos apartados

Negócios ter notícia mais inteira,

Do que lhe der a língua conselheira.

 

55

 

Nem tão pouco direi que tome tanto

Em grosso a consciência limpa e certa,

Que se enleve num pobre e humilde manto,

Onde ambição acaso ande encoberta.

E quando um bom em tudo é justo e santo,

Em negócios do mundo pouco acerta,

Que mal com eles poderá ter conta

A quieta inocência, em só Deus pronta.

 

56

 

Mas aqueles avaros Catuais,

Que o Gentílico povo governavam,

Induzidos das gentes infernais,

O Português despacho dilatavam.

Mas o Gama, que não pretende mais,

De tudo quanto os Mouros ordenavam,

Que levar a seu Rei um sinal certo

Do mundo, que deixava descoberto.

 

57

 

Nisto trabalha só; que bem sabia

Que depois que levasse esta certeza,

Armas, o naus, e gente mandaria

Manuel, que exercita a suma alteza,

Com que a seu jugo e lei someteria

Das terras e do mar a redondeza;

Que ele não era mais que um diligente

Descobridor das terras do Oriente.

 

58

 

Falar ao Rei gentio determina,

Por que com seu despacho se tornasse,

Que já sentia em tudo da malina

Gente impedir-se quanto desejasse.

O Rei, que da notícia falsa e indina

Não era de espantar se se espantasse,

Que tão crédulo era em seus agouros,

E mais sendo afirmados pelos Mouros,

 

59

 

Este temor lhe esfria o baixo peito.

Por outra parte a força da cobiça,

A quem por natureza está sujeito,

Um desejo imortal lhe acende e atiça:

Que bem vê que grandíssimo proveito

Fará, se com verdade e com justiça

O contrato fizer por longos anos,

Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.

 

60

 

Sobre isto, nos conselhos que tomava,

Achava muito contrários pareceres;

Que naqueles com quem se aconselhava

Executa o dinheiro seus poderes.

O grande Capitão chamar mandava,

A quem chegado disse: — "Se quiseres

Confessar-me a verdade limpa e nua,

Perdão alcançarás da culpa tua.

 

61

 

Fala do Samorim ao Gama

"Eu sou bem informado que a embaixada

Que de teu Rei me deste, que é fingida;

Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,

Mas vagabundo vás passando a vida;

Que quem da Hespéria última alongada,

Rei ou senhor de insânia desmedida,

Há de vir cometer com naus e frotas

Tão incertas viagens e remotas?

 

62

 

"E se de grandes Reinos poderosos

O teu Rei tem a régia majestade,

Que presentes me trazes valerosos,

Sinais de tua incógnita verdade?

Com peças e dons altos, sumptuosos,

Se lia dos Reis altos a amizade;

Que sinal nem penhor não é bastante

As palavras dum vago navegante.

 

63

 

"Se porventura vindes desterrados,

Como já foram homens de alta sorte,

Em meu Reino sereis agasalhados,

Que toda a terra é pátria para o forte,;

Ou se piratas sois ao mar usados,

Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,

Que por se sustentar em toda idade,

Tudo faz a vital necessidade."

 

64

 

Isto assim dito, o Gama, que já tinha

Suspeitas das insídias que ordenava

O Mallomético ódio, donde vinha

Aquilo que tão mal o Rei cuidava,

Com uma alta confiança, que convinha,

Com que seguro crédito alcançava,

Que Vénus Acidália lhe influía,

Tais palavras do sábio peito abria:

 

65

 

"Se os antigos delitos, que a malícia

Humana cometeu na prisca idade,

Não causaram que o vaso da niquícia,

Açoute tão cruel da Cristandade,

Viera pôr perpétua inimicícia

Na geração de Adão, coa falsidade,

Ó poderoso Rei da torpe seita,

Não conceberas tu tão má suspeita.

 

66

 

"Mas porque nenhum grande bem se alcança

Sem grandes opressões, e em todo o feito

Segue o temor os passos da esperança,

Que em suor vive sempre de seu peito,

Me mostras tu tão pouca confiança

Desta minha verdade, sem respeito

Das razões em contrário que acharias

Se não cresses a quem não crer devias.

 

67

 

"Porque, se eu de rapinas só vivesse,

Undívago, ou da pátria desterrado,

Como crês que tão longe me viesse

Buscar assento incógnito e apartado?

Por que esperanças, ou por que interesse

Viria experimentando o mar irado,

Os Antarcticos frios, e os ardores

Que sofrem do Carneiro os moradores?

 

68

 

"Se com grandes presentes de alta estima

O crédito me pedes do que digo,

Eu não vim mais que a achar o estranho clima

Onde a natura pôs teu Reino antigo.

Mas, se a Fortuna tanto me sublima

Que eu torne à minha pátria e Reino amigo,

Então verás o dom soberbo e rico,

Com que minha tornada certifico.

 

69

 

"Se te parece inopinado feito,

Que Rei da última Hespéria a ti me mande,

O coração sublime, o régio peito,

Nenhum caso possível tem por grande.

Bem parece que o nobre e grã conceito

Do Lusitano espírito demande

Maior crédito, e fé de mais alteza,

Que creia dele tanta fortaleza.

 

70

 

"Sabe que há muitos anos que os antigos

Reis nossos firmemente propuseram

De vencer os trabalhos e perigos,

Que sempre às grandes coisas se opuseram;

E, descobrindo os mares inimigos

Do quieto descanso, pretenderam

De saber que fim tinham, e onde estavam

As derradeiras praias que lavavam.

 

71

 

"Conceito digno foi do ramo claro

Do venturoso Rei, que arou primeiro

O mar, por ir deitar do ninho caro

O morador de Abila derradeiro.

Este, por sua indústria e engenho raro,

Num madeiro ajuntando outro madeiro,

Descobrir pôde a parte, que faz clara

De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.

 

72

 

"Crescendo com os sucessos bons primeiros

No peito as ousadias, descobriram

Pouco e pouco caminhos estrangeiros,

Que uns, sucedendo aos outros, prosseguiram.

De África os moradores derradeiros

Austrais, que nunca as sete flamas viram,

Foram vistos de nós, atrás deixando

Quantos estão os Trópicos queimando.

 

73

 

"Assim com firme peito, e com tamanho

Propósito, vencemos a Fortuna,

Até que nós no teu terreno estranho

Viemos pôr a última coluna.

Rompendo a força do líquido estanho,

Da tempestade horrífica e importuna,

A ti chegamos, de quem só queremos

Sinal, que ao nosso Rei de ti levemos.

 

74

 

"Esta é a verdade, Rei; que não faria

Por tão incerto bem, tão fraco prémio,

Qual, não sendo isto assim, esperar podia,

Tão longo, tão fingido e vão proêmio;

Mas antes descansar me deixaria

No nunca descansado e fero grêmio

Da madre Tethys, qual pirata inico,

Dos trabalhos alheios feito rico.