Jugo de Reis diversos o constrange

A várias leis: alguns o vicioso

Mahoma, alguns os ídolos adoram,

Alguns os animais, que entre eles morri.

 

18

 

Lá bem no grande monte, que cortando

Tão larga terra, toda Ásia discorre,

Que nomes tão diversos vai tomando,

Segundo as regiões por onde corre,

As fontes saem, donde vêm manando

Os rios, cuja grã corrente morre

No mar Índico, e cercam todo o peso

Do terreno, fazendo-o Quersoneso.

 

19

 

Entro um e outro rio, em grande espaço,

Sai da larga terra uma loira ponta

Quase piramidal, que no regaço

Do mar com Ceilão ínsula confronta;

E junto donde nasce o largo braço

Gangético, o rumor antigo conta

Que os vizinhos, da terra moradores,

Do cheiro se mantêm das finas flores.

 

20

 

Mas agora de nomes e de usança

Novos e vários são os habitantes:

Os Delis, os Patanes, que em possança

De terra e gente, são mais abundantes;

Decanis, Oriás, que a esperança

Têm de sua salvação nas ressonantes

Águas do Gange, e a terra de Bengala

Fértil de sorte que outra não lhe iguala.

 

21

 

O Reino de Cambaia belicoso

(Dizem que foi de Poro, Rei potente)

O Reino de Narsinga, poderoso

Mais de ouro e pedras que de forte gente.

Aqui se enxerga lá do mar undoso

Um monte alto, que corre longamente,

Servindo ao Malabar de forte muro,

Com que do Canará vive seguro.

 

22

 

Da terra os naturais lhe chamam Gate,

Do pé do qual pequena quantidade

Se estende uma fralda estreita, que combate

Do mar a natural ferocidade.

Aqui de outras cidades, sem debate,

Calecu tem a ilustre dignidade

De cabeça de Império rica e bela:

Samorim se intitula o senhor dela.

 

23

 

Chegada a frota ao rico senhorio,

Um Português mandado logo parte

A fazer sabedor o Rei gentio

Da vinda sua a tão remota parte.

Entrando o mensageiro pelo rio,

Que ali nas ondas entra, a não vista arte,

A cor, o gesto estranho, o trajo novo

Fez concorrer a vê-lo todo o povo.

 

24

 

Entre a gente que a vê-lo concorria,

Se chega um Mahometa, que nascido

Fora na região da Berberia,

Lá onde fora Anteu obedecido:

Ou pela vizinhança já teria

O Reino Lusitano conhecido,

Ou foi já assinalado de seu ferro:

Fortuna o trouxe a tão loiro desterro.

 

25

 

Em vendo o mensageiro, com jocundo

Rosto, como quem sabe a língua Hispana,

Lhe disse: "Quem te trouxe a estoutro mundo,

Tão longe da tua pátria Lusitana?"

- "Abrindo, lhe responde, o mar profundo,

Por onde nunca veio gente humana,

Vimos buscar do Indo a grão corrente,

Por onde a Lei divina se acrescente."

 

26

 

Espantado ficou da grã viagem

O Mouro, que Monçaide se chamava,

Ouvindo as opressões que na passagem

Do mar, o Lusitano lhe contava:

Mas vendo enfim que a f orça da mensagem

Só para o Rei da terra relevava,

Lhe diz que estava f ora da cidade,

Mas de caminho pouca quantidade.

 

27

 

E que, entanto que a nova lhe chegasse

De sua estranha vinda, se queria,

Na sua pobre casa repousasse,

E do manjar da terra comeria,

E depois que se um pouco recreasse,

Com ele para a armada tornaria,

Que alegria não pode ser tamanha,

Que achar gente vizinha em terra estranha.

 

28

 

O Português aceita de vontade

O que o ledo Monçaide lhe oferece;

Como se longa fora já a amizade,

Com ele come, e bebe, e lhe obedece.

Ambos se tornam logo da cidade

Para a frota, que o Mouro bem conhece;

Sobem à capitania; e toda a gente

Monçaide recebeu benignamente.

 

29

 

O Capitão o abraça em cabo ledo,

Ouvindo clara a língua de Castela;

Junto de si o assenta, e pronto e quedo,

Pela terra pergunta, e cousas dela.

Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo,

Só por ouvir o amante da donzela

Eurídice, tocando a lira de ouro,

Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

 

30

 

Ele começa: "Ó gente, que a natura

Vizinha fez de meu paterno ninho,

Que destino tão grande ou que ventura

Vos trouxe a cometerdes tal caminho?

Não é sem causa, não, oculta e escura,

Vir do longínquo Tejo e ignoto Minho,

Por mares nunca doutro lenho arados,

A Reinos tão remotos e apartados.

 

31

 

"Deus por certo vos traz, porque pretende

Algum serviço seu por vós obrado;

Por isso só vos guia, e vos defende

Dos inimigos, do mar, do vento irado.

Sabei que estais na Índia, onde se estende

Diverso povo, rico e prosperado

De ouro luzente e fina pedraria,

Cheiro suave, ardente especiaria.

 

32

 

"Esta província, cujo porto agora

Tomado tendes, Malabar se chama:

Do culto antigo os ídolos adora,

Que cá por estas partes se derrama:

De diversos Reis é, mas dum só

Noutro tempo, segundo a antiga fama;

Saramá Perimal foi derradeiro

Rei, que este Reino teve unido e inteiro.

 

33

 

"Porém, como a esta terra então viessem

De lá do seio Arábico outras gentes,

Que o culto Mahomético trouxessem,

No qual me instituíram meus parentes,

Sucedeu que pregando convertessem

O Perimal: de sábios e eloquentes,

Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto,

Que pressupôs de nela morrer santo.

 

34

 

"Naus arma, e nelas mete curioso

Mercadoria, que ofereça rica,

Para ir nelas a ser religioso,

Onde o profeta jaz, que a Lei publica;

Antes que parta, o Reino poderoso

Com os seus reparte, porque não lhe fica

Herdeiro próprio, faz os mais aceitos

Ricos de pobres, livres de sujeitos.

 

35

 

"A um Cochim, e a outro Cananor,

A qual Chalé, a qual a ilha da Pimenta,

A qual Coulão, a qual dá Cranganor,

E os mais, a quem o mais serve e contenta,

Um só moço, a quem tinha muito amor,

Depois que tudo deu, se lhe apresenta:

Para este Calecu somente fica,

Cidade já por trato nobre e rica.

 

36

 

"Esta lhe dá com o título excelente

De Imperador, que sobre os outros mande.

Isto feito, se parte diligente

Para onde em santa vida acabe, e ande.

E daqui fica o nome de potente

Samori, mais que todos digno e grande,

Ao moço e descendentes; donde vem

Este, que agora o Império manda e tem.

 

37

 

"A Lei da gente toda, rica e pobre,

De fábulas composta se imagina:

Andam nus, e somente um pano cobre

As partes, que a cobrir natura ensina.

Dois modos há de gente, porque a nobre

Naires chamados são, e a menos digna

Poleás tem por nome, a quem obriga

A Lei não misturar a casta antiga.

 

38

 

"Porque os que usaram sempre um mesmo ofício,

De outro não podem receber consorte,

Nem os filhos terão outro exercício,

Senão o de seus passados, até morte.