Alguns ficam ligados em cadeias,
Por palavras subtis de sábias magas:
Isto acontece às vezes, quando as setas
Acertam de levar ervas secretas.
34
Destes tiros assim desordenados,
Que estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores mil desconcertados
Entre o povo ferido miserando;
E tamboril nos heróis de altos estados
Exemplos mil se vêem de amor nefando,
Qual o das moças Bíbli e Cinireia,
Um mancebo de Assíria, um de Judeia.
35
E vós, ó poderosos, por pastoras
Muitas vezes ferido o peito vedes;
E por baixos e rudos, vós, senhoras,
Também vos tomam nas Vulcâneas redes.
Uns esperando andais noturnas horas,
Outros subis telhados e paredes:
Mas eu creio que deste amor indino
É mais culpa a da mãe que a do menino.
36
Mas já no verde prado o carro leve
Punham os brancos cisnes mansamente,
E Dione, que as rosas entro a neve
No rosto traz, descia diligente.
O frecheiro, que contra o céu se atreve,
A recebê-la vem, ledo e contente;
Vêm todos os Cupidos servidores
Beijar a mão à Deusa dos amores.
37
Ela, por que não gaste o tempo em vão,
Nos braços tendo o filho, confiada
Lhe diz: "Amado filho, em cuja mão
Toda minha potência está fundada;
Filho, em quem minhas forças sempre estão;
Tu, que as armas Tifeias tens em nada,
A socorrer-me a tua potestade
Me triz especial necessidade.
38
"Bem vês as Lusitânicas fadigas,
Que eu já de muito longe favoreço,
Porque das Parcas sei, minhas amigas,
Que me hão de venerar e ter em preço.
E, porque tanto imitam as antigas
Obras de meus Romanos, me ofereço
A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,
A quanto se estender o poder nosso.
39
"E porque das insídias do odioso
Baco foram na Índia molestados,
E das injúrias sós do mar undoso
Puderam mais ser mortos que cansados,
No mesmo mar, que sempre temeroso
Lhe foi, quero que sejam repousados,
Tomando aquele prémio e doce glória
Do trabalho, que faz clara a memória.
40
"E para isso queria que, feridas
As filhas de Nereu, no ponto fundo,
De amor dos Lusitanos incendidas,
Que vêm de descobrir o novo mundo,
Todas numa ilha juntas e subidas,
Ilha, que nas entranhas do profundo
Oceano terei aparelhada,
De dons de Flora e Zéfiro adornada;
41
"Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares
Formosos leitos, e elas mais formosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
De amor feridas, para lhes entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.
42
"Quero que haja no reino Netunino,
Onde eu nasci, progénie forte e bela,
E tome exemplo o mundo vil, malino,
Que contra tua potência se rebela,
Por que entendam que muro adamantino,
Nem triste hipocrisia val contra ela:
Mal haverá na terra quem se guarde,
Se teu fogo imortal nas águas arde."
43
Assim Vénus propôs, e o filho inieo,
Para lhe obedecer, já se apercebe:
Manda trazer o arco ebúrneo rico,
Onde as setas de ponta de ouro embebe.
Com gesto ledo a Cípria, e impudico,
Dentro no carro o filho seu recebe;
A rédea larga às aves, cujo canto
A Factôntea morte chorou tanto.
44
Mas diz Cupido, que era necessária
Uma famosa e célebre terceira,
Que, posto que mil vezes lhe é contrária,
Outras muitas a tem por companheira:
A Deusa Giganteia, temerária,
Jactante, mentirosa, e verdadeira,
Que com cem olhos vê, e por onde voa,
O que vê, com mil bocas apregoa.
45
Vão-a buscar, e mandam adiante,
Que celebrando vá com tuba clara
Os louvores da gente navegante,
Mais do que nunca os d'outrem celebrara.
Já murmurando a Fama penetrante
Pelas fundas cavernas se espalhara:
Fala verdade, havida por verdade,
Que junto a Deusa traz Credulidade.
46
O louvor grande, o rumor excelente
No coração dos Deuses, que indignados
Foram por Baco contra a ilustre gente,
Mudando, os fez um pouco afeiçoados.
O peito feminil, que levemente
Muda quaisquer propósitos tomados,
Já julga por mau zelo e por crueza
Desejar mal a tanta fortaleza.
47
Despede nisto o fero moço as setas
Uma após outra: geme o mar com os tiros;
Direitas pelas ondas inquietas
Algumas vão, e algumas fazem giros;
Caem as Ninfas, lançam das secretas
Entranhas ardentíssimos suspiros;
Cai qualquer, sem ver o vulto que ama:
Que tanto, como a vista, pode a fama.
48
Os cornos ajuntou da ebúrnea lua
Com força o moço indómito excessiva,
Que Tethys quer ferir mais que nenhuma,
Porque mais que nenhuma lhe era esquiva.
Já não fica na aljava seta alguma,
Nem nos equóreos campos Ninfa viva;
E se feridas ainda estão vivendo,
Será para sentir que vão morrendo.
49
Dai lugar, altas e cerúleas ondas,
Que, vedes, Vénus traz a medicina,
Mostrando as brancas velas e redondas,
Que vêm por cima da água Netunina.
Para que tu recíproco respondas,
Ardente Amor, à flama feminina,
É, forçado que a pudicícia honesta
Faça quanto lhe Vénus amoesta.
50
Já todo o belo coro se aparelha
Das Nereidas, e junto caminhava
Em coreias gentis, usança velha,
Para a ilha, a que Vénus as guiava.
Ali a formosa Deusa lhe aconselha
O que ela fez mil vezes, quando amava.
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.
51
Cortando vão as naus a larga via
Do mar ingente para a pátria amada,
Desejando prover-se de água fria,
Para a grande viagem prolongada,
Quando juntas, com súbita alegria,
Houveram vista da ilha namorada,
Rompendo pelo céu a mãe formosa
De Menónio, suave e deleitosa.
52
De longe a Ilha viram fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Para onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Para onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo enfim podia.
53
Mas firme a fez e imóvel, como viu
Que era dos Nautas vista e demandada;
Qual ficou Delos, tanto que pariu
Latona Febo e a Deusa à caça usada.
Para lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia uma enseada
Curva e quieta, cuja branca areia,
Pintou de ruivas conchas Citereia.
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