54

 

Três formosos outeiros se mostravam

Erguidos com soberba graciosa,

Que de gramíneo esmalte se adornavam..

Na formosa ilha alegre e deleitosa;

Claras fontes o límpidas manavam

Do cume, que a verdura tem viçosa;

Por entre pedras alvas se deriva

A sonorosa Ninfa fugitiva.

 

55

 

Num vale ameno, que os outeiros fende,

Vinham as claras águas ajuntar-se,

Onde uma mesa fazem, que se estende

Tão bela quanto pode imaginar-se;

Arvoredo gentil sobre ela pende,

Como que pronto está para afeitar-se,

Vendo-se no cristal resplandecente,

Que em si o está pintando propriamente.

 

56

 

Mil árvores estão ao céu subindo,

Com pomos odoríferos e belos:

A laranjeira tem no fruto lindo

A cor que tinha Dafne nos cabelos;

Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira com os pesos amarelos;

Os formosos limões ali, cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando.

 

57

 

As árvores agrestes que os outeiros

Têm com frondente coma enobrecidos,

Alemos são de Alcides, e os loureiros

Do louro Deus amados e queridos;

Mirtos de Citereia, com os pinheiros

De Cibele, por outro amor vencidos;

Está apontando o agudo cipariso

Para onde é posto o etéreo paraíso.

 

58

 

Os dons que dá Pomona, ali Natura

Produz diferentes nos sabores,

Sem ter necessidade de cultura,

Que sem ela se dão muito melhores:

As cerejas purpúreas na pintura,

As amoras, que o nome têm de amores,

O pomo que da pátria Pérsia veio,

Melhor tornado no terreno alheio.

 

59

 

Abre a romã, mostrando a rubicunda

Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes;

Entre os braços do ulmeiro está a jocunda

Vide, com uns cachos roxos e outros verdes;

E vós, se na vossa árvore fecunda,

Peras piramidais, viver quiserdes,

Entregai-vos ao dano, que, com os bicos,

Em vós fazem os pássaros inicos.

 

60

 

Pois a tapeçaria bela e fina,

Com que se cobre o rústico terreno,

Faz ser a de Aqueménia menos diria,

Mas o sombrio vale mais ameno.

Ali a cabeça a flor Cifísia inclina

Sôbolo tanque lúcido e sereno;

Floresce o filho e neto de Ciniras,

Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

 

61

 

Para julgar, difícil coisa fora,

No céu vendo e na terra as mesmas cores,

Se dava às flores cor a bela Aurora,

Ou se lha dão a ela as belas flores.

Pintando estava ali Zéfiro e Flora

As violas da cor dos amadores;

O lírio roxo, a fresca rosa bela,

Qual reluz nas faces da donzela;

 

62

 

A cândida cecém, das matutinas

Lágrimas rociada, e a manjarona.

Vêem-se as letras nas flores Hiacintinas,

Tão queridas do filho de Latona.

Bem se enxerga nos pomos e boninas

Que competia Cloris com Pomona.

Pois se as aves no ar cantando voam,

Alegres animais o chão povoam.

 

63

 

Ao longo da água o níveo cisne canta,

Responde-lhe do ramo filomela;

Da sombra de seus cornos não se espanta

Acteon, n'água cristalina e bela;

Aqui a fugace lebre se levanta

Da espessa mata, ou tímida gazela;

Ali no bico traz ao caro ninho

O mantimento o leve passarinho.

 

64

 

Nesta frescura tal desembarcavam

Já das naus os segundos Argonautas,

Onde pela floresta se deixavam

Andar as belas Deusas, como incautas.

Algumas doces cítaras tocavam,

Algumas harpas e sonoras flautas,

Outras com os arcos de ouro se fingiam

Seguir os animais, que não seguiam.

 

65

 

Assim lhe aconselhara a mestra experta;

Que andassem pelos campos espalhadas;

Que, vista dos barões a presa incerta,

Se fizessem primeiro desejadas.

Algumas, que na forma descoberta

Do belo corpo estavam confiadas,

Posta a artificiosa formosura,

Nuas lavar-se deixam na água pura,

 

66

 

Mas os fortes mancebos, que na praia

Punham os pés, de terra cobiçosos,

Que não há nenhum deles que não saia

De acharem caça agreste desejosos,

Não cuidam que, sem laço ou redes, caia

Caça naqueles montes deleitosos,

Tão suave, doméstica e benigna,

Qual ferida lha tinha já Ericina.

 

67

 

Alguns, que em espingardas e nas bestas,

Para ferir os cervos se fiavam,

Pelos sombrios matos e florestas

Determinadamente se lançavam:

Outros, nas sombras, que de as altas sestas

Defendem a verdura, passeavam

Ao longo da água que, suave e queda,

Por alvas pedras corre à praia leda.

 

68

 

Começam de enxergar subitamente

Por entre verdes ramos várias cores,

Cores de quem a vista julga e sente

Que não eram das rosas ou das flores,

Mas da lã fina e seda diferente,

Que mais incita a força dos amores,

De que se vestem as humanas rosas,

Fazendo-se por arte mais formosas.

 

69

 

Dá Veloso espantado um grande grito:

"Senhores, caça estranha, disse, é esta!

Se ainda dura o Gentio antigo rito,

A Deusas é sagrada esta floresta.

Mais descobrimos do que humano espírito

Desejou nunca; e bem se manifesta

Que são grandes as coisas e excelentes,

Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

 

70

 

"Sigamos estas Deusas, e vejamos

Se fantásticas são, se verdadeiras."

Isto dito, velozes mais que gamos,

Se lançam a correr pelas ribeiras.

Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,

Mas, mais industriosas que ligeiras,

Pouco e pouco sorrindo e gritos dando,

Se deixam ir dos galgos alcançando.

 

71

 

De uma os cabelos de ouro o vento leva

Correndo, e de outra as fraldas delicadas;

Acende-se o desejo, que se ceva

Nas alvas carnes súbito mostradas;

Uma de indústria cai, e já releva,

Com mostras mais macias que indignadas,

Que sobre ela, empecendo, também caia

Quem a seguiu pela arenosa praia.

 

72

 

Outros, por outra parte, vão topar

Com as Deusas despidas, que se lavam:

Elas começam súbito a gritar,

Como que assalto tal não esperavam.

Umas, fingindo menos estimar

A vergonha que a força, se lançavam

Nuas por entre o mato, aos olhos dando

O que às mãos cobiçosas vão negando.

 

73

 

Outra, como acudindo mais depressa

A vergonha da Deusa caçadora,

Esconde o corpo n'água; outra se apressa

Por tomar os vestidos, que tem fora.

Tal dos mancebos há, que se arremessa,

Vestido assim e calçado (que, coa mora

De se despir, há medo que ainda tarde)

A matar na água o fogo que nele arde.