Para os Naires é certo grande vício

Destes serem tocados; de tal sorte,

Que quando algum se toca, por ventura,

Com cerimónias mil se alimpa e apura.

 

39

 

"Desta sorte o Judaico povo antigo

Não tocava na gente de Samária.

Mais estranhezas ainda das que digo

Nesta terra vereis de usança vária.

Os Naires sós são dados ao perigo

Das armas; sós defendem da contrária

Banda o seu Rei, trazendo sempre usada

Na esquerda a adarga e na direita a espada.

 

40

 

"Brâmenes são os seus religiosos,

Nome antigo e de grande proeminência:

Observam os preceitos tão famosos

Dum que primeiro pôs nome à ciência:

Não matam coisa viva, e, temerosos,

Das carnes têm grandíssima abstinência;

Somente no venéreo ajuntamento

Têm mais licença e menos regimento.

 

41

 

"Gerais são as mulheres, mas somente

Para os da geração de seus maridos:

Ditosa condição, ditosa gente,

Que não são de ciúmes ofendidos!

Estes e outros costumes variamente

São pelos Malabares admitidos.

A terra é grossa em trato, em tudo aquilo

Que as ondas podem dar da China ao Nilo."

 

42

 

Assim contava o Mouro; mas vagando

Andava a fama já pela cidade

Da vinda desta gente estranha, quando

O Rei saber mandava da verdade.

Já vinham pelas ruas caminhando,

Rodeados de todo sexo e idade,

Os principais, que o Rei buscar mandara

O Capitão da armada, que chegara.

 

43

 

Mas ele, que do Rei já tem licença

Para desembarcar, acompanhado

Dos nobres Portugueses, sem detença

Parte, de ricos panos adornado.

Das cores a formosa diferença

A vista alegra ao povo alvoroçado.

O remo compassado fere frio

Agora o mar, depois o fresco rio.

 

44

 

Na praia um regedor do Reino estava,

Que na sua língua Catual se chama,

Rodeado de Naires, que esperava

Com desusada festa o nobre Gama.

Já na terra, nos braços o levava,

E num portátil leito uma rica cama

Lhe oferece, em que vá, costume usado,

Que nos ombros dos homens é levado.

 

45

 

Desta arte o Malabar, destarte o Luso

Caminham, lá para onde o Rei o espera:

Os outros Portugueses vão ao uso

Que infantaria segue, esquadra fera.

O povo que concorre vai confuso

De ver a gente estranha, e bem quisera

Perguntar: mas no tempo já passado

Na torre de Babel lhe foi vedado.

 

46

 

O Gama e o Catual iam falando

Nas coisas, que lhe o tempo oferecia;

Monçaide entre eles vai interpretando

As palavras que de ambos entendia.

Assim pela cidade caminhando,

Onde uma rica fábrica se erguia

De um sumptuoso templo, já chegavam,

Pelas portas do qual juntos entravam.

 

47

 

Ali estão das deidades as figuras

Esculpidas em pau e em pedra fria;

Vários de gestos, vários de pinturas,

A segundo o Demónio lhe fingia:

Vêem-se as abomináveis esculturas,

Qual a Quimera em membros se varia:

Os Cristãos olhos, a ver Deus usados

Em forma humana, estão maravilhados.

 

48

 

Um na cabeça cornos esculpidos,

Qual Júpiter Amon em Líbia estava;

Outro num corpo rostos tinha unidos,

Bem como o antigo Jano se pintava;

Outro com muitos braços divididos

A Briareu parece que imitava;

Outro fronte canina tem de fora,

Qual Anúbis Menfítico se adora.

 

49

 

Aqui feita do bárbaro gentio

A supersticiosa adoração,

Direitos vão, sem outro algum desvio,

Para onde estava o Rei do povo vão.

Engrossando-se vai da gente o fio,

Com os que vêm ver o estranho Capitão;

Estão pelos telhados e janelas

Velhos e moços, donas e donzelas.

 

50

 

Já chegam perto, e não com passos lentos,

Dos jardins odoríferos formosos,

Que em si escondem os régios aposentos,

Altos de torres não, mas sumptuosos.

Edificam-se os nobres seus assentos

Por entre os arvoredos deleitosos:

Assim vivem os Reis daquela gente,

No campo e na cidade juntamente.

 

51

 

Pelos portais da cerca a sutileza

Se enxerga da Dedálea facultade,

Em figuras mostrando, por nobreza,

Da Índia a mais remota antiguidade.

Afiguradas vão com tal viveza

As histórias daquela antiga idade,

Que quem delas tiver notícia inteira,

Pela sombra conhece a verdadeira.

 

52

 

Estava um grande exército que pisa

A terra Oriental, que o Idaspe lava;

Rege-o um capitão de fronte lisa,

Que com frondentes tirsos pelejava;

Por ele edificada estiva Nisa

Nas ribeiras do rio, que manava,

Tão próprio, que se ali estiver Semele,

Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

 

53

 

Mais avante bebendo seca o rio

Mui grande multidão da Assíria gente,

Sujeita a feminino senhorio

De uma tão bela como incontinente.

Ali tem junto ao lado nunca frio,

Esculpido o feroz ginete ardente,

Com quem teria o filho competência:

Amor nefando, bruta incontinência!

 

54

 

Daqui mais apartadas tremulavam

As bandeiras de Grécia gloriosas,

Terceira Monarquia, e sojugavam

Até as águas Gangéticas undosas.

Dum capitão mancebo se guiavam,

De palmas rodeado valerosas,

Que já, não de Filipo, mas sem falta

De progénie de Júpiter se exalta.

 

55

 

Os Portugueses vendo estas memórias,

Dizia o Catual ao Capitão:

"Tempo cedo virá que outras vitórias

Estas, que agora olhais, abaterão;

Aqui se escreverão novas histórias

Por gentes estrangeiras que virão;

Que os nossos sábios magos o alcançaram

Quando o tempo futuro especularam.

 

56

 

"E diz-lhe mais a mágica ciência

Que, para se evitar força tamanha,

Não valerá dos homens resistência,

Que contra o Céu não val da gente manha;

Mas também diz que a bélica excelência,

Nas armas e na paz, da gente estranha

Será tal, que será no mundo ouvido

O vencedor, por glória do vencido,"

 

57

 

Assim falando entravam já na sala,

Onde aquele potente Imperador

Numa camilha jaz, que não se iguala

De outra alguma no preço e no lavor.