36

 

"Sentiu Joane a afronta que passava

Nuno, que, como sábio capitão,

Tudo corria e via, e a todos dava,

Com presença e palavras, coração.

Qual parida leoa, fera e brava,

Que os filhos que no ninho sós estão,

Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,

O pastor de Massília lhos furtara;

 

37

 

"Corre raivosa, e freme, e com bramidos

Os montes Sete Irmãos atroa e abala:

Tal Joane, com outros escolhidos

Dos seus, correndo acode à primeira ala:

-"Ó fortes companheiros, ó subidos

Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,

Defendei vossas terras, que a esperança

Da liberdade está na vossa lança.

 

38

 

-"Vedes-me aqui, Rei vosso, e companheiro,

Que entre as lanças, e setas, e os arneses

Dos inimigos corro e vou primeiro:

Pelejai, verdadeiros Portugueses!"-

Isto disse o magnânimo guerreiro,

E, sopesando a lança quatro vezes,

Com força tira; e, deste único tiro,

Muitos lançaram o último suspiro.

 

39

 

"Porque eis os seus acesos novamente

Duma nobre vergonha e honroso fogo,

Sobre qual mais com ânimo valente

Perigos vencerá do Márcio jogo,

Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente;

Rompem malhas primeiro, e peitos logo:

Assim recebem junto e dão feridas,

Como a quem já não dói perder as vidas.

 

40

 

"A muitos mandam ver o Estígio lago,

Em cujo corpo a morte e o ferro entrava:

O Mestre morre ali de Santiago,

Que fortíssimamente pelejava;

Morre também, fazendo grande estrago,

Outro Mestre cruel de Calatrava;

Os Pereiras também arrenegados

Morrem, arrenegando o Céu e os fados.

 

41

 

"Muitos também do vulgo vil sem nome

Vão, e também dos nobres, ao profundo,

Onde o trifauce Cão perpétua fome

Tem das almas que passam deste mundo.

E porque mais aqui se amanse e dome

A soberba do amigo furibundo,

A sublime bandeira Castelhana

Foi derribada aos pés da Lusitana.

 

42

 

"Aqui a fera batalha se encruece

Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;

A multidão da gente que perece

Tem as flores da própria cor mudadas;

Já as costas dão e as vidas; já falece

O furor e sobejam as lançadas;

Já de Castela o Rei desbaratado

Se vê, e de seu propósito mudado.

 

43

 

"O campo vai deixando ao vencedor,

Contente de lhe não deixar a vida.

Seguem-no os que ficaram, e o temor

Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.

Encobrem no profundo peito a dor

Da morte, da fazenda despendida,

Da mágoa, da desonra, e triste nojo

De ver outrem triunfar de seu despojo.

 

44

 

"Alguns vão maldizendo e blasfemando

Do primeiro que guerra fez no mundo;

Outros a sede dura vão culpando

Do peito cobiçoso e sitibundo,

Que, por tomar o alheio, o miserando

Povo aventura às penas do profundo,

Deixando tantas mães, tantas esposas

Sem filhos, sem maridos, desditosas.

 

45

 

"O vencedor Joane esteve os dias

Costumados no campo, em grande glória;

Com ofertas depois, e romarias,

As graças deu a quem lhe deu vitória.

Mas Nuno, que não quer por outras vias

Entre as gentes deixar de si memória

Senão por armas sempre soberanas,

Para as terras se passa Transtaganas.

 

46

 

"Ajuda-o seu destino de maneira

Que fez igual o efeito ao pensamento,

Porque a terra dos Vândalos fronteira

Lhe concede o despojo e o vencimento.

Já de Sevilha a Bética bandeira

E de vários senhores num momento

Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa

Obrigados da força Portuguesa.

 

47

 

"Destas e outras vitórias longamente

Eram os Castelhanos oprimidos,

Quando a paz, desejada já da gente,

Deram os vencedores aos vencidos,

Depois que quis o Padre onipotente

Dar os Reis inimigos por maridos

As duas ilustríssimas Inglesas,

Gentis, formosas, ínclitas princesas.

 

48

 

"Não sofre o peito forte, usado à guerra,

Não ter amigo já a quem faça dano;

E assim não tendo a quem vencer na terra,

Vai cometer as ondas do Oceano.

Este é o primeiro Rei que se desterra

Da Pátria, por fazer que o Africano

Conheça, pelas armas, quanto excede

A lei de Cristo à lei de Mafamede.

 

49

 

"Eis mil nadantes aves pelo argento

Da furiosa Tethys inquieta

Abrindo as pandas asas vão ao vento,

Para onde Alcides pôs a extrema meta.

O monte Abila e o nobre fundamento

De Ceita toma, e o torpe Mahometa

Deita fora, e segura toda Espanha

Da Juliana, má, e desleal manha.

 

50

 

"Não consentiu a morte tantos anos

Que de Herói tão ditoso se lograsse

Portugal, mas os coros soberanos

Do Céu supremo quis que povoasse.

Mas para defensão dos Lusitanos

Deixou, quem o levou quem governasse,

E aumentasse a terra mais que dantes,

Inclita geração, altos Infantes.

 

51

 

"Não foi do Rei Duarte tão ditoso

O tempo que ficou na suma alteza,

Que assim vai alternando o tempo iroso

O bem co'o mal, o gosto coa tristeza.

Quem viu sempre um estado deleitoso?

Ou quem viu em fortuna haver firmeza?

Pois inda neste Reino e neste Rei

Não ousou ela tanto desta lei.

 

52

 

"Viu ser cativo o santo irmão Fernando,

Que a tão altas empresas aspirava,

Que, por salvar o povo miserando

Cercado, ao Sarraceno se entregava.

Só por amor da pátria está passando

A vida de senhora feita escrava,

Por não se dar por ele a forte Ceita:

Mais o público bem que o seu respeita.

 

53

 

"Codro, porque o inimigo não vencesse,

Deixou antes vencer da morte a vida;

Régulo, porque a pátria não perdesse,

Quis mais a liberdade ver perdida.

Este, porque se Espanha não temesse,

Ao cativeiro eterno se convida:

Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,

Nem os Décios leais fizeram tanto.

 

54

 

"Mas Afonso, do Reino único herdeiro,

Nome em armas ditoso em nossa Hespéria,

Que a soberba do bárbaro fronteira

Tornou em baixa e humílima miséria,

Fora por certo invicto cavaleiro,

Se não quisera ir ver a terra Ibéria.